Por um lado, o memorando de entendimento era visto como um guião e uma “oportunidade” para fazer reformas no Estado atrasadas há décadas, por outro, seria a sentença de morte do Estado social e dos direitos conseguidos com o 25 de Abril.
O Estado social é o bastião da esquerda na praça pública: o Serviço Nacional de Saúde, a escola pública e a Segurança Social. A direita não o usa como bandeira, mas reclama para si o papel de o manter sustentável. Ao longo de três anos, foi este o discurso extremado: de um lado, os que acusam o Governo de atacar o Estado social, do lado do Governo, salta o discurso da responsabilidade para garantir os direitos futuros. Três anos depois, os portugueses perderam direitos, mas suficientes para pôr em causa o Estado social?
No que aos serviços sociais diz respeito, os verbos utilizados pelo Governo podiam até ter leitura antagónica.
Aumentar: as taxas moderadoras, o número de alunos por turma, a idade da reforma ou as contribuições para a Segurança Social.
Reduzir: o valor das pensões, das pensões de sobrevivência; o valor do subsídio de desemprego e de doença.
“Se fosse por minha vontade, iria mais longe. Este Estado social que nós temos, com a economia como está, não se pode preservar como está. É insustentável. Não vai resistir”, diz Medina Carreira ao Observador. Na prática, para o antigo ministro das Finanças, as reformas feitas pelo Governo mais não foram do que “retoques”. “Reformar o Estado social, é reformar as suas componentes. E reduzir para ser possível dentro da situação económica que nós temos. Ou temos uma economia que crescer muito mais ou não é possível manter”, acrescenta em declarações ao Observador. Sintetizando: “O Estado social não vai em poesias, vai em números”.
Mas o resultado dessa redução não seria o Estado mínimo, assegurando apenas a proteção aos mais pobres? Se essa crítica foi recorrente ao Governo, a equipa de Passos agarrou-se a argumentos para as enfrentar. Por dezena de vezes se socorreu do exemplo do aumento das pensões mínimas ou das exceções aos cortes nas pensões e nos salários e até das melhorias dos subsídios de desemprego para casais desempregados. E esse limite onde fica?
Consequências
Comece-se pelos desempregados. A taxa de desemprego passou de 7,6% em 2008 para 16,3% do total de 2013. E um aumento do desemprego teve efeitos em catadupa: aumento da despesa social com subsídios, aumento dos desencorajados e logo um aumento das desigualdades aumentando o fosso entre empregados e desempregados. Um estudo do Observatório das Desigualdades mostra a influência do desemprego e da proteção social nas desigualdades durante o período pós-crise. E conclui (apesar de não analisar o período de 2014) que a “exclusão laboral tem vindo a acumular-se com a exclusão do sistema de proteção social de uma parte crescente da população desempregada, o que implica uma pauperização aguda das suas condições materiais e subjetivas de existência”.
E o desemprego terá sido a causa também para o aumento da população residente em risco de pobreza ou de exclusão social. Em 2009, a taxa era de 24,9%, em 2013 já era de 27,4%, um aumento gradual.
No que toca à Saúde, o último relatório anual sobre o acesso aos cuidados de saúde no SNS (referente ao ano de 2012) já referia que a crise económica permite “antever a possibilidade de dificuldades acrescidas no acesso a cuidados de saúde”, mas que, em relação ao ano de 2011, “o SNS não só manteve o nível de acesso aos cuidados de saúde verificado em anos anteriores, como também possibilitou uma melhoria do acesso aos cuidados de saúde pelos portugueses”.
Já no que à Educação diz respeito, os resultados do último PISA (referentes ao período 2010/2012 – apanhando apenas um ano de troika), mostram melhorias na matemática, não apenas reduzindo o número de alunos com mau desempenho, como aumentando aqueles que têm muito bom desempenho. Mas piorou no entanto na leitura e nas ciências. Apenas o próximo relatório da OCDE poderá mostrar a evolução durante os anos da crise. Durante este período, o Governo aumentou o número de alunos por turma, fazendo com que se reduzissem o número de professores no sistema de ensino, o que para a esquerda é um fator que levará a uma redução da qualidade do ensino.
Mas as maiores mexidas aconteceram no sistema de pensões. Quase todos os anos os pensionistas, seja da Segurança Social seja da Caixa Geral de Aposentações, foram alvo de medidas de corte ou de taxação das pensões. “Neste momento, dizer que, por exemplo, que o sistema de pensões público é insustentável é tão perigoso como dizer que é totalmente sustentável. Não se pode fazer um filme da sustentabilidade ou falta dela tirando uma fotografia num ano ou dois concretos. Evidentemente, que neste contexto em que o produto não cresceu, em que a taxa de desemprego aumentou, em que há mais dificuldades sociais, a vulnerabilidade dos sistema sociais se torna maior. Mas eles existem justamente para acorrer a situações de maior dificuldade. Os sistemas de segurança social têm um défice em tempos de crise, pois evidentemente que têm. É para isso que foram criados: para serem amortecedores ou estabilizadores automáticos da função social do Estado”, sintetiza Bagão Félix.
Os últimos dados dão conta que a Segurança Social teria um défice de 1253 milhões de euros, não fossem as transferências do Orçamento do Estado. O défice foi por isso o argumento do Governo para lançar medidas que afetem os pensionistas tanto os futuros como os atuais. Depois da Contribuição Extraordinária de Solidariedade (CES), a última medida a afetar os pensionistas será a Contribuição de sustentabilidade.
Ao longo dos três anos da troika, o Estado social sofreu os mais variados cortes. “Do ponto de vista financeiro, não temos dinheiro para este Estado social. É por falta de dinheiro, que temos de cortar. O poder político (que sair das eleições) tem de cortar mais do que este Governo cortou”, diz ao Observador Medina Carreira.
E Bagão Félix, para futuro, pede um novo “contrato social” até porque “não se pode ter uma visão maniqueísta, que de um lado uns consideram que está tudo bem e do outro lado que está tudo mal. O Estado social exige um novo contrato social, uma nova moldura ética, um estado mais possibilitador, um Estado que conjugue esta equação de eficiência e equidade”.
Trabalho adiado pelo menos até 2015.
Veja aqui os outros mitos:
Contestação social seria violenta
Governo não chegava até ao fim da legislatura
Programa perfeito para reformas
Dinheiro da troika não era suficiente