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Há leis específicas sobre a guerra?
Pode parecer quase contraintuitivo. A guerra armada é quase sempre sangrenta, caótica, mortífera, potencialmente injusta e sempre devastadora para as populações envolvidas. As imagens que nos chegam por estes dias da Ucrânia — centenas de milhares de refugiados a cruzarem as fronteiras do país, mísseis a cair em lugares históricos das cidades ucranianas, centenas de mortes civis incluindo crianças e milhares de mortes entre os soldados russos e ucranianos — parecem incompatíveis com a ideia de ordem pública, justiça e diplomacia. Mas a verdade é que a guerra também tem leis. E quem as viola pode ser punido por isso.
Como explica o guia de ética da BBC, “o conceito de crime de guerra é recente”. Com efeito, “antes da Segunda Guerra Mundial, era genericamente aceite que os horrores da guerra faziam parte da natureza da guerra, e os exemplos registados de crimes de guerra podem ser encontrados desde os tempos dos gregos e dos romanos”. Até ao século XX, “os exércitos comportavam-se frequentemente de modo igualmente brutal contra soldados inimigos e civis não combatentes”. Se eram punidos ou não por isso, “dependia de quem, no final, ganhasse a guerra”.
No fim da guerra, a justiça pelos horrores cometidos durante o confronto era feita de modo igualmente brutal. Do lado que saísse vitorioso, dificilmente haveria punições contra os líderes políticos e militares que ordenassem massacres. Do lado derrotado, os comandantes dificilmente escapariam a uma execução sumária ou à prisão, sem direito a um julgamento justo. “Não havia uma abordagem estruturada sobre como lidar com ‘crimes de guerra’ nem um acordo geral de que os líderes políticos e militares deviam assumir qualquer responsabilidade criminal pelos atos dos seus Estados ou dos seus exércitos”, explica ainda a BBC.
As práticas ancestrais da guerra indiscriminadamente violenta e sem consequências criminais perduraram até há pouco mais de 100 anos. Foi na viragem do século XIX para o século XX que esta situação começou a mudar. Como explica a agência das Nações Unidas para a prevenção do genocídio, “o conceito de crimes de guerra desenvolveu-se particularmente no final do século XIX e no início do século XX, quando o direito humanitário internacional, também conhecido por direito do conflito armado, foi desenvolvido”. Na segunda metade do século XIX, alguns primeiros acordos internacionais tiveram como objetivo regular determinadas partes dos conflitos armados, mas o primeiro grande tratado internacional sobre o assunto terá sido a Convenção de Genebra de 1864, que introduziu alguns conceitos novos na lógica da guerra: determinou que os feridos deveriam ser todos tratados, independentemente da sua nacionalidade; que os médicos, enfermeiros e unidades de saúde eram dotados de neutralidade inviolável, podendo tratar feridos de qualquer das partes em conflito; e que as partes em guerra estavam proibidas de atacar os meios de saúde identificados com uma cruz vermelha sobre um fundo branco.
Seguiram-se dois dos mais importantes tratados internacionais sobre o direito da guerra: as convenções da Haia. Assinados em 1899 e em 1907, estas convenções “centram-se na proibição de uso, pelas partes em conflito, de certos meios e métodos de guerra”.
Contudo, nenhum momento terá marcado tanto a evolução do conceito de crimes de guerra como o que aconteceu depois da II Guerra Mundial, com os julgamentos de Nuremberga — uma iniciativa levada a cabo pelos países aliados para atribuir aos líderes políticos e militares da Alemanha Nazi um julgamento completo pelos horrores da guerra e do Holocausto. Como explicava em 2020 em entrevista ao Observador o procurador Ben Ferencz, que aos 101 anos é o único procurador vivo que participou naquele julgamento histórico, os julgamentos de Nuremberga foram, especificamente, um modo de romper com a prática antiga da vingança e adotar uma posição de justiça para com a parte derrotada. Ferencz contou como, quando participou nas expedições de libertação dos prisioneiros dos campos de concentração nazis, viu um conjunto de prisioneiros a assassinar um guarda das SS, atirando-o vivo para dentro de um crematório. “Acho que foi uma coisa horrível. Quando fiz as declarações iniciais do maior julgamento de homicídio na História da Humanidade, disse especificamente: ‘A vingança não é o nosso objetivo. O que procuramos aqui é justiça.’”
