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Na noite de 30 de novembro de 1982, cinco elementos da máfia siciliana, a Cosa Nostra, reuniram-se na sua sede perto do porto de Palermo para fazer uma espera a um membro do grupo rival. A ilha italiana da Sicília enfrentava a segunda guerra da máfia, que opunha os grupos liderados por Salvatore “Totò” Riina e Rosario Riccobono — Giuseppe Lauricella, um dos braços direitos de Riccobono, era o alvo da emboscada. Acabou a noite morto, estrangulado pelos seus rivais.
Passados 42 anos, entre os cinco mafiosos responsáveis pelo assassinato de Lauricella, dois já morreram, um está na prisão, outro colaborou com as autoridades. O quinto, Raffaele Galatolo, conhecido como o “estrangulador de Acquasanta”, saiu em liberdade condicional em outubro de 2024, depois de ter cumprido mais de duas décadas na prisão, onde foi “um recluso exemplar”. Agora, com 74 anos, Galatolo é o herdeiro da máfia em Acquasanta, relata o jornal La Repubblica, que investigou a presença da máfia siciliana em Palermo.
Raffaele Galatolo não é caso único. Nos últimos meses de 2024, dezenas de líderes da Cosa Nostra saíram da prisão em liberdade condicional, sem terem cumprido as suas penas até ao fim. Em causa, está um vazio na legislação italiana que facilita os pedidos de comutação de pena dos reclusos e uma série de mudanças na legislação anti-máfia, implementada nos anos 90, que fragilizou os mecanismos de combate ao crime organizado.
“É uma tempestade perfeita”, define Federico Varese ao The Guardian. O professor de Criminologia em Oxford sublinha que a entrada na máfia é “vitalícia” e que nenhum destes veteranos alguma vez colaborou com as autoridades. “O seu regresso em massa facilitará a reorganização da Cosa Nostra. Será mais provável que a ‘Cupola’ possa agora reunir-se”, alerta, referindo-se ao organismo que reúne os principais líderes do crime organizado na Sicília.
Do “matadouro” à “imagem ardente de um santo”. A organização, as tradições e os crimes da Cosa Nostra
A “herança” de Raffaele Galatolo é um bom ponto de partida para perceber como funciona a Cosa Nostra. Galatolo lidera agora o “mandamento” de Resuttana, um dos oito de Palermo. Um “mandamento” é uma divisão territorial da máfia, que reúne três bairros liderados por uma única família. No caso dos Galatolo, a liderança pertencia ao seu irmão Vincenzo — que também foi um dos assassinos de Lauricella —, mas este morreu na prisão no ano passado, passando o título.
Outro dos homens presentes nessa noite era Antonino “Nino” Madonia, líder de uma outra família, aliada dos Galatolo. Cada grupo controlava um “mandamento”, mas todos respondiam perante o líder da Cosa Nostra, Totò Riina. A sede onde se reuniam em Palermo continua envolta em mistério: Vicolo Pipitone, também conhecido como “o matadouro” ou “a câmara da morte”, fica localizado no bairro de Acquasanta, no porto de Palermo e funcionava como simultaneamente como sala de interrogatórios e de ajustes de contas com aqueles que traíssem a máfia, como é o caso de Riccobono e dos seus aliados.
Ao mesmo tempo, Vicolo Pipitone era o local de encontro da ‘Cupola’, o órgão central da Cosa Nostra, que tomava as decisões da organização. Muitos dos líderes que estão agora a sair da prisão faziam parte deste grupo. Mas o que leva os especialistas a crer que, volvidas quatro décadas, os Galatolo, os Madonia e tantas outras famílias ainda são leais à máfia?
Por um lado, o facto de nunca terem mostrado arrependimento pelos seus crimes ou colaborado com as autoridades. A segunda guerra da máfia chegou ao fim com um megaprocesso instaurado pelas autoridades italianas. O julgamento decorreu entre fevereiro de 1986 e janeiro de 1992 e 338 pessoas foram condenadas a penas de prisão efetiva — Raffaele Galatolo, por exemplo, enfrentou múltiplas acusações de homicídio. Mais de três décadas depois, o seu silêncio mantém-se.
Por outro lado, a iniciação na máfia siciliana é um contrato vitalício, que se faz através de um ritual. “A imagem ardente de um santo é colocada nas mãos do noviço e os membros da máfia reunidos declaram: ‘Vais arder como esta imagem se traíres ou tentares sair desta organização‘”, relata Federico Varese.
