— Peço a Deus nosso Senhor que não feche. Mas se fechar pelo menos que elas levem qualquer coisinha…
Da vazia Rua Annes de Oliveira, a estrada principal de Montalvo, concelho de Constância, Irene Gaspar, 84 anos, dá nas vistas. Não pela estatura, mas pelos gestos persistentes de quem esfrega o sabão azul e branco nas toalhas brancas que ora mergulha na água do tanque ora bate na pedra. Está sozinha no lavadouro da terra e há hábitos que não se apagam. “Gosto das máquinas de lavar, mas algumas coisas ficam melhor à mão”, atira, com um lenço azul aos ombros e o som da água a correr da torneira pública ao fundo.
Há 45 anos, as mãos que agora ensaboam as toalhas nos “Lavadouros de Montalvo” ajudaram a limpar, nas vésperas da inauguração, a fábrica da Tupperware, a empresa histórica da freguesia que, segundo foi anunciado, tenciona agora fechar portas, pondo em risco cerca de 200 postos de trabalho. Esteve lá três meses e tentaram convencê-la a ficar mais tempo. Mas não quis. “Gosto mais do campo. Sempre trabalhei no campo.”
A ligação à fábrica nem por isso se perdeu. Hoje, a Tupperware emprega as duas filhas, uma com “62 ou 64, nem sei bem”, a outra seis anos mais nova. O genro também lá esteve, mas reformou-se; os netos também passaram por lá uns tempos, mas saíram para outras empresas. É, aliás, difícil passar por alguém nas silenciosas ruas da freguesia que não conheça quem lá trabalhe ou lá tenha trabalhado. Também por isso, o anúncio do fecho abalou-a. “As minhas filhas choraram. Há muita camaradagem. Andam desgraçadas das mãos e dos braços, mas gostam daquilo. Gostam do pessoal. Estamos à espera para saber o que vai acontecer.” Tanto elas como as outras dezenas de trabalhadores têm vivido os últimos dias em incerteza e incógnita.
O anúncio público do fecho foi feito pela Câmara de Constância, numa publicação no Facebook, depois de muito se especular sobre as consequências que poderia trazer o processo formal de insolvência nos EUA avançado pela Tupperware Brands, a casa-mãe. Oito de janeiro foi a data apontada para o encerramento da fábrica onde há muito se admitia o fim, mas nunca se acreditou realmente nele.
Mas um dia antes, esta terça-feira, vários trabalhadores com quem o Observador conversou à porta da empresa, em Montalvo, ainda desconheciam o futuro que lhes reservava — a eles e à fábrica. Dizem-se em suspenso até à reunião de quinta-feira que terão com o diretor e os advogados da fábrica e onde esperam conhecer os próximos passos. Também querem saber a que compensações terão direito se o fecho e o despedimento forem as vias escolhidas. Ou perceber que outras hipóteses estão em cima da mesa.
Trabalhadores da Tupperware convocados para reunião na quinta-feira com diretor e advogados
“Na última reunião que tivemos, o diretor disse-nos que há uma de duas soluções: a insolvência ou a liquidação“, conta um trabalhador, que pediu para não ser identificado. “Disseram-nos para virmos hoje [terça-feira] e amanhã [quarta-feira] para trabalhar”, comenta uma trabalhadora. E na quinta-feira, também? Foram convocados à fábrica, mas não sabem se vão laborar. “Saberemos nesse dia de manhã”, atira outro funcionário.
A incógnita tem-se adensado porque, como escreveu o Observador, não entrou qualquer pedido de reestruturação ou de insolvência na justiça portuguesa. A DGERT (Direção-Geral do Emprego e das Relações de Trabalho) também indicou, esta segunda-feira, em resposta ao Observador, que, “até à presente data, não foi registado qualquer processo ou pedido nesta Direção-Geral referente à empresa Tupperware” para quota de despedimento coletivo ou informação de encerramento da fábrica.
“Não há comunicação connosco“, lamenta um trabalhador, que diz ter sabido pelos jornais sobre a intenção de fecho de portas. Também espera com expectativa pela reunião de quinta-feira, mas já pôs mãos à obra. “Comecei a enviar CV [curriculum vitae]”, diz, apontado em direção de um aglomerado de outras empresas da zona industrial de Montalvo. “Estamos praticamente todos a fazer isso”, acrescenta o colega ao lado.
Já as filhas de Irene Gaspar, segundo a mãe, ainda não começaram a pensar no que fazer depois, se o caminho for — efetivamente — o encerramento da fábrica. Também precisam de esclarecer que compensação terão. Mas há uma esperança miúda de que a empresa volte atrás, que alguma solução de última hora surja e faça mudar o rumo da icónica fábrica e dos seus quase 200 trabalhadores, a maioria entre a casa dos 40 e dos 60.
