O PCP continua a estar ao lado de Nicolás Maduro e a afastar-se do seu partido-irmão, o Partido Comunista da Venezuela. Após felicitar Maduro pela vitória, o PCP exige agora ao Governo de Montenegro que não reconheça a vitória da oposição e difundiu a sua versão sobre as eleições na última edição do jornal Avante!, onde defende a legitimidade da vitória de Maduro, nega irregularidades no escrutínio e responde ao líder dos comunistas venezuelanos, Oscar Figuera, que tinha sido, em declarações ao Observador, muito crítico do apoio do PCP a Maduro.
O PCP aborda o tema no jornal oficial do partido através de uma entrevista ao ex-eurodeputado João Pimenta Lopes, que foi convidado a observar as eleições in loco pelo partido de Nicolás Maduro, o Partido Socialista Unido da Venezuela (o PSUV). Várias organizações, como a ONU e a União Europeia, têm exigido as atas das eleições e maior transparência do processo eleitoral, mas o PCP alinha com os, para já, escassos 12 países — como são exemplo Cuba, Rússia, Bielorrússia, Irão, China, Síria e Bolívia (o único na América do Sul) — que reconhecem a vitória de Maduro. O Estado português, alinhado com a UE, não o fez.
A versão do membro do Comité Central convidado por Maduro
O membro do Comité Central do PCP descreve um cenário completamente diferente do que foi noticiado pela imprensa internacional. Pimenta Lopes relatou no Avante! o que observou: “Um ambiente de grande tranquilidade democrática e de mobilização popular no ato eleitoral, nomeadamente nos diversos centros de votação que visitei em Caracas.” Ou seja: em todos os locais a que foi levado por membros do partido de Maduro, nada viu de irregular.
Sobre as irregularidades relatadas pela oposição, o dirigente comunista limita-se apenas à versão oficial do regime liderado Nicolás Maduro, ao dizer que “as autoridades venezuelanas reportaram pouquíssimos casos de atropelo à legalidade nas mais de 30 mil mesas de voto que compõem os mais de 15 mil centros de votação por todo o país.” E coloca o ónus da não publicação das atas — que Maduro durante semanas se recusou a entregar — na oposição venezuelana. “Não fosse o apelo à desestabilização por parte da extrema-direita golpista, logo à beira do encerramento das urnas e do arranque do processo de contagem de votos, operação em que se insere o ataque ao sistema informático do CNE, e teríamos, na minha opinião, assistido à divulgação dos resultados nesse mesmo ambiente de tranquilidade democrática”, afirmou.
O enviado do PCP às eleições da Venezuela rotula uma boa parte da oposição como extrema-direita. Sobre o facto de os opositores de Maduro só reconhecerem a vitória de Edmundo González, Pimenta Lopes diz que apesar de o venezuelano ser o candidato, “a protagonista é Maria Corina Machado, uma figura da extrema-direita golpista que sucede a Juan Guaidó e que está inabilitada pelas autoridades judiciais de exercer responsabilidades públicas”. Ora, este facto também mostra as restrições impostas por Caracas: o regime de Maduro não permite que Maria Corina Machado, a sua principal opositora, se candidate.
O dirigente comunista diz, na mesma entrevista ao Avante, que está “convencido de que as alegações da extrema-direita não têm fundamento.” Recorda que Maduro já entregou as atas ao Supremo Tribunal de Justiça e acusa a candidatura de Gonzalez de não fazer o mesmo. Alinha, aliás, na mesma versão do regime venezuelano de que “números apresentados por Corina Machado não correspondem à realidade”.
O PCP remete assim para o que diz o Conselho Nacional Eleitoral e o que dirá o Supremo, mas ignora que ambas as estruturas são controladas pelo regime: o presidente do CNE, Elvis Amoroso, é amigo pessoal de Nicolás Maduro e da primeira-dama, Cilia Flores; a presidente do Supremo Tribunal de Justiça da Venezuela, Caryslia Rodríguez, é uma conhecida militante do Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV), o partido de Maduro, e já ocupou cargos autárquicos eleita por essa força política, além de se saber que é uma pessoa próxima da primeira-dama venezuelana.
