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Jimmy Chérizier (ao centro), conhecido como "Barbecue", é o líder dos gangues que tem feito exigências em público
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Jimmy Chérizier (ao centro), conhecido como "Barbecue", é o líder dos gangues que tem feito exigências em público

Getty Images

Jimmy Chérizier (ao centro), conhecido como "Barbecue", é o líder dos gangues que tem feito exigências em público

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Um país sem governo, dominado pelos gangues e com cadáveres nas ruas. Como o Haiti entrou em colapso

Num país marcado pelas interferências estrangeiras, o primeiro-ministro foi derrubado por gangues locais. Falam em revolução, mas nas ruas só se sente o caos. Ninguém sabe o que vai ser do Haiti.

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Há meses que a situação é de caos. Os gangues controlam o centro de Port-au-Prince, incluindo o Champ de Mars, a praça onde estão os ministérios. “O gabinete do primeiro-ministro também é aqui, o que oferece a imagem mais simbólica: o ocupante do gabinete não consegue entrar nele há muito. O único edifício em funcionamento é o Banco da República — a polícia mantém-no acessível para impedir o colapso total do Haiti. De segunda a sexta, entre as 8h da manhã e as 5h da tarde, os agentes formam um corredor ao longo da rua Casernes, para permitir aos funcionários do banco entrarem no edifício.”

Este era o relato feito no verão do ano passado por Nacho Carretero, enviado especial do El País ao coração do país caribenho, liderado pelo primeiro-ministro Ariel Henry — que não venceu eleições e que governa sem um parlamento em funções. Desde então, quase 80% da capital foi sendo controlada por grupos armados.

Mais de meio ano depois, a situação mudou, mas para pior: os gangues, em particular o G-9, liderado por Jimmy Chérizier (conhecido como “Barbecue”), aumentaram a violência desde o final de fevereiro, exigindo a demissão de Henry. Em março, aproveitaram a ausência do primeiro-ministro do país para tomar o controlo do aeroporto e impedi-lo de regressar ao Haiti.

O primeiro-ministro Ariel Henry demitiu-se depois de ser impedido de regressar ao Haiti

AFP via Getty Images

Conseguiram o objetivo. “O governo e eu vamos demitir-nos com efeitos imediatos, depois do estabelecimento de um concelho de transição”, afirmou Ariel Henry num vídeo filmado a partir de Porto Rico, na passada segunda-feira. “Peço a todos os haitianos que se mantenham calmos e façam o possível para garantir o regresso da paz e da estabilidade.”

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A violência, porém, não abrandou. Num país onde os gangues há muito que têm ligações ao poder político, muitos dos seus líderes chantageiam pela força, de forma a ter uma palavra a dizer no novo governo. E o concelho de transição, promovido pelos Estados Unidos, sofre dos problemas que há muito abalam o país: perceção de uma influência desmesurada de poderes estrangeiros e falta de entendimento entre as várias forças políticas do país.

“Os grupos armados que andam nas ruas dizem estar a liderar uma revolução moderna no Haiti. Mas quem está a pagar o preço são os mais empobrecidos”.
Jake Johnston, investigador e autor de autor de "Aid State: Elite Panic, Disaster Capitalism, and the Battle to Control Haiti"

O investigador Jake Johnston, autor de Aid State: Elite Panic, Disaster Capitalism, and the Battle to Control Haiti (sem edição em português), afirma ao Observador não haver dúvidas de que a violência dos grupos armados “é política”. “Eles estão a trabalhar em conjunto com Guy Philippe, um antigo traficante de droga e líder paramilitar que tem tentado agarrar o poder”, nota. “Mas isso não significa que cada ação que acontece seja política e que as motivações de todos os atores sejam as mesmas. Uns podem querer demonstrar força para negociar no futuro, outros defendem uma amnistia para os grupos armados, outros beneficiam apenas da instabilidade e reforçam os seus negócios criminosos.”

Há meses que gangues controlam quase 80% da capital Port-au-Prince

Getty Images

Quem é prejudicado, contudo, são os haitianos comuns, nota Johnston: “Os grupos armados que andam nas ruas dizem estar a liderar uma revolução moderna no Haiti. Mas quem está a pagar o preço são os mais empobrecidos”.

Pelo meio, as ruas de Port-au-Prince continuam verdadeiramente em fogo, com figuras como “Barbecue” a falarem num movimento de libertação do Haiti. Daniel Foote, antigo enviado especial norte-americano ao Haiti, não tem dúvidas de que estamos perante um momento transformador: “A situação no Haiti atravessou o Rubicão. Passou de protestos contra Ariel Heny para uma revolução total”, disse no início deste mês.