“Quem lhes vai dar trabalho a elas com aquela idade? Já para os novos não há… Têm as rendas das casas para pagar”, observa Irene. “Peço a Deus nosso senhor que não feche. Mas se fechar pelo menos que elas levem qualquer coisinha.”
Tupperware leva consigo outro negócio de décadas
O carro desconhecido estacionado num dos acessos do seu terreno chama à atenção de António Dias Mariano, de 75 anos. “Também estão aqui pela Tupperware?”, pergunta, dentro do carro todo-o-terreno que percorreu uma estrada de terra batida ladeada pelas oliveiras que lhe pertencem. Tem vista direta para a fábrica branca que, tal como Irene Gaspar, também ele viu nascer — e crescer.
“Começou como um fábrica pequena e foi expandindo. Há uns anos fecharam uma fábrica em França e outra em Madrid e esta foi crescendo. Aumentaram brutalmente o edifício ali para trás”, diz. A fábrica foi-se expandido e consigo vieram “outras indústrias que depois não se aguentaram e fecharam”. “Eu tinha uma fábrica da rações aí acima que vendi. Tínhamos um matadouro grande. Isto já foi uma zona industrial ativa”, conta. Agora, não tanto, confessam vários moradores com que o Observador foi falando pelas ruas de Montalvo.
“A preocupação é geral. É muita gente, ainda mais se tivermos em conta o pessoal que não trabalhava na Tupperware mas fazia serviços só para eles”, acrescenta António Mariano, nascido a poucos quilómetros, em Abrantes, mas que ali fez vida.
É que se cair, a Tupperware não irá sozinha. Além dos funcionários da fábrica ou da rede de vendedores em suspenso que se socorriam da marca para ganhar um extra, pelo menos uma empresa dependia a 100% da marca cujo produto deu nome a um objeto. E, sabe o Observador, está neste momento sem atividade. Os poucos trabalhadores que já tinha — no auge chegaram a 30, mas foram reduzindo nos últimos anos — foram dispensados.
Ironicamente, é na Rua da Esperança que os armazéns da Transmontalvo — que se dedicou durante décadas ao embalamento de produtos da Tupperware — se vão mantendo de pé, embora sem a atividade que teve que durante anos. Os donos da empresa — que o Observador encontrou a desmontarem as prateleiras que no passado acomodavam as caixas de cartão com os produtos da marca, que seguiam depois para outras geografias — não quiseram prestar declarações.
As poucas alternativas de emprego. E a empresa que vai “absorver o máximo de trabalhadores que conseguir”
Do outro lado do balcão da casa de apostas da aldeia, um dos poucos sítios com movimento ao início da tarde desta terça-feira, em Montalvo, José Carlos da Silva Dinis, 63 anos, recorda como a fábrica, há mais de 40 anos, deu uma nova cara à localidade. Também foi sondado para ir trabalhar para lá, pela tia que aí fazia limpezas. Mas também sempre recusou — o trabalho como vendedor de produtos alimentares pagava-lhe melhor e dava-lhe a oportunidade de conduzir de um lado para o outro, o que sempre gostou de fazer.
Nem por isso deixou de valorizar o que a empresa deu à terra. “Trouxe muita gente e o pessoal ganhava bem, tinha dinheiro na altura, para fazer casas, comprar casas. Antigamente, para aí 80% do pessoal era de Montalvo”, recorda. Desde então, muito mudou. Na freguesia “não há muitas soluções” se as 200 pessoas perderem o emprego. O comércio é pouco expressivo e noutras indústrias “está tudo preenchido”. As obras de construção civil “também estão paradas”. “Basicamente resta-lhes a agricultura”. “Vai ser complicado. Muita gente está a trabalhar lá e há casais. Esses casos são muito difíceis”, comenta.
Também não acredita que um eventual encerramento da fábrica leve a um êxodo para outras regiões. “Estamos a falar de pessoas com 40, 50, 60 anos. Não acredito que vendam tudo aqui para irem para outro sítio”, acredita.
Uma funcionária de uma empresa da zona industrial também observa: “O que me preocupa mais é a quantidade, são muitas pessoas. Embora haja opções no Sardoal, em Constância, em Abrantes, são empresas que já podem estar completas”. A empresa onde trabalha dificilmente conseguirá captar trabalhadores da Tupperware dado que um dos requisitos de admissão é já terem formação e experiência no ramo da serralharia e soldagem — o que, segundo diz, não combina com o trabalho que se faz na fábrica com fim anunciado.