Ainda assim, há alguns membros que desertam e testemunham em tribunal contra os seus pares. É o caso de Marco Favaloro que relatou os acontecimentos da noite de 30 de novembro em tribunal, durante os anos 90, citado pelo La Repubblica. “Só se pode sair através da morte ou da colaboração com a justiça”, afirmou um outro desertor, Tommaso Buscetta, na década de 1980. Mas estes casos são uma minoria.
O oposto é bem mais comum, argumenta ao jornal britânico Salvatore Borsellino — cujo irmão, Paolo Borsellino, juiz nos processos anti-máfia, foi assassinado em 1992. “Estes mafiosos terão um prestígio ainda maior junto dos apoiantes da Cosa Nostra, porque poderão gabar-se de terem estado na prisão sem nunca falarem ou citarem o nome de outros membros“, elabora.
Os obstáculos legais que estão a dificultar o combate ao crime organizado
Antigos membros e especialistas legais não acreditam na possibilidade de a prisão servir como reabilitação para membros da máfia. São mais de 20 os líderes que foram libertados nos últimos meses de 2024, muitos deles por “bom comportamento”. A explicação para este desacordo está num vazio nas regras do sistema penitenciário italiano.
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O artigo 4.º, parágrafo 2.1 desta legislação permite que os tribunais autorizem unilateralmente a liberdade condicional de reclusos “quando os indivíduos já beneficiaram de benefícios semelhantes nos três meses anteriores”, como liberdades especiais. Isto não é o que acontece num caso regular, em que o pedido dos advogados de defesa para liberdade condicional obriga os juízes a pedir um parecer aos procuradores.
A Direção Nacional Anti-Máfia já apresentou ao Ministério da Justiça italiano um pedido formal para que este sistema seja alterado e o parecer passe a ser obrigatório em todas as circunstâncias, informa o La Repubblica. Mas ainda não houve uma resposta formal.
Sem o parecer dos procuradores, os tribunais baseiam a sua decisão na declaração dos serviços prisionais. O jornal italiano salienta o caso de Paolo Alfano, o primeiro líder da máfia a utilizar este vazio legal para obter a liberdade condicional de uma pena perpétua, em setembro de 2024. O estabelecimento prisional de Parma classificou Alfano como “um prisioneiro modelo“. No megaprocesso do final da década de 80, os juízes Paolo Borsellino e Giovanni Falcone definiam-no como “o assassino mais cruel do Corso dei Mille [um dos bairros do “mandamento” de Brancaccio]”.
O nome Giovanni Falcone volta a surgir relativamente aos restantes obstáculos legais que o combate à máfia em Itália enfrenta hoje em dia. Isto porque foi Falcone que desenhou o programa de proteção de testemunhas que permitiu a Favaloro, Buscetta e outros desertores testemunharem em tribunal contra a máfia, uma vez que foram protegidos das repercussões.
Este programa encontra-se em risco devido a cortes orçamentais da agência estatal que o coordena. A partir de 2024, as pessoas abrangidas pelo projeto deixaram de receber uma quantia imediata para recomeçar uma vida, longe da máfia. Luigi Li Gotti, um dos advogados que representou os desertores em tribunal, criticou esta medida, notando que desencoraja a colaboração com a justiça, algo que foi essencial para conseguir provas concretas que levaram às condenações no megaprocesso.
Outra das mudanças na legislação italiana que pode dificultar o combate à máfia é a implementação de limitações à utilização de escutas como prova em tribunal. “Intercetar comunicações pode ser controverso em alguns países, mas em Itália tem sido uma ferramenta vital contra a máfia”, considera Felia Allum, professora na Universidade de Bath.
“A recolha de provas através da escuta de conversas e espaços privados tem sido uma das táticas mais importantes e eficazes para compreender as estratégias, dinâmicas e atividades da máfia ao longo das décadas”, acrescenta a especialista em crime organizado e corrupção.
Há uma última questão legal que contribuiu para a libertação de líderes da máfia, mais especificamente, líderes que tinham sido presos mais recentemente. É o caso de Giuseppe Corona, que estava em prisão preventiva desde 2018, numa prisão de segurança máxima reservada para líderes da Cosa Nostra. Devido a adiamentos sucessivos do seu julgamento e dos recursos subsequentes, o prazo legal para a sua prisão preventiva expirou em outubro de 2024 e o arguido saiu em liberdade. No mesmo período, outros nove líderes foram libertados pelas mesmas razões, escreve a imprensa italiana.