O dia a dia em Port-au-Prince. Cadáveres nas ruas, sistema de saúde em colapso e risco de fome generalizada

Nas últimas semanas, a violência na capital agudizou-se. Em grupos de WhatsApp, os moradores partilham avisos: “Rue de Juvenal: Cadavres signalés” (“Rua de Juvenal: Relatos de cadáveres”); “Carrefour de Drouillard: Cadavres signalés” (“Cruzamento de Drouillard: Relatos de cadáveres”); “Rue Catalpa: Cadavre calciné” (“Rua Catalpa: Cadáver carbonizado”). Isso mesmo relatou Amy Wilentz, escritora norte-americana que viveu anos no Haiti e que mantém contacto com muitos que ainda estão no país, num artigo na revista The Atlantic.

A violência nas ruas é tal que é habitual surgirem relatos de cadáveres no meio das estradas

AFPTV/AFP via Getty Images

Para além dos cadáveres espalhados pelas ruas de Port-au-Prince, também nos hospitais há corpos abandonados, como testemunhou uma equipa da BBC no Hospital da Universidade Estadual do Haiti, onde “não há qualquer sinal da equipa médica”. Há falta de médicos, mas também de material: ainda este sábado, um contentor da UNICEF que trazia equipamento de saúde foi saqueado. O sistema de saúde está à beira do colapso, pondo em risco de vida “quase três mil grávidas”, de acordo com previsões das Nações Unidas. As violações por parte de membros dos gangues são moeda corrente nas ruas de Port-au-Prince.

Depois da tomada do aeroporto, impedindo o regresso do primeiro-ministro, os gangues continuaram a atacar edifícios administrativos do Estado, incluindo prisões: a Penitenciária Nacional, maior prisão do país, foi atacada pelo Viv Ansanm’, a coligação de gangues liderada por Chérizier. Os quase três mil reclusos que ali estavam fugiram. Os grupos armados controlam também desde a passada quarta-feira o porto de Port-au-Prince, limitando a chegada de ajuda humanitária e paralisando a economia local.

A polícia do Haiti diz estar a levar a cabo uma operação para retomar o controlo do porto, mas é uma estrutura fraca perante o domínio dos gangues. “A polícia corresponde a 5% da capacidade necessária”, comentava já no ano anterior um diplomata do país à New Yorker. Segundo os dados das Nações Unidas, há menos de 15 mil agentes para uma população de 11 milhões de pessoas. E, dos poucos que existem, 40% a 60% têm ligações ao crime organizado, de acordo com a estimativa da ONG local Sant Karl Lévêque.

A maior prisão do Haiti foi atacada pelos gangues, o que permitiu a fuga de milhares de reclusos

AFPTV/AFP via Getty Images

Só ao longo do último meio ano, quase 5 mil pessoas foram assassinadas — uma taxa de homicídio de 40,9 por cada 100 mil habitantes, o dobro do registado no ano anterior. Somam-se os ferimentos graves, as violações e os raptos. Nas últimas semanas, com o intensificar da violência, estes números serão certamente inflacionados. E há agora o risco de o país entrar “numa das crises alimentares mais graves do mundo”, alertaram as Nações Unidas na passada semana.

Carlos Solar, especialista em crime organizado e política no continente americano, explica como “o governo já não tem autoridade” e, por isso, estamos agora a assistir em direto a uma luta pelo poder entre gangues. “A violência passa a ser política quando os gangues não querem só controlar mercados ilegais, mas querem também decidir o futuro da sociedade. E esse é o objetivo deles agora. Em particular o de Jimmy Chérizier”, diz o investigador do Royal United Services Institute.

“Barbecue”, o gangster que se inspira em Che Guevara para justifica uma “revolução”

Chérizier é uma figura curiosa. O líder do gangue G-9 é conhecido por “Barbecue” por ser filho de uma assadora de frangos — mas os inimigos dizem que é pelo seu gosto em queimar pessoas vivas. Já há algum tempo que dá nas vistas e deixa transparecer algumas ambições políticas. A história da sua ascensão interliga-se com a rápida descida do Haiti ao caos e ao colapso do Estado.