Entrevista. Ben Ferencz tem 100 anos e é o último procurador dos julgamentos de Nuremberga
Durante os julgamentos de Nuremberga, sentaram-se no banco dos réus mais de duas dezenas de altas figuras da Alemanha Nazi, incluindo ministros do governo de Hitler e líderes militares. No final, vários foram condenados à morte por enforcamento ou a penas de prisão entre os 10 e os 20 anos.
Os julgamentos de Nuremberga são unanimemente considerados um dos pontos de partida para o direito internacional moderno. Foi na sequência daquele julgamento histórico que, ao longo do século XX, foram assinados alguns dos tratados internacionais mais importantes, incluindo a Declaração Universal dos Direitos Humanos, as quatro Convenções de Genebra e os seus protocolos adicionais (que atualizaram a primeira Convenção de Genebra, do século XIX, e se centram na proteção dos civis, dos prisioneiros de guerra, dos profissionais de saúde, dos prestadores de ajuda humanitária e, genericamente, de todas as pessoas não diretamente envolvidas no conflito armado) ou os princípios de Nuremberga, que estabelecem os elementos que permitem identificar o que são crimes de guerra.
Os julgamentos de Nuremberga também lançaram as bases para a criação, já no final do século XX, do Tribunal Penal Internacional, na Haia, instituição que hoje tem a jurisdição para o julgamento dos crimes de guerra.
Na prática, quais os atos que são crimes de guerra?
Atualmente, o direito penal internacional é composto por dezenas de tratados e acordos internacionais que, ao longo do século XX, foram detalhando, consolidando e aumentando o tipo de atos que são considerados crimes de guerra. Enquanto as Convenções da Haia determinavam quais os meios e métodos de guerra armada que são proibidos e as condições que permitem que dois países ou blocos entrem em guerra, as Convenções de Genebra regulamentam o modo como as partes em guerra devem lidar com os civis, os prisioneiros de guerra e outras partes que não estão em conflito. O protocolo de Genebra, assinado em 1925, por exemplo, proíbe o uso de gases asfixiantes e venenosos durante um conflito armado.
O Estatuto de Roma, assinado em 1998 com vista à criação do Tribunal Penal Internacional, inclui a lista de todos os crimes sob jurisdição do TPI, que se subdividem em quatro categorias: genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crime de agressão. Em teoria, numa guerra como o atual conflito armado da Rússia contra a Ucrânia, poderão estar em causa as quatro categorias de crime.
Na categoria de crimes de guerra (que se encontram detalhados nas numerosas alíneas do artigo 8.º do Estatuto de Roma e que pode ler na íntegra aqui), destacam-se:
- O homicídio intencional;
- A tortura ou o tratamento desumano, incluindo experiências biológicas;
- Obrigar um prisioneiro de guerra ou outra pessoa protegida a servir nas forças armadas de uma potência hostil;
- Intencionalmente privar um prisioneiro de guerra ou outra pessoa protegida do direito a um julgamento justo e regular;
- A deportação ilegal;
- Fazer reféns;
- Dirigir intencionalmente ataques contra a população civil ou contra indivíduos civis não envolvidos nas hostilidades;
- Dirigir intencionalmente ataques contra pessoas, instalações, material, unidades ou veículos envolvidos na assistência humanitária ou na manutenção da paz ao abrigo da Carta das Nações Unidas;
- Lançar um ataque sabendo, à partida, que ele causará perda de vidas ou ferimentos em civis;
- Atacar ou bombardear, por qualquer meio, cidades, vilas ou edifícios indefesos que não sejam objetivos militares;
- Matar ou ferir um combatente que já tenha deposto as suas armas, não tenha meios de defesa e já se tenha rendido;
- Usar de modo impróprio a bandeira branca de rendição, os uniformes militares do inimigo ou das Nações Unidas ou os símbolos protegidos pela Convenção de Genebra (como a cruz vermelha), causando mortes ou ferimentos como resultado;
- Transferir populações civis para territórios ocupados;
- Atacar edifícios religiosos, educativos, artísticos, científicos, humanitários, monumentos históricos, hospitais, enfermarias e outros lugares que não sejam objetivos militares;
- Usar venenos, gases asfixiantes e outros materiais similares;
- Usar armas, projéteis e explosivos que são proibidos pelo direito internacional por causarem destruição e sofrimento desproporcionais;
- Cometer crimes sexuais, incluindo violação, escravatura sexual, prostituição forçada ou gravidez forçada, durante o conflito armado;
- Recorrer à fome da população civil como meio de guerra;
- Alistar crianças abaixo dos 15 anos de idade nas forças armadas.