Essa é, aliás, uma das razões que leva Edmundo González a não querer entregar as atas que tem na sua posse ao Supremo e a não se querer deslocar àquela entidade para uma sessão de apuramento. Apesar disso, a oposição publicou cerca de 80% das atas eleitoral na internet, que garantem provar que a oposição venceu as eleições. A própria agência Associated Press fez uma análise das 24 mil imagens de folhas de contagem (que representam 79% dos resultados) que estava codificada num QR Code. A AP descodificou esses códigos e chegou aos resultados de 10,26 milhões de votos. Desses, garante a AP, o principal candidato da oposição, Edmundo González recebeu 6,89 milhões de votos (mais do que os 6,4 milhões que Maduro diz que teve), enquanto Maduro terá tido apenas 3,13 milhões de votos.
PCP ataca o “provocador” Bugalho (que foi barrado pelo regime no aeroporto)
O antigo eurodeputado João Pimenta Lopes lembra no Avante! que esta já é a segunda eleição presidencial que teve “oportunidade de acompanhar na Venezuela” e que, tal como em 2018, deslocou-se a Caracas “a convite do Partido Socialista Unido da Venezuela”. Explica que o partido de Nicólas Maduro “naturalmente solicitou a minha acreditação como acompanhante eleitoral junto do Conselho Nacional Eleitoral, como aconteceu com muitas centenas de acompanhantes e observadores internacionais presentes.”
O membro do Comité Central do PCP critica as forças políticas convidadas pela oposição que tentaram entrar na Venezuela e não conseguiram, como foi o caso do eurodeputado do PSD e do PPE, Sebastião Bugalho: “Outros, incluindo deputados do Parlamento Europeu, em vez de seguirem os trâmites normais para serem acreditados como acompanhantes, não o fizeram, optando por montar uma provocação no aeroporto de Caracas“, acusa Pimenta Lopes.
O antigo eurodeputado comunista ignora, no entanto, que o próprio regime impediu que a União Europeia enviasse observadores às eleições. A Assembleia Nacional da Venezuela, de maioria chavista, fez um pedido ao Conselho Nacional Eleitoral da Venezuela para que retirassem o convite à UE (que chegou a existir) para enviar observadores às eleições da Venezuela por serem “grosseiros, canalhas, ilegais, ilegítimos”. Ainda assim, eurodeputados do PPE, como Sebastião Bugalho, optaram por ir numa missão ao país a convite de Maria Corina Machado. Não passaram do aeroporto.
O dirigente do PCP denuncia também o que chama de “ingerência externa” contra o Governo de Nicolás Maduro, o que diz ser “um processo de décadas liderado pelos EUA, apoiado pela UE e alguns governos na América Latina, particularmente de direita e extrema-direita, articulado com a extrema-direita golpista”. Acusa o Governo de António Costa de ter reconhecido o “fantache Guaidó” e de alinhar na “aldrabice” dos EUA e Paulo Rangel de ter entrado na “encenada farsa” da fronteira da Colômbia com a Venezuela.
Rangel relata na primeira pessoa situação a “um metro” da Venezuela e encontro com Guaidó
Entre o Partido Comunista da Venezuela e Maduro, o PCP escolhe Maduro
As relações entre o Partido Comunista Português e o Partido Comunista da Venezuela têm vindo a esfriar e chegaram ao auge de fricção na sequência de um ato eleitoral. Em vez de ficar ao lado do PCV, o PCP decidiu ficar ao lado do PSUV de Nicolás Maduro. O partido-irmão dos comunistas portugueses, com quem existem relações desde os tempos de Álvaro Cunhal (incluindo na clandestinidade), não perdoou a saudação da vitória de Maduro, enquanto o PCV luta por um escrutínio rigoroso dos votos.
O secretário-geral do Partido Comunista Venezuelano, Óscar Figuera — que chegou a ser reeleito em congressos onde esteve uma delegação do PCP — interpelou diretamente o partido liderado por Paulo Raimundo em declarações ao Observador: “Atrevo-me a fazer-lhes [ao PCP] a seguinte pergunta: acham que conhecem a Venezuela melhor do que nós?”.