“Vão-se ver aflitos“, diz outra funcionária, de outra empresa uns metros ao lado. “Talvez se forem mais para a zona do Entroncamento ou Torres Novas — mais ‘citadinas’, digamos assim — consigam. Ou então podem-se sujeitar a trabalhos temporários, que há muitos por aí.”
Já António Mariano lembra que “há uma empresa em Abrantes que eventualmente poderá vir aqui buscar alguma pessoa”. “Mas também aí fala-se que a indústria não está grande coisa”, refere. Na freguesia, lojas há poucas e um restaurante sobrevive (embora com bastante movimento diário).
No concelho de Constância, outro dos grandes empregadores é a Caima, do grupo Altri, que produz pasta de papel. O Observador tentou contactar a empresa para perceber se está disponível para absorver algum número de trabalhadores da Tupperware, mas não obteve resposta.
Dos vários empregadores sondados pelo Observador, na tarde desta terça-feira, apenas um assumiu disponibilidade e interesse em “absorver” alguns dos trabalhadores que possam vir a ser demitidos: a Boccard, que trabalha no ramo da metalomecânica. Fonte da direção conta ao Observador que ainda antes do anúncio do fecho — quando, em dezembro, a situação já parecia incerta — contratou alguns trabalhadores vindos da Tupperware.
Já depois do anúncio do fecho, a empresa foi contactada por outros e ela própria sondou potenciais candidatos. Há quem já esteja em entrevistas, mas fonte da direção diz que o processo está a ser tratado com pinças, dado que os trabalhadores ainda não sabem que futuro lhes reserva na Tupperware. “Estamos sensíveis com a situação e tentaremos ajudar dentro da comunidade, daremos prioridade aos locais”, acrescenta.
A Boccard tem, atualmente, 100 trabalhadores, entre efetivos e temporários, e tem “perspetivas de projetos”. “Vamos tentar absorver o máximo de pessoas possível, tendo em conta as nossas necessidades e as delas.”
Câmara procura soluções, mas admite que situação é complicada
Por sua vez, Sérgio Oliveira, presidente da Câmara de Constância, diz não conhecer casos de empresas que já tenham oferecido emprego a trabalhadores da Tupperware — onde, assegura, ainda não houve despedimentos. Mas garante que a autarquia apoiará “dentro daquilo que são” as suas “competências”, incluindo no âmbito da cantina social para pessoas em necessidade.
O Instituto do Emprego e da Formação Profissional (IEFP) está a “tratar das diligências normais” junto dos trabalhadores, acrescenta ainda. Dos 200 trabalhadores, 45 são do concelho de Constância e Sérgio Oliveira tem recebido alguns deles para lhes dar conta das opções em vista. “Estamos a falar de pessoas na casa dos 50 anos. São novas para se reformarem”, diz.
E embora admita que não haverá vagas suficientes para todos no concelho, se o fecho se concretizar, não acredita que as pessoas deixem a localidade para procurar emprego noutros lados — “só por necessidade extrema”. “Não será fácil absorver toda a gente. Será um período complicado. Mas faremos tudo o que estiver ao nosso alcance para ajudar.”
Entretanto, à porta da Tupperware, não havia esta terça-feira grandes sinais de que o fim esteja próximo: o parque de estacionamento está quase completo, há camiões a entrar e a sair (o Observador não conseguiu apurar se cheios ou vazios nem o destino); trabalhadores a substituir o turno anterior. A certa altura, um camião da transportadora Laso entra e agrega alguns trabalhadores à porta dos escritórios enquanto retira um contentor modular, mas somos advertidos que não é totalmente incomum, nem necessariamente um sinal do fim).
Segundo confirmou ao Observador o autarca Sérgio Oliveira, os turnos continuam a funcionar “como sempre” e às 15h00 a troca aconteceu de forma aparentamente normal. Pouco antes dessa hora, um carro traz cinco mulheres — de localidades distintas nos arredores — que chegam para picar o ponto. Para elas só o dia seguinte não é, para já, uma incógnita — foram convocadas para estar na fábrica, a trabalhar. Quinta-feira, “logo se vê”.
Uma delas, com 62 anos, admite que uma das vias que possa seguir — caso se confirme o encerramento e o desemprego — seja a reforma antecipada por desemprego de longa duração. Outra responde-lhe: “Mas eu não tenho idade para a reforma! Ainda quero arranjar qualquer coisa antes disso”. Sem a reunião de quinta-feira, o futuro é, mais do que nublado, incerto. Também elas preferiam que a icónica fábrica não fechasse. Mas se fechar, também esperam receber, como dizem ter direito, “qualquer coisinha”.