A esta lista somam-se muitos outros potenciais crimes cometidos durante um conflito armado, detalhados no Estatuto de Roma. As partes em conflito podem ainda ser julgadas no Tribunal Penal Internacional por outros crimes sob a jurisdição daquele organismo e que podem ser invocados durante um julgamento de guerra.
Bombas de estilhaço e de vácuo. A Rússia pode estar a cometer crimes de guerra na Ucrânia
Um deles é o crime de genocídio, que abrange um conjunto de atos “cometidos com a intenção de destruir, total ou parcialmente, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso”. Incluem-se atos de homicídio, tortura física ou mental, controlo de natalidade ou transferência das crianças desse grupo para outros grupos.
Podem ainda estar em causa crimes que caem na categoria mais ampla de “crimes contra a humanidade”, e que incluem o homicídio praticado de modo sistemático contra uma população, o extermínio em massa, a deportação forçada de partes da população, a tortura, os crimes sexuais, a perseguição política, racial, nacional, étnica, cultural, religiosa ou de género, o desaparecimento de pessoas, o apartheid, ou “outros atos desumanos de carácter semelhante, com a intenção de causar grande sofrimento, ferimentos graves ao corpo ou danos à saúde física ou mental”.
Por fim, o Tribunal Penal Internacional tem ainda jurisdição sobre o chamado “crime de agressão”, uma figura jurídica do direito internacional que poderá vir a estar em causa num eventual julgamento relacionado com a atual guerra entre a Rússia e a Ucrânia.
“O ‘crime de agressão’ significa o planeamento, a preparação, a iniciação ou a execução, por uma pessoa em posição de exercer efetivamente controlo sobre a ação política ou militar de um Estado, de um ato de agressão que, pelo seu carácter, gravidade e escala, constitua uma violação manifesta da Carta das Nações Unidas”, explica o Estatuto de Roma.
Entre os ações que se qualificam como potenciais atos de agressão contam-se “a invasão do território de um Estado ou o ataque contra o mesmo pelas forças armadas de outro Estado, ou qualquer ocupação militar, ainda que temporária, decorrente dessa invasão ou desse ataque, ou a anexação pelo uso da força do território, no todo ou em parte, de um outro Estado”. Inclui-se também o bombardeamento do território de outro Estado, o bloqueio de portos ou zonas costeiras, o ataque às águas territoriais de outro Estado, ou até mesmo o envio, por parte de um Estado, de grupos armados ou mercenários para executar missões contra um outro Estado.
Quem pode ser acusado de cometer crimes de guerra?
O Estatuto de Roma dedica 12 artigos a explicar quem pode ser investigado, acusado, julgado e condenado por crimes de guerra no Tribunal Penal Internacional.
Segundo o artigo 25.º do estatuto que regulamenta o funcionamento do TPI, pode ser alvo de uma investigação e julgamento qualquer pessoa individual que seja “individualmente responsável e sujeita a punição ao abrigo deste estatuto”. Isto significa, em primeiro lugar, alguém que “comete um destes crimes, quer individualmente, juntamente com outra pessoa ou através de outra pessoa, independentemente de a outra pessoa ser ou não criminalmente responsável”.