O silêncio dos reclusos e os laços familiares. A receita para manter a máfia de pé
Os obstáculos legais podem ter-se acumulado na reta final de 2024, mas alguns líderes da máfia já tinham sido libertados anteriormente. É o caso de Franco Bonura, que saiu da prisão em 2020, quando as prisões italianas libertaram centenas de reclusos idosos durante a pandemia de Covid-19. Hoje, Bonura tem 82 anos e vive em Palermo, onde foi interpelado por um repórter do La Repubblica que tem acompanhado o caso.
"- Qual figura pública, eu já não existo! Acabei com tudo, paguei pelos meus erros."
“Sr. Bonura, é uma figura pública, teve relações com pessoas importantes”, começa Salvo Palazzolo no vídeo da entrevista, antes de ser interrompido. “Qual figura pública, eu já não existo! Acabei com tudo, paguei pelos meus erros“, responde-lhe o antigo líder da máfia. O que é que Bonura tem em comum com todos os outros nomes que estão a ser libertados devido a espaços vazios na lei? “Bonura é o símbolo de um mafioso que sempre conseguiu esconder algo importante”, considera Palazzolo.
Há um tema que é colocado em cima da mesa em todos estes casos: a capacidade de manter silêncio e de guardar segredos. Depois de cumprirem as penas, os mafiosos regressam aos lugares que sempre ocuparam e que lhes são garantidos por direito na organização, com uma estrutura formal muito específica.
Os especialistas são unânimes em considerar que a atividade da máfia diminuiu substancialmente no início da década de 1990, em grande parte devido ao combate eficaz das autoridades. Mas a Cosa Nostra nunca desapareceu. Enquanto uma geração cumpria penas, as gerações seguintes mantinham a organização de pé. Não é por acaso que, na conversa com Palazzolo, Bonura se refere aos seus filhos.
O outro tema que se repete quando se fala da máfia siciliana é, portanto, a importância dos laços familiares. Galatolo herdou a liderança do irmão. Alfano — o primeiro a ser libertado na vaga do final de 2024 — viu o seu filho a casar com a filha do líder de uma outra família aliada. Um outro caso mediático é o de Michele Micalizzi, genro de um dos dois líderes da máfia durante a guerra da década de 1980 — Rosario Riccobono — e que herdou a sua influência. Micalizzi tem hoje 74 anos e também está liberdade desde 2015. “Resumindo, na Palermo de hoje as feridas ainda abertas da guerra da máfia também estão a regressar“, escreve o repórter do La Repubblica na cidade siciliana.
A máfia siciliana tem novos negócios, mas o perigo não desapareceu
Apoiando-se em segredos e alianças, a máfia sobreviveu. Mas Palermo já não é “a cidade terrível” do final do século XX e no porto já não há “matadouros” e “câmaras da morte”. Na passagem do testemunho entre gerações, a máfia reconfigurou-se.
“São os insuspeitos que constituem o verdadeiro mecanismo da riqueza de uma Cosa Nostra que tenta ser cada vez mais invisível. Homens de fachada insuspeitos e gestores de património. São eles que enriquecem atualmente alguns mafiosos”, escreve o jornalista Salvo Palazzolo.
Michele Micalizzi é o exemplo perfeito deste novo modelo da máfia, uma vez que já se encontra em liberdade há nove anos e já reconstruiu a sua vida fora da prisão. Agora, os seus lucros têm duas origens: o arrendamento de uma carteira imobiliária no valor de 10 milhões de euros — que ele e a mulher conseguiram manter durante o período que passou na prisão — e um negócio de gelados.
A bem-sucedida marca Brioscia era, na verdade, uma fachada que Micalizzi utilizava para acertar contas com outros grupos da Cosa Nostra — a maior parte dos seus aliados foram mortos por grupos rivais durante a guerra. A marca declarou falência em 2021, justificando-se com a pandemia, mas fontes avançaram à AFP que, na verdade, Micalizzi planeava abrir uma segundo negócio e manter o esquema de pé.
Mas há uma questão que se mantém: que caminho vão adotar os líderes veteranos que agora saíram da prisão? Uma nova máfia “invisível” ou uma tradição antiga de “matadouros” e “estranguladores”? Os especialistas não apresentam respostas, mas mostram-se preocupados e cautelosos.
Salvatore Borsellino e Felia Allum sublinham que a libertação destes líderes está a minar toda a luta anti-máfia que Itália tem desenvolvido nas últimas décadas, o que é “extremamente perigoso”. Federico Varese, professor em Oxford, foca-se no simbolismo desta decisão: “Envia uma mensagem de relativa impunidade à comunidade”.