Havia garantias de que seria a “cimeira da ação”, mas os sucessivos adiamentos e as longas horas de negociações — que acabaram por prolongar a COP28 até quinta-feira — faziam os ativistas pela justiça climática acreditar que seria só “mais um fracasso”. No entanto, esta quarta-feira, o sultão Al Jaber, que preside à cimeira para as alterações climáticas das Nações Unidas, que este ano se realiza no Dubai, disse que “arregaçou as mangas”, como já tinha prometido, e que fez com que as nações apertassem a mão a um “acordo histórico”.
Pela primeira vez em 30 anos, desde que quase 200 países se reúnem para discutir a urgência climática, foi aprovado um acordo para uma “transição longe dos combustíveis fósseis”, que pretende limitar o aquecimento global a 1,5ºC acima dos valores pré-industriais e atenuar as alterações climáticas.
Aliás, era esse o grande objetivo dos Emirados Árabes Unidos (EAU), quando decidiram acolher a 28.ª Conferência das Nações Unidas sobre o Clima (COP28), que decorre desde 30 de novembro, tendo o presidente da cimeira, o sultão Al Jaber, dito que seria “inevitável” a eliminação do petróleo, do gás e do carvão.
COP28 aprova acordo histórico para transição global dos combustíveis fósseis
No entanto, a COP ficou marcada por diversas revisões do Global Stocktake, nome dado ao acordo final da COP28, com os países exportadores de petróleo a bloquearem que esse objetivo fosse referido na versão final do documento e com as organizações, como a União Europeia, a barrarem qualquer esboço que não contivesse o termo “combustíveis fósseis”.
A madrugada de quarta-feira acabou por ser decisiva e por criar um acordo “histórico”, como definiu John Kerry, o enviado especial dos Estados Unidos para o clima. Mas o que tem o documento de tão relevante?
O que diz o “acordo histórico”?
Após o forte aplauso de pé, que se seguiu à aprovação do acordo da COP28, o sultão Al Jaber disse que o mundo tem finalmente “as bases para fazer com que uma mudança transformadora aconteça”. “Juntos confrontámos factos e colocámos o mundo na direção certa”, disse.
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Os países que participaram na COP28 assinaram diversos documentos, mas o de maior relevância — não só mediaticamente, como também para o combate às alterações climáticas — foi aquele que introduziu, pela primeira vez desde o Acordo de Paris, assinado em 2015, o termo usado para englobar o petróleo, o gás e o carvão: combustíveis fósseis.
Com 20 páginas e quase 200 cláusulas, o texto lança diversos apelos às nações e reconhece as diferenças entre elas. Quais são os termos do acordo?
- Apelo à transição, “de forma justa, ordenada e equitativa”, com vista ao abandono dos combustíveis fósseis.
- Incentivo a que as nações deixem de adicionar emissões de dióxido de carbono até meados do século.
- Apelo à triplicação da quantidade de energia renovável até 2030.
- Desafio à aceleração das tecnologias para retirar o carbono de centrais elétricas e de outras fontes de poluição e armazená-la no subsolo.
- Apelo à aceleração da redução das emissões provenientes dos transportes rodoviários, através de várias formas, incluindo o desenvolvimento de infraestruturas e a rápida implementação de veículos com emissões nulas.
- Reconhecimento de que as emissões poderão atingir um pico no futuro, mas que a data difere consoante se trate de um país desenvolvido ou de um país em desenvolvimento.
- Referência ao financiamento concedido para ajudar os países em desenvolvimento no combate às alterações climáticas e para a transição para energias renováveis.
O sultão disse que, com estas medidas, conseguiram “uma mudança de paradigma que tem o potencial de redefinir as economias”, mas avisou que, não tendo o acordo objetivos vinculativos, “só é bom se for implementado”. “Nós somos o que fazemos, não o que dizemos”, reforçou.