Mas também pode ser visada pelo TPI uma pessoa que “ordena, solicita ou induz à prática de um crime destes que ocorra de facto ou seja tentado”. Também pode ser julgada uma pessoa que facilite materialmente a prática destes crimes ou colabore de qualquer outra maneira. No caso do crime de genocídio, apelar publicamente à prática do crime também é motivo para alguém poder ser visado pelo tribunal.
Há duas exceções à partida. No caso do crime de agressão, só quem tenha poder efetivo para controlar a ação política ou militar de um Estado pode ser visado pelo tribunal (ou seja, apenas altas patentes militares e altas figuras políticas do Estado). Além disso, ninguém com menos de 18 anos na altura da prática do crime pode ser investigado ou julgado pelo tribunal de Haia.
Aliás, o documento explica mesmo que as leis relativas a estes crimes se aplicam de modo igual a todos os envolvidos, independentemente de quaisquer distinções oficiais, incluindo patentes militares e cargos políticos exercidos. Além disso, qualquer imunidade associada a cargos públicos não serve para impedir o TPI de investigar e julgar a pessoa em questão — ou seja, na prática, mesmo que venha a permanecer longos anos na presidência da Federação Russa, isso não impediria que Vladimir Putin pudesse ser investigado (e julgado) por eventuais crimes de guerra cometidos pelos militares russos no atual conflito na Ucrânia. Há, no entanto, nuances no que diz respeito à abrangência de atuação do TPI — lá chegaremos.
Mas a prática efetiva de um crime não é o único motivo que pode levar alguém ao banco dos réus na Haia. Tanto no caso das cadeias de comando militares como no caso dos organismos de decisão política, os superiores hierárquicos podem ser responsabilizados pelos crimes praticados pelos seus inferiores hierárquicos, desde que soubessem ou devessem ter sabido da intenção de praticar os crimes e não tenham feito tudo ao seu alcance para os impedir — ou, evidentemente, se tiverem dado as ordens para a realização dos crimes.
No caso dos inferiores hierárquicos, como por exemplo os soldados de um exército que comete crimes de guerra, um dos principais argumentos da defesa poderá ser o de que estariam apenas a cumprir ordens dos seus superiores. Segundo o Estatuto de Roma, “o facto de um crime sob a jurisdição do Tribunal ter sido cometido por uma pessoa em obediência a uma ordem de um governo ou de um superior, seja militar ou civil, não deverá eliminar a responsabilidade criminal da pessoa”. Há três exceções a esta regra: se a pessoa estivesse sob uma obrigação legal de obedecer àquela ordem; se a pessoa não soubesse que a ordem era ilegal; ou se a ordem não fosse manifestamente ilegal. O mesmo artigo salienta que as ordens para cometer genocídio ou crimes contra a humanidade são sempre ilegais.
Além de tudo isto, os crimes de guerra e outros crimes julgados pelo Tribunal Penal Internacional não têm prazo de prescrição e podem ser julgados em qualquer momento, independentemente do tempo que tenha passado desde que ocorreram.
Tudo isto significa que, num eventual julgamento relacionado com o atual conflito entre a Rússia e a Ucrânia, o Tribunal Penal Internacional poderia visar diretamente responsáveis políticos russos (incluindo Vladimir Putin e os membros do seu governo), as altas patentes das forças armadas russas e quaisquer militares ou civis que tenham estado diretamente envolvido na prática de eventuais crimes de guerra na Ucrânia.
Que instituições podem julgar crimes de guerra?
O Tribunal Penal Internacional, com sede na cidade holandesa da Haia, é o primeiro tribunal penal internacional permanente (ou seja, não criado especificamente para dar resposta a uma situação concreta, como sucedeu por exemplo em relação à antiga Jugoslávia) e é, atualmente, a instituição internacional reconhecida para julgar crimes de guerra, crimes contra a humanidade, crimes de genocídio e crimes de agressão praticados por Estados. O funcionamento do TPI rege-se pelo Estatuto de Roma, assinado em 1998 e que tem atualmente 123 estados-membros. Os crimes deste género que sejam cometidos no território destes 123 países são investigados e julgados no tribunal da Haia.
