A atribuição de vistos a cidadãos russos e bielorrussos na Hungria está a preocupar Bruxelas, que pediu esclarecimentos a Budapeste até 19 de agosto, mas o governo de Viktor Orbán falhou ao prazo e não respondeu. Fonte próxima do governo húngaro desvaloriza o caso e diz ao Observador que os vistos são limitados para um “trabalho numa central nuclear”. A nova prática húngara — que permite que qualquer russo com visto viaje por todo o espaço Schengen — já está a levar a UE a ponderar reintroduzir o controlo das fronteiras para quem viaja desde a Hungria.

A Comissão Europeia enviou 13 perguntas “muito detalhadas” ao governo húngaro para esclarecer a atribuição de vistos de residência a cidadãos russos e bielorussos. Em declarações ao Observador, a porta-voz  da Comissão Europeia (CE) para os Assuntos Internos, Anitta Hipper, esclareceu que está a ser feito um apuramento dos factos para perceber se Budapeste violou ou não a lei europeia neste caso.

A porta-voz assinala que a Rússia é “uma ameaça à União Europeia e todos os Estados-membros têm de trabalhar para a segurança da união, bem como do Espaço Schengen”. Por isso, diz Anitta Hipper, há um “grande receio” na Comissão Europeia de que os vistos atribuídos aumentem o risco de infiltração russa na União Europeia.

O ministro dos Negócios Estrangeiros da Hungria, Péter Szijjartó, disse, a 18 de agosto, que Budapeste lamenta o “distanciamento da realidade” da Comissão Europeia neste caso. Nessa conferência de imprensa, Péter Szijjartó tinha dado a entender que as respostas às perguntas da comissão já tinham sido enviada para Bruxelas, mas não foi o caso.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

No dia seguinte terminava o prazo para responder ao pedido de esclarecimento. O governo húngaro teve 17 dias, de dois a 19 de agosto, para esclarecer a Comissão Europeia – e provar que os vistos não representam uma ameaça à segurança interna -, mas não o fez.

[Já saiu o quarto episódio de “Um Rei na Boca do Inferno”, o novo podcast Plus do Observador que conta a história de como os nazis tinham um plano para raptar em Portugal, em julho de 1940, o rei inglês que abdicou do trono por amor. Pode ouvir aqui, no Observador, e também na Apple Podcasts, no Spotify e no Youtube. Também pode ouvir aqui o primeiro, o segundo e o terceiro episódios]

A Comissão Europeia veio confirmar que não recebeu qualquer resposta às perguntas enviadas, mas que tem conhecimento de que essa resposta está a ser preparada pelo governo de Viktor Orbán.  A descoordenação entre Bruxelas e Budapeste torna-se, assim, mais evidente, enquanto as preocupações dos parceiros europeus com o caso se adensam na expectativa por esclarecimentos.

Dos eurodeputados aos países  bálticos: as preocupações na União Europeia

O caso dos vistos húngaros já levou a que 67 eurodeputados enviassem uma carta à comissão, onde exigem a expulsão da Hungria do Espaço Schengen, iniciativa que acabou por ser apoiada pelo primeiro-ministro finlandês.

No documento, os deputados acusam o primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, de estar “claramente a testar a paciência da EU” com o novo “cartão nacional” que permite a “entrada sem autorização de segurança” de trabalhadores convidados da Bielorrússia e Rússia, que “podem ainda trazer a suas famílias para o país”.

Também os governos da Noruega, Dinamarca, Suécia e Finlândia já reuniram para debater o que chamam de “grave risco de segurança para todos os Estados-membros”. A partir da cidade de Rosendal, na Noruega, os ministros escandinavos com a pasta das migrações enviaram uma carta conjunta à Comissão Europeia, onde manifestam as suas preocupações de segurança com o comportamento da Hungria – de realçar que a Finlândia e a Noruega são parte da fronteira da UE (e da NATO) com a Rússia. Os Bálticos juntaram-se à carta redigida pelos países escandinavos.

A Estónia, Letónia e Lituânia estão igualmente preocupados com a situação. Marhus Tsahkna, ministro dos Negócios Estrangeiros da Estónia, publicou na rede social X a carta enviada à CE pelos nórdicos e bálticos, onde pode ler-se que facilitar a entrada para russos e bielorrussos “não se justifica quando a Rússia continua sua guerra na Ucrânia e está a intensificar as ações híbridas contra a UE”. A carta diz ainda que as ações russas podem incluir “sabotagem, atos de violência, provocações nas fronteiras e instrumentalização de migrantes”.

Viktor Orbán deixa cada vez mais claro que não vê a Rússia com os mesmo olhos que os parceiros europeus

Budapeste desvaloriza alarmismo de Bruxelas

Contactada pelo Observador, uma fonte próxima do governo húngaro em Bruxelas garante que Viktor Orbán está de consciência tranquila, até porque o contrato com as empresas russa e bielorrussa para recrutar “técnicos altamente especializados” foi feito “muito antes” do início da guerra de larga escala na Ucrânia. A mesma fonte esclarece ainda que os concursos “dão prioridade a quem melhor servir os interesses da Hungria”, mesmo que não sejam parceiros europeus.

Sobre as questões levantadas pelos parceiros da União Europeia com os especialistas russos contratados, essa mesma fonte próxima de Órban adianta que o governo húngaro está “naturalmente” a garantir que todos os técnicos contratados são sujeitos a profundas verificações de segurança. Esta fonte acusa até os outros Estados-Membros de serem “infantis” por temerem o aumento da infiltração russa pela contratação de técnicos em ciência nuclear.

Mas acham que eles (espiões russos) não estão cá, em todos os 27? É infantil achar que a infiltração russa vai aumentar por causa de técnicos que vão trabalhar para uma central nuclear… quando a Rússia quer destacar espiões na UE, envia-os para as embaixadas com proteção diplomática”, diz a mesma fonte.

Viktor Orbán está menos sozinho do que parece?

A mesma fonte próxima do Governo de Orbán faz ainda questão de assinalar que a falta de sintonia entre Budapeste e Bruxelas não é tão profunda como parece. Em julho deste ano, já na presidência húngara do Conselho da União Europeia, Orbán viajou até à Ucrânia – uma visita que, segundo o que esta fonte adianta ao Observador, “foi encorajada pelo presidente do Conselho Europeu, Charles