Apesar de o documento não obrigar os países a tomar medidas, “muitos dos políticos, ambientalistas e líderes empresariais presentes esperavam que enviasse uma mensagem aos investidores e decisores políticos de que é o princípio do fim dos combustíveis fósseis”, aponta o The New York Times.
Tal, no entanto, não será tão taxativo, pois já há diversos governos e defensores da justiça climática a notar a ausência de pontos importantes que constaram de outros documentos e a apontar lacunas.
Quais são as críticas?
Apesar de os EAU terem dado ouvidos às “perspetivas e preocupações” da Arábia Saudita e do Iraque, dois dos maiores exportadores de petróleo do mundo, quando estes reclamaram que a “redução e a eliminação progressiva dos combustíveis fósseis e a eliminação progressiva dos subsídios aos combustíveis fósseis contrariava os princípios do Acordo de Paris”, não fizeram o mesmo com os países em desenvolvimento ou com os que sofrem diretamente com as alterações climáticas. Pelo menos, é isso que eles alegam.
Arábia Saudita e Iraque rejeitam referência à eliminação dos combustíveis fósseis
Países como a Bolívia e Samoa e a Aliança dos Pequenos Estados Insulares, uma coligação entre 43 países — como Barbados, Cuba, Guiné-Bissau, entre outros —, muitos dos quais enfrentam o risco da subida das águas do mar, fizeram duras críticas ao documento assinado esta quarta-feira. Do que se queixaram?
- Financiamento: apesar de o texto abordar a “necessidade” de financiar os países em desenvolvimento para que consigam fazer uma transição energética e apostar nas energias renováveis, não refere que tenham de ser os mais ricos a prestar apoio.
- Ausência de um plano para redução das emissões de metano: se há termo que costuma constar do documento elaborado no final de cada COP é o que diz respeito à redução das emissões de metano. Este ano, além de não haver qualquer objetivo inscrito no documento, o gás, que é um dos mais potentes com efeito de estufa, não aparece no texto.
- Falta de equidade: ainda que sejam referidas as diferenças entre os países, estas não condicionam a data para a transição energética, com redução do consumo de combustíveis fósseis. Em vez disso, é reforçado que todos os países o devem fazer ao mesmo tempo, o que os representantes dos países em vias de desenvolvimento consideraram injusto, segundo a BBC, visto que os mais ricos beneficiaram “economicamente durante muito mais tempo da utilização de petróleo, gás e carvão”.
- Autorização para uso de “combustíveis de transição”: a frase “os combustíveis de transição podem desempenhar um papel importante na facilitação da transição energética” incomodou muitos dos participantes na COP28, que se queixaram da permissão do uso de combustíveis, como gás natural, que também emite carbono para a atmosfera. “O problema do texto é que continua a incluir lacunas que permitem aos Estados Unidos e a outros países produtores de combustíveis fósseis a continuação da sua expansão”, apontou o diretor do Centro para a Diversidade Biológica para a justiça energética, Jean Su.
Além destas, muitas outras críticas surgiram, nomeadamente vindas de países insulares, que acusaram os decisores de construir uma “canoa com fugas”, ao aprovar um acordo quando eles “não estavam na sala”.
Vim das minhas ilhas para trabalhar convosco na resolução do maior desafio das nossas gerações: construir uma canoa. Construímos uma com um casco fraco e com fugas. No entanto, temos de a pôr na água, porque não temos outra opção. Temos de navegar nesta canoa. Temos de ser honestos: não houve inclusão. O facto de esta decisão ter sido tomada sem discussão é inaceitável”, atacou o representante das Ilhas Marshall, John Silk, dizendo que o acordo “não é suficiente” e que espera que ainda “este ano as ilhas sejam ouvidas”.
Aliás, a Dinamarca e a Nova Zelândia apelaram à “solidariedade” com estes países e disseram que era preciso destinar-lhes mais ajuda. Apesar de os ministros das alterações climáticas de ambos os países terem reforçado ao The Guardian que estão felizes com o facto de “o mundo ter abordado a questão de que precisa de afastar dos combustíveis fósseis“, disseram que é preciso financiar os países mais afetados pelas alterações climáticas.