Porém, nem todos os países do mundo são signatários do Estatuto de Roma, o que significa que o Tribunal Penal Internacional não tem jurisdição sobre eles. Algumas exceções notáveis incluem os Estados Unidos da América, a China, a Rússia e a própria Ucrânia — o que poderá levantar algumas dúvidas sobre a capacidade que o TPI terá para agir neste conflito
No caso dos EUA, como explica a Human Rights Watch, o país “participou nas negociações que conduziram à criação do tribunal”, mas em 1998 os norte-americanos integraram o grupo de sete países (EUA, China, Iraque, Israel, Líbia, Qatar e Iémen) que votaram contra o estatuto. Depois, em 2000, o Presidente Bill Clinton assinou o tratado, mas o Senado norte-americano não o ratificou. Mais tarde, em 2002, George W. Bush retirou definitivamente os EUA da lista de signatários do Estatuto de Roma, argumentando que o TPI não tinha mecanismos de regulação interna suficientes e que não tinha capacidade para evitar eventuais perseguições políticas dentro da sua jurisdição. Apesar disso, ao longo de quase duas décadas, os EUA mantiveram uma relação diplomática estável com o tribunal. Mais recentemente, durante a Presidência de Donald Trump, os EUA acentuaram um discurso agressivo contra o TPI, cancelando vistos a procuradores e fazendo ameaças públicas aos funcionários do tribunal que visassem norte-americanos nas suas investigações, nomeadamente potenciais inquéritos sobre crimes de guerra cometidos no Afeganistão e na Palestina.
No que respeita à Rússia, o país foi signatário do Estatuto de Roma desde o início, mas, como explica o The Guardian, abandonou o tratado em 2016, depois de o TPI ter publicado um relatório no qual considerava que a anexação da Crimeia por parte da Rússia constituía o crime de agressão. A saída da Rússia do grupo de signatários do Estatuto de Roma impediu que o TPI investigasse e condenasse Putin e o regime russo pelo crime de agressão, uma vez que só um país membro pode ser julgado por aquele crime.
Já no que toca à Ucrânia, o país assinou o Estatuto de Roma em 2000, mas o seu parlamento não o pôde ratificar na altura, uma vez que a Constituição ucraniana não permitia a jurisdição complementar do tribunal. Só com uma revisão constitucional isto seria possível. A revisão constitucional foi aprovada pelo parlamento ucraniano em 2016 e entrou em vigor em 2019, mas entretanto o país ainda não ratificou o Estatuto de Roma. Contudo, no passado, o governo ucraniano já aceitou a jurisdição do TPI sobre o país — nomeadamente quando a Rússia anexou a Crimeia —, uma decisão que fez jurisprudência e que atualmente significa que o TPI tem jurisdição sobre os crimes praticados no território ucraniano.
Isto significa, na prática, que os crimes cometidos pela Rússia no território ucraniano (à exceção do crime de agressão) podem ser investigados e julgados pelo TPI.
Isto acontece assim porque, na verdade, o TPI não é a única instituição que pode julgar crimes de guerra. Na verdade, todos os países que sejam signatários das convenções da Haia e de Genebra (EUA, Rússia e praticamente todos os membros da ONU são-no) estão obrigados a transpor as provisões desses tratados internacionais para a sua legislação. Ou seja, as violações daquelas convenções são crimes de guerra em todos os países que as assinaram, independentemente de terem aderido ou não ao TPI. “Os países que ratificaram o Estatuto de Roma estão simplesmente a delegar a sua autoridade para perseguir certos crimes graves cometidos no seu território num tribunal internacional”, explica a Human Rights Watch. Nada disto impede que os tribunais nacionais de países que estão fora da jurisdição do TPI possam investigar e julgar crimes de guerra cometidos pelos seus cidadãos.
Portanto, tal como um tribunal ucraniano teria jurisdição para julgar um cidadão russo que cometesse um crime em solo ucraniano, também o TPI (em quem a Ucrânia delega a jurisdição dos crimes de guerra) tem capacidade para julgar os crimes de guerra cometidos pela Rússia no seu solo — mesmo sem que a Rússia faça parte do Estatuto de Roma.
