Miguel Leite anda há três meses a tentar contratar dois mobile developers para a sua empresa. E não consegue. Conta ao Observador que colocou anúncios “em todo o lado”: sites de emprego, redes sociais e até já ofereceu uma recompensa a quem lhe recomendar um candidato ao cargo, através do anúncio que colocou na Jobbox – quem recomendar o técnico que acabe por preencher a equipa da Tradiio recebe 250 euros. E nada. Oferece cerca de 1.800 euros líquidos a cada uma das pessoas que fiquem responsáveis por criar a aplicação móvel para os sistemas operativos Android e iOS. E nada.
“Quem é bom em mobile tem trabalho cá, está estável e é difícil que saia da empresa. Ou então está lá fora. Não estamos a conseguir encontrar ninguém disponível”, conta Miguel Leite ao Observador. A ausência de candidatos levou os fundadores do serviço de música português Tradiio a colocar um post no Facebook, a 25 de março, com um apelo: “Queremos os nossos programadores de volta”. Resultado: 279 likes, 116 partilhas e vários comentários. E o esforço teve frutos: um português que esteve prestes a deixar o emprego que tinha na Suíça para ingressar na Tradiio, mas que acabou por recusar. Tinha recebido outra proposta na Suíça que era melhor.
O post fez com que Miguel Leite recebesse cerca de 20 currículos de portugueses que estavam no estrangeiro e que queriam regressar. E mesmo assim, nada. Alguns não tinham a experiência pretendida, outros andavam à procura de melhores condições e, para a equação, também entrou o facto de a empresa ser ainda uma startup, explica Miguel Leite. “Os emigrantes também têm medo de voltar, acho eu”, diz.
O Tradiio é uma plataforma de música grátis para utilizadores e artistas, que permite identificar talento e investir. É como se fosse um jogo: os utilizadores ouvem música e investem moedas virtuais nos artistas em que mais acreditam. Os vencedores – aqueles que fizerem um melhor trabalho na descoberta de talento – ganham moedas virtuais que podem ser trocadas por experiências, produtos de merchandise dos artistas, acesso a festivais, entre outros. A 2 de março, a startup lançou a nova versão da plataforma em web, iOS e Android.
“Isto é super grave”, desabafa Miguel Leite, referindo que o país não está preparado para fazer face às necessidades do mercado de trabalho nestas áreas. O problema deve ser corrigido “na fonte”, diz Miguel, ou seja, na formação. “As universidades devem preparar os engenheiros e motivá-los para o mobile. É um mercado que paga bem, que vai ter um crescimento sustentável e os estudantes saem das universidades sem terem noção de que o mercado é atraente em mobile”, diz o empreendedor.
No final do ano, a Comissão Europeia estima que fiquem 8.100 vagas de emprego por preencher em Portugal na área das Tecnologias de informação e Comunicação (TIC), segundo um relatório publicado pela instituição em janeiro de 2014. Em 2012, ficaram 3.900 e em 2020, estima-se que fiquem 15 mil. No total dos 27 Estados-membros da União Europeia, a comissão estima que fiquem 913 mil vagas por preencher nas TIC.
Um estudo divulgado em dezembro pela Jobbox mostrou, por outras palavras, o mesmo: que o desemprego não estava a chegar aos profissionais com formação na área das TIC. Ou seja, 100% dos inquiridos estavam empregados e desempenhavam funções de caráter tecnológico. Destes, 90% recebem entre mil e 1.800 euros no final do mês, 55% recebem mais de 1.800 e 14% recebiam mais de 2.500 euros.
Miguel Leite explica que, numa altura em que o termo “empreendedorismo” está “tão na moda”, este tipo de incompatibilidades (entre a oferta e a procura) não pode acontecer. “Nascem startups tecnológicas e depois não há respostas em termos de recursos humanos”, diz. No documento da Comissão Europeia, lê-se que o emprego no setor tem vindo a crescer em Portugal desde 2008 e que os salários são elevados, com aumentos acima da inflação.
“Há uma tendência recente de contratar mais recursos humanos com formação especializada em TIC, comparativamente ao hábito que existia no passado de adaptar recursos humanos de outras áreas, que entretanto tinham adquirido competências em TIC”, lê-se. Segundo a Comissão Europeia, o país também tem assistido a uma redução no número de estudantes que opta por estes cursos.
José Paiva, fundador da Jobbox, startup portuguesa especializada em recrutamento e apoio à gestão de carreira de profissionais da área tecnológica, disse ao Observador que o mercado de recrutamento está “terrível” em tudo o que esteja relacionado com programação. “Tudo indica que no final do ano fiquem por preencher 500 mil vaga a nível europeu”, disse. Para o especialista, que já foi administrador da Novabase Business Solutions, “é um problema” encontrar pessoas para as vagas que surgem na Jobbox.