Quanto ao apelo à aceleração de tecnologias que capturem a poluição de carbono, já diversos cientistas chamaram a atenção de que essas podem ser dispendiosas e de que não se conhece realmente a sua eficácia, alegando que essa medida é apenas uma distração para a eliminação dos combustíveis fósseis.
Objetivo será alcançado? Cientistas dizem que não e desvalorizam acordo
Apesar de reconhecerem que este acordo foi efetivamente “histórico”, por ser a primeira vez que o termo “combustíveis fósseis” é mencionado, os cientistas e especialistas dizem que não é pelas melhores razões. Isto porque perderam a oportunidade de os eliminar completamente.
“Não, o acordo não permitirá que o mundo mantenha o limite de 1,5°C, mas, sim, o resultado é um marco fundamental”, Johan Rockström, professor alemão do Potsdam Institute for Climate Impact Research, ao The Guardian.
Este acordo torna claro para todas as instituições financeiras, empresas e sociedades que estamos finalmente — com oito anos de atraso em relação ao calendário de Paris — no verdadeiro “princípio do fim” da economia mundial movida a combustíveis fósseis. No entanto, a declaração relativa aos combustíveis fósseis continua a ser demasiado vaga, sem limites rígidos e responsáveis para 2030, 2040 e 2050″, argumentou.
Também o professor Mike Berners-Lee, da Universidade de Lancaster, apontou que a “COP28 teve o resultado de sonho da indústria dos combustíveis fósseis, porque parece um progresso, mas não é”.
“O mundo está a aquecer mais depressa e mais poderosamente do que a resposta da COP para lidar com isso“, disse ainda o professor Martin Siegert, da Universidade de Exeter, no Reino Unido, reforçando que o facto de a cimeira não ter feito uma “declaração para parar a queima dos combustíveis” representa uma “tragédia para o planeta e para o futuro”.
Estes comentários não foram bem recebidos pelo presidente da COP, que disse que “esta é uma verdadeira vitória para aqueles que são sinceros e genuínos na abordagem deste desafio climático global”. “Esta é uma verdadeira vitória para aqueles que são pragmáticos, orientados para os resultados e liderados pela ciência”, acrescentou.
O que dizem os países e as grandes organizações mundiais sobre o acordo?
Com o secretário-geral da ONU, António Guterres, a apelar aos que se recusam a mencionar a transição para que, “quer gostem ou não, a eliminação progressiva dos combustíveis fósseis é inevitável”, e com a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, a traçar o “início da era pós-fóssil”, diversos dirigentes dos países participantes e das organizações deram a sua opinião pública sobre o acordo “histórico”.
COP28: União Europeia rejeita proposta que contém elementos “completamente inaceitáveis”
A Arábia Saudita, por exemplo, que deu luz verde ao documento por não querer ser a principal razão de confronto nas negociações, como aponta a BBC, disse que “o princípio das responsabilidades comuns e diferenciadas deve ser respeitado”.
Já a China acusou os países ricos de hipocrisia, dizendo que “é lamentável que tantas decisões importantes relacionadas com os países em desenvolvimento não tenham sido tomadas”, nomeadamente no que diz respeito ao financiamento.
E foi com o representante chinês que o enviado especial dos Estados Unidos para o clima, John Kerry, aproveitou para mencionar o ponto de viragem impulsionado pelo documento, destacando a primeira medida a ser implementada.
A primeira coisa, e a mais fácil, que os países precisam de fazer para concretizar este compromisso é deixar de construir novas instalações de carvão não renovado e nós vamos continuar a lutar por isso”, disse.
O representante da Rússia disse que o resultado da COP27 era “ambicioso”, apesar de definir que os países têm responsabilidades diferentes. “Cada parte pode escolher a melhor receita para a descarbonização”, disse, acrescentando que, como a nação faz parte da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), deve ter direito a mais tempo para efetuar a transição.