Quem é que pode formalizar uma acusação?
Os crimes de guerra podem chegar ao Tribunal Penal Internacional de diferentes modos. O mais comum é quando um país signatário do Estatuto de Roma refere aos procuradores do TPI a informação de que um crime poderá ter sido cometido dentro do seu território ou dentro do território de jurisdição do tribunal. Nessa denúncia, é feito um pedido ao procurador para que “investigue a situação com o propósito de determinar se uma ou mais pessoas específicas devem ser acusadas da prática desses crimes”.
“Tanto quanto possível, uma denúncia deve especificar as circunstâncias relevantes e ser acompanhada de tanta documentação de suporte quanto a que esteja disponível ao Estado que apresenta a denúncia”, explica ainda o Estatuto, no seu artigo 14.º. Com base numa denúncia, a procuradoria do TPI abre um inquérito, recolhendo informação nos países em questão, nas Nações Unidas e noutras instituições relevantes, e determina se deve ou não ser aberta uma investigação de grande escala. Tem de ser, depois, a primeira instância do TPI a determinar se a investigação segue em frente ou não.
A denúncia também pode chegar ao TPI pela via do Conselho de Segurança das Nações Unidas ou então a Procuradoria do TPI pode iniciar uma investigação por iniciativa própria, tendo conhecimento de atos que possam constituir crimes de guerra no território da sua jurisdição.
No caso da Ucrânia, a Procuradoria do Tribunal Penal Internacional já anunciou que está a recolher indícios e provas dos crimes de guerra alegadamente cometidos pela Rússia em solo ucraniano, depois de um grupo de 39 países signatários do Estatuto de Roma, incluindo Portugal, ter pedido a abertura de um inquérito. Em causa estarão crimes de guerra, crimes contra a humanidade e o crime de genocídio, numa altura em que a Ucrânia tem denunciado múltiplos ataques contra civis, hospitais e outros alvos não militares em território ucraniano. Esta semana, no parlamento britânico, o primeiro-ministro Boris Johnson afirmou, sem meias-palavras, que bombardear civis inocentes “já se qualifica totalmente como crime de guerra”.
Quem são os juízes do Tribunal Penal Internacional?
O Tribunal Penal Internacional é composto por 18 juízes, obrigatoriamente nacionais de um estado signatário do Estatuto de Roma. Os juízes são eleitos para um mandato de nove anos, não renovável, por voto secreto durante uma Assembleia Geral dos países signatários, convocada especificamente para o efeito. São escolhidos “os 18 candidatos que obtêm o maior número de votos”, desde que haja uma maioria de dois terços dos Estados signatários presentes na votação. “A eleição dos juízes tem em conta a necessidade de representar os principais sistemas judiciais do mundo, uma representação justa de homens e mulheres e uma distribuição geográfica equitativa”, explica o TPI.
Que casos já passaram pelo TPI?
Antes de ter sido estabelecido o TPI, o primeiro tribunal permanente deste género, a justiça penal internacional era realizada através de tribunais penais internacionais dedicados a situações específicas. O mais notável terá sido, porventura, o Tribunal Penal Internacional para a Antiga Jugoslávia (que chegou a ter um juiz português, Almiro Simões Rodrigues), que julgou os crimes de guerra cometidos durante o processo de dissolução da Jugoslávia. Este tribunal esteve em funções entre 1993 e 2017 e, durante o seu mandato, foram indiciadas 161 pessoas por crimes de guerra, das quais 90 foram efetivamente condenadas. Entre os indiciados encontravam-se algumas figuras de topo, incluindo o ex-presidente sérvio Slobodan Milošević, que se tornou no primeiro chefe de Estado em funções a ser acusado de crimes de guerra (mas morreu antes da condenação), ou o general Ratko Mladić.
Depois da instituição do Tribunal Penal Internacional como organismo permanente, é naquele tribunal que têm ocorrido os principais julgamentos por crimes de guerra a nível mundial. O TPI tem mais de 900 funcionários, oriundos de cerca de uma centena de países.