“É preciso ir atrás das pessoas, aliciá-las para mudarem de emprego”, conta, revelando que não há pessoas desempregadas no setor das TIC em Portugal. Dá um exemplo: se quisesse angariar 1.000 empresas para anunciar na Jobbox conseguia num mês, mas se quisesse encontrar o mesmo número de candidatos, precisaria de um ano. “Pura e simplesmente não há pessoas. E a coisa mais curiosa é que há vagas nas universidades, mas as pessoas não aparecem nem para estudar”, diz.
A informática é transversal, mas não no feminino
E se o facto de não haver recursos humanos suficientes já é polémico, o assunto agudiza-se quando se alarga a discussão ao género: porque é que quase não há mulheres nas TIC?
A 23 de abril, celebrou-se o Dia Mundial das Jovens Mulheres nas TIC e o Departamento de Informática da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa organizou um evento, o Girls in ICT, para sensibilizar as jovens, pais e professores para as oportunidades de carreira e realização profissional na área.
“Existe informática em tudo. A informática é transversal. E é preciso alertar os pais das jovens para estas oportunidades de carreira”, disse Pedro Veiga, professor na Faculdade de Ciências e presidente do Internet Society Portugal Chapter, na abertura do evento.
Carmo Palma, membro da Comissão Executiva da tecnológica portuguesa Novabase, disse ao Observador que existem, de facto, muitas oportunidades de emprego na área das TIC, em Portugal e no estrangeiro, e que o país era conhecido por ter universidades muito boas. “Nós, todos os anos, recrutamos. Fazemos divulgação junto das universidades e, felizmente, temos conseguido recrutar quem queremos. Mas esta falta generalizada no país é uma realidade”, disse.
O que fazer para mudar? Incorporar no Ensino Básico mais áreas de TIC, apostando na formação inicial, sugere Carmo Palma. Cátia Pesquita, professora na FCUL e investigadora no Laboratório de Sistemas de Informação em Grande Escala, acrescenta outra sugestão: a informática tem de começar a parecer uma carreira interessante cedo, sobretudo para as meninas.
“Há falta de profissionais, mas também há falta de alunos. A falta não é quando saem da universidade, é mesmo à entrada, Aí, já temos menos candidatos do que aqueles que o mercado quer absorver mais tarde”, diz, referindo que se as universidades conseguissem duplicar o número de alunas atual (entre 10 e 15%) já era “muito bom”. “Até porque as nossas alunas têm um bocadinho mais sucesso do que os rapazes”, diz.
Na base da ausência de raparigas nos cursos de informática ou TIC estão os mitos associados à carreira, explica. “Muitas raparigas não sabem a multitude de carreiras diferentes e de áreas diferentes em que a informática pode ter impacto. Pensam que é coisa de computadores e não percebem que, com uma carreira nas TIC, podem agir em áreas como a saúde, finanças, media, artes. São áreas que, classicamente, atraem raparigas, e as TIC podem ser um caminho para contribuir para estas áreas”, revela.
Para Cátia Pesquita, um profissional em TIC pode escolher qual a sua esfera de ação e intervir em quase todas as áreas, com as ferramentas que esta formação lhe dá. “Os nossos alunos têm uma taxa de empregabilidade que ronda os 100%. Eles estão todos a ser absorvidos pelo mercado”, diz.
Teresa Chambel, professora na Faculdade de Ciências e uma das organizadoras do evento, disse ao Observador que é preciso aumentar a consciência das pessoas para as oportunidades. “Hoje em dia, há pessoas a trabalhar em informática e a fazer coisas giríssimas, em áreas multidisciplinares”, conta.
Sobre o enfoque que se poderia dar à área do mobile, diz que o papel da universidade é o de fornecer um leque alargado de conhecimentos e bases às pessoas, estimulando a autonomia e a capacidade de aprenderem. “Creio que estamos a formar pessoas que têm muito essas capacidades e que vão poder dar-se bem não só numa altura em que são as app que estão a dar como numa altura em que seja outra coisa”, diz, acrescentando que, na FCUL, formam pessoas com competências que permitem que sejam bons programadores, bons profissionais de sistemas, de computação gráfica ou inteligência artificial. “Mas também a serem criativos”, diz.
José Paiva, da Jobbox, diz que é preciso renovar a imagem que está associada ao profissional das TIC. “O informático é o bicho raro, é o geek, é nerd. Enquanto não se criar uma imagem mais cool [fixe] do informático, continuamos a ter esta situação”, disse. A situação em que há vagas e há emprego, mas onde quase não há pessoas.