Em julho de 2021, o Presidente Jovenel Moïse — que havia suspendido a realização de eleições citando a “instabilidade” nas ruas — foi assassinado, num homicídio cuja responsabilidade ainda não foi totalmente apurada. Desde então, o poder ficou nas mãos do primeiro-ministro Ariel Henry, que havia sido nomeado por Moïse pouco antes da sua morte, e que assumiu o cargo de Presidente interino. Henry também não voltou a convocar eleições.

Chérizier disse admirar Fidel Castro e Malcolm X, mas não Martin Luther King, “porque ele não lutava com armas — e eu luto”. A sua imagem de fundo no telemóvel era de Che Guevara. “Não sou comunista, mas gosto da filosofia deles. Pessoas que amam o seu país”, disse.

Os rumores de que “Barbecue” era próximo do Presidente, num país onde é habitual o patrocínio do poder político a grupos do crime organizado, tornaram-se visíveis no funeral de Moise: o primeiro-ministro dirigia-se ao cemitério para prestar homenagem ao chefe de Estado quando foi travado por membros do gangue de “Barbecue”, que fizeram disparos para o ar. De seguida, o próprio Chérizier apareceu no cemitério, todo vestido de branco, e depositou uma coroa de flores junto da campa de Moise.

O sinal de que “Barbecue” queria fazer frente a Henry estava dado. Desde então, Jimmy Chérizier passou a apoiar os protestos públicos contra o primeiro-ministro — impopular no país — e desdobrou-se em entrevistas e declarações públicas. Quando falou com o jornalista americano Jon Lee Anderson, para a revista New Yorker, quis apresentar-se não como um simples criminoso, mas como um ideólogo político. Disse admirar Fidel Castro e Malcolm X, mas não Martin Luther King, “porque ele não lutava com armas — e eu luto”. A sua imagem de fundo no telemóvel era de Che Guevara. “Não sou comunista, mas gosto da filosofia deles. Pessoas que amam o seu país”, disse a Anderson.

Nas últimas semanas, “Barbecue” exigiu publicamente a demissão de Ariel Henry, disse estar em curso uma revolução e afirmou que os gangues têm como objetivo “conseguir um Haiti com empregos para todos, com segurança, com educação gratuita, sem discriminação social”.

“Chérizier é um antigo agente da polícia que foi afastado daquela força em finais de 2018”, conta Jake Johnston. “Desde então foi implicado em vários abusos de direitos humanos quando ainda era polícia e depois disso. Tornou-se agora na prática o porta-voz desta aliança de grupos armados, mas ainda não sabemos qual o controlo real que tem sobre todos estes atores”, diz o investigador, que destaca a influência de outro gangster, Izo, que tem mais controlo sobre os negócios do mercado negro.

"Barbecue" (ao centro) é o líder do G-9 e tem falado para exigir a demissão de Henry e uma nova "revolução" no Haiti

AFP via Getty Images

Prometendo “romper com o sistema” e lutar “até à última gota de sangue”, Chérizier — que aparece sempre em público rodeado de homens armados e com roupas de estilo paramilitar — tem tudo para se tornar um ícone que pode transitar da pura violência para a política. “Ele tem algum carisma, é um pensador, mas também é uma pessoa violenta”, resumiu ao Financial Times o ativista haitiano Louis-Henri Mars.

O que não significa, contudo, que seja o próximo líder a emergir do caos. “Ainda não sabemos se ele irá reinar ou se novos adversários vão tentar destroná-lo, como costuma acontecer quando organizações criminosas se partem”, alerta Carlos Solar. O próprio discurso político de “Barbecue”, apresentando-se como uma espécie de “novo Che Guevara”, não é sólido, alerta Johnston: “Os grupos armados podem ter-se virado agora contra o sistema, mas durante anos contribuíram para perpetuar o sistema. Proclamam a sua oposição à intervenção estrangeira, mas estão a fornecer precisamente uma justificação para ela”, diz o investigador, que lembra como durante anos grupos como o G-9 mantiveram laços com o partido Haitian Tèt Kale, no poder, e outros como o G-Pèp com a oposição.

Conselho de transição em impasse. Perceção de interferência norte-americana tolda negociações

O uso de forças paramilitares para atingir fins políticos não é nada de novo no Haiti. A polícia política dos Duvalier — os ditadores “Papa Doc” e “Baby Doc”, pai e filho que governaram o país com mão de ferro ao longo de 30 anos — era conhecida como Ton-Ton Macoute (algo que pode ser traduzido como “papões”) e esteve na origem de muitos dos grupos armados que floresceram depois da queda dos Duvalier. Muitos no Haiti queixam-se da ingerência estrangeira, relembrando como os Duvalier foram apoiados pelos Estados Unidos (eram oficialmente anti-comunistas) e como o próprio Ariel Henry, agora, se mantinha no poder com o patrocínio de Washington.