De acordo com dados do próprio tribunal, ao longo das últimas duas décadas já passaram pelo tribunal da Haia 30 casos e o tribunal já emitiu 35 mandados de detenção. Desses, 17 foram executados em cooperação com os Estados-membros do Estatuto de Roma e os detidos foram conduzidos a Haia e presentes ao tribunal. Contudo, 13 suspeitos mantêm-se a monte. Até hoje, o TPI já condenou dez pessoas por crimes de guerra, genocídio e crimes contra a humanidade.
Presidente queniano foi apresentar-se ao Tribunal Penal Internacional em Haia
A maioria dos casos dizem respeito a situações de violência e guerra armada no continente africano. Por exemplo, Thomas Lubanga, ex-líder da União de Patriotas Congoleses (movimento rebelde que operou na República Democrática do Congo nos conflitos de 2002-2003), foi condenado em 2012 pelo TPI a uma pena de 14 anos de prisão por ter forçado crianças com menos de 15 anos a combater no conflito armado na República Democrática do Congo.
Também devido ao conflito naquele país, o comandante militar Bosco Ntaganda foi condenado pelo TPI a 30 anos de prisão. Outro caso de grande relevância no TPI prende-se com o Uganda, onde o líder rebelde Joseph Kony está acusado de 12 crimes contra a humanidade e de 21 crimes de guerra — mas encontra-se a monte, com o julgamento pendente da sua captura e entrega à custódia do Tribunal de Haia.
Por outro lado, em 2014, o Presidente do Quénia, Uhuru Kenyatta, apresentou-se voluntariamente em Haia para ser julgado por crimes contra a humanidade — teria tido um papel no incitamento à violência pós-eleitoral entre 2007 e 2008. Contudo, a Procuradoria do TPI acabou por deixar cair as acusações por falta de provas.
Na página do TPI na internet é possível consultar os detalhes dos 30 casos e dos 46 réus que já estiveram ou ainda estão sob julgamento no tribunal.
Que penas pode o TPI aplicar?
De acordo com o Estatuto de Roma, o Tribunal Penal Internacional pode aplicar quatro tipos de penas:
- Pena de prisão, num máximo de 30 anos;
- Pena de prisão perpétua, mas apenas “quando justificado pela extrema gravidade do crime e pelas circunstâncias individuais da pessoa condenada”;
- Multa;
- Confisco de rendimentos, propriedades ou ativos.
No que respeita às penas de prisão, quando um acusado é condenado por mais do que um crime, a pena não deverá ser a soma das penas individuais de cada crime, mas sim uma pena determinada em cúmulo jurídico, num sistema em tudo semelhante ao que ocorre no sistema penal português. A pena final não pode ser inferior à pena individual mais elevada do rol de crimes, nem superior a 30 anos (exceto nos casos de pena perpétua). Além disso, tal como sucede com a justiça portuguesa, o tempo passado detido ou em prisão preventiva antes e durante o julgamento é deduzido da pena final. Quando um condenado já tenha cumprido dois terços da pena, ou 25 anos no caso da pena perpétua, o tribunal leva a cabo uma revisão da sentença.
Quanto aos bens e fundos apreendidos aos condenados, podem ser usados para criar um fundo destinado a pagar compensações às vítimas.
Ao longo da sua história, o TPI já aplicou a pena de prisão máxima de 30 anos (como, por exemplo, no caso do comandante militar congolês Bosco Ntaganda), mas nunca condenou ninguém a prisão perpétua.
Quanto tempo pode durar um processo destes?
Devido à complexidade dos casos e à gravidade dos crimes em questão, um processo no Tribunal Penal Internacional pode prolongar-se durante anos a fio. O arquivo das cronologias dos casos na página do tribunal permite-nos ter uma ideia da duração de um julgamento por crimes de guerra. Por exemplo, o processo contra o comandante militar congolês Bosco Ntaganda, que resultaria na condenação a 30 anos de prisão, começou com a denúncia da situação em março de 2004 e concluiu-se com a leitura da sentença, em novembro de 2019: cerca de 15 anos e meio.