Oscar Figuera faz ainda várias questões ao PCP em forma de denúncia: “Sabem como os trabalhadores e os sindicalistas que reclamam os seus direitos são presos? Sabem que os sindicatos não podem realizar as suas eleições porque [Nicolas Maduro] interveio judicialmente, porque o governo não tinha possibilidade de vencer junto dos sindicatos? Se eles sabem que se está a destruir parte da Amazónia como consequência da forma como se exploram as minas neste país? Se eles sabem que não se respeita a Constituição nos processos (judiciais), e que se incrimina quem o Estado considera que está a cometer um delito político?”
Indignado com o posicionamento dos portugueses, Oscar Figuera diz que vale a pena questionar o PCP “se o nosso ‘partido irmão’ está a privilegiar a situação do governo da Venezuela na geopolítica e não vê o que se está a passar com a classe trabalhadora e o povo venezuelano às mãos de um governo burguês”. Oscar Figuera também disse que tem um “grande apreço pela história do Partido Comunista Português”, mas contesta a leitura que os comunistas portugueses fazem da Venezuela: “Sabemos que o PCP considera que a Venezuela está num processo revolucionário, que tem um presidente com uma política patriótica, o que não é verdade porque o governo está a entregar a riqueza do país às grandes empresas internacionais”.
O assunto parece ser um embaraço para o PCP. Vários dirigentes e deputados têm manifestado indisponibilidade para entrevistas e debates sobre a Venezuela, feitos ao longo das últimas duas semanas pelo Observador. O dirigente Bernardino Soares, quando questionado sobre o assunto, disse numa conferência de imprensa que as divergentes “opiniões serão debatidas num quadro de fraternidade”. Mas, mais uma vez, Pimenta Lopes (que também não quis falar ao Observador) foi mais longe no jornal Avante e disse que “é conhecido o progressivo afastamento do PCV quanto ao processo bolivariano, a ponto de ter rompido em 2020 com o Grande Pólo Patriótico, que além do PSUV, integra outros partidos e forças políticas.”
O antigo eurodeputado diz que o PCP tem “consciência de problemas, contradições e insuficiências no processo bolivariano, que corajosamente tem resistido e prosseguido ao longo de 25 anos” e que a solidariedade com Maduro “não é sinónimo de apoio ou acordo com todos os aspetos e opções da política do governo venezuelano”. Ainda assim, explica, “a avaliação própria do PCP sobre este processo não o levará para uma qualquer posição que o associe às manobras do imperialismo e da extrema-direita venezuelana.”
Pimenta Lopes remete, aliás, para a posição do PCP sobre a rutura do PCV com o PSUV, que foi publicada no Avante há um ano. Mas, nesse artigo, a posição dos comunistas portugueses era muito mais solidária e prometia não fazer o que fez. Escrevia o PCP que o que rege as suas relações internacionais é o princípio da “não ingerência nos assuntos internos de outros partidos e do respeito mútuo, incluindo pelas diferenças”. Daí que tivesse “sempre procurado evitar uma qualquer iniciativa ou gesto que pudesse contribuir para o agravar de problemas”. Apesar desta promessa, no dia 29 de julho o PCP saudou de imediato a vitória de Maduro com um gesto que foi completamente contrário à solidariedade prometida ao PCV.
Nessa mesma posição de agosto de 2023, o PCP lamentava “profundamente os preocupantes e negativos desenvolvimentos que levaram à atual situação, com expressão quer na evolução das relações entre o PCV e o PSUV, quer em diversos posicionamentos, intervenções e práticas, quer na recente sentença da Sala Constitucional do Tribunal Supremo de Justiça da República Bolivariana da Venezuela relativos à direcção do PCV.”
Mais do que isso o PCP explicava nessa posição que “rejeita a judicialização de questões da vida partidária e considera que os desenvolvimentos em curso são contrários e dificultam o necessário diálogo que deve caracterizar as relações de forças revolucionárias e progressistas com vista à defesa dos interesses dos trabalhadores e do povo venezuelano, da soberania e independência da Venezuela”. Ou seja: o PCP há um ano estava ao lado do PCV contra as perseguições judiciais de que era alvo pelo regime de Maduro. O atual posicionamento é, por isso, uma inversão da posição tomada há um ano. Está agora mais ao lado de Maduro do que do seu parceiro histórico e partido-irmão.