Todo este passado político complexo tem influência na situação de hoje. A comunidade de países das Caraíbas (CARICOM) tem estado a promover a criação do novo conselho de transição, com o apoio claro dos Estados Unidos — o secretário de Estado, Antony Blinken, tem estado presente nas reuniões. Mas o governo americano desdobra-se agora em declarações para garantir que a solução que sair daqui será “desenhada pelos haitianos e liderada pelos haitianos”. “Passámos de 200 anos de Doutrina Monroe e intervenção profunda para liderar à distância”, resumiu o antigo conselheiro para o Haiti Stanislas Wojewodzki, ao Wall Street Journal. “Acho que nenhum Presidente [americano] quer tocar no Haiti nem sequer com um pau de três metros”.

Reunião do CARICOM sobre o novo conselho de transição, com presença de Antony Blinken (à esquerda)

POOL/AFP via Getty Images

Jake Johnston considera que a perceção de interferência estrangeira deve ser evitada a tudo o custo, por já ter sido um dos fatores que levou o país a esta situação: “Um dos problemas da legitimidade de Henry vinha do facto de ser visto como aceite por atores externos, mas não por uma coligação local. Depois de 30 meses a rejeitar as reivindicações dos haitianos que queriam um novo governo de transição, agora estão todos a negociar com uma arma apontada à cabeça”, lamenta.

E o atual conselho, que conta com representantes de todos os partidos do Haiti e observadores da sociedade civil, não está a conseguir chegar a um entendimento sobre quem deve assumir o controlo do país e sobre como estancar a atual onda de violência. A proposta de envio de uma força de segurança financiada pelos EUA e composta por polícias do Quénia continua em cima da mesa, mas não avança por falta de clareza sobre quem controla o processo do ponto de vista político — e Nairobi recusa enviar agentes enquanto não houver governo no Haiti.

Um dos partidos envolvidos na negociação, o Pitit Desalin, anunciou entretanto que se vai retirar do processo. “Gostem ou não, vamos criar o nosso próprio conselho presidencial”, avisou o líder Moïse Jean Charles. O conselho alternativo que o partido propõe inclui uma figura que está barrada da iniciativa promovida pelo CARICOM por ter um passado de condenações na Justiça: é Guy Philippe, outro antigo agente policial que chegou a liderar um golpe de Estado no passado e que cumpriu recentemente pena de prisão nos Estados Unidos por lavagem de dinheiro associada ao narcotráfico. Desde que regressou ao Haiti, Philippe tem encabeçado muitas das manifestações contra o primeiro-ministro. Agora, defende publicamente que seja concedida amnistia aos membros dos gangues para conseguir alcançar a paz.

“É preciso retomar o controlo e propor novas eleições que não sejam desestabilizadas pelos gangues. E, para qualquer uma dessas coisas, é preciso ter em conta que os gangues não vão pousar as armas sem receber algo em troca.”
Carlos Solar, especialista em crime organizado e política no continente americano do RUSI

Não é claro qual o grau de envolvimento de Philippe com os próprios grupos armados — o investigador Jake Johnston diz não ter dúvidas de que há ligações entre eles — mas a possibilidade de que estejam a funcionar em parelha não é descabida. Afinal, depois de ser conhecida a constituição do conselho de transição, “Barbecue” emitiu de imediato um vídeo onde rejeitou este movimento do conselho de transição do CARICOM: “O Viv Andanm’ não vai reconhecer nenhum governo que saia destas reuniões”, avisou. “Não vamos deixar que os estrangeiros decidam o nosso futuro. Nós vamos lutar por uma segunda revolução no Haiti.

A possibilidade de este conselho alcançar uma solução por entre a pressão dos políticos locais e das armas é, por tudo isso, curta. “O seu destino pode ser o mesmo que teve Henry quando substituiu Moïse, porque este é um país volátil onde a classe política não está legitimada”, vaticina Carlos Solar. “É preciso retomar o controlo e propor novas eleições que não sejam desestabilizadas pelos gangues. E, para qualquer uma dessas coisas, é preciso ter em conta que os gangues não vão pousar as armas sem receber algo em troca.”

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