Também há registo de casos que demoraram menos tempo. Por exemplo, o caso de Ahmad Al Faqui Al Mahdi, um terrorista islâmico associado a um ramo da Al-Qaeda operacional na região do Magrebe, foi condenado a nove anos de prisão por crimes de guerra em 2016, num processo que tinha começado em 2012 — toda a investigação e julgamento durou pouco mais de quatro anos (e praticamente todas as diligências foram feitas já em 2016).
Já houve acusações de crimes de guerra contra líderes políticos em funções?
Sim. Ao longo das duas décadas de história do Tribunal Penal Internacional, foram movidas acusações formais contra líderes políticos em funções — o que significa que não seria inédito se o TPI formalizasse uma acusação contra Vladimir Putin.
Um exemplo paradigmático é o de Muammar Gaddafi, antigo líder líbio, que governou a Líbia entre 1969 e 2011 sob o título de “Líder da Revolução”. Um dos mais duros ditadores da história contemporânea mundial, Gaddafi foi acusado de crimes contra a humanidade em 2011 na Líbia e o Tribunal Penal Internacional chegou mesmo a emitir um mandado de detenção contra ele, embora o processo tenha acabado sem condenação devido à sua morte, em 2011. O processo Gaddafi continua em aberto porque outro dos acusados, Saif Gaddafi, filho do ditador, também está acusado de crimes contra a humanidade, embora esteja a monte e o processo esteja em suspenso até que o acusado seja detido e presente ao tribunal.
Outro caso de processo contra líderes políticos em funções foi a já referida investigação a Uhuru Kenyatta, o atual Presidente do Quénia, que foi acusado pela Procuradoria do TPI por crimes contra a humanidade por alegadamente ter fomentado a violência no país em 2007 e 2008. Kenyatta apresentou-se voluntariamente ao tribunal e a acusação viria a ser abandonada pela Procuradoria.
O antigo Presidente da Costa do Marfim, Laurent Gbagbo, e o seu ministro Charles Blé Goudé, foram também acusados de quatro crimes contra a humanidade. Gbagbo foi visado pela sua gestão do país, entre 2000 e 2010, que foi marcada por uma guerra civil e por uma eleição presidencial em 2010 caótica, em que ambos os candidatos se declararam vencedores. Gbagbo chegou mesmo a estar detido nas instalações do TPI, em Haia, mas acabaria por ser absolvido, por se considerar que não havia provas suficientes para condená-lo por crimes contra a humanidade.
No caso concreto da atual guerra entre a Rússia e a Ucrânia, o procurador do TPI, Karim Khan, já afirmou publicamente que “há uma base razoável para acreditar que os alegados crimes de guerra e crimes contra a humanidade tenham sido cometidos na Ucrânia”, motivo pelo qual o tribunal já abriu um inquérito e está a recolher elementos sobre o assunto. Contudo, neste caso concreto, a probabilidade de o próprio Vladimir Putin ser acusado é baixa, de acordo com uma análise feita pelo jornal The Guardian.
Se Vladimir Putin fosse acusado de algum crime sob a jurisdição do TPI seria o crime de agressão — o tal crime que consiste na invasão de um território de outro Estado, e do qual apenas podem ser acusados responsáveis políticos e militares com poder efetivo. Porém, como a Rússia não é signatária do Estatuto de Roma, os seus responsáveis não podem ser acusados deste crime. Por isso, no seu comunicado, o procurador do TPI apenas se referiu aos crimes de guerra e aos crimes contra a humanidade. Segundo a análise do The Guardian, “é muito mais difícil associar diretamente um líder político aos crimes cometidos pelas forças armadas no terreno, como é requerido por estes dois crimes, do que fazê-lo para o crime mais abrangente de agressão”.
Ou seja, no caso da Rússia, será mais fácil que o TPI sente no banco dos réus algumas altas patentes militares da Rússia do que o próprio Vladimir Putin. Como acrescenta o The Guardian: “Mesmo que Putin seja acusado, ele teria de ser detido num Estado que, ao contrário da Rússia, aceite a jurisdição do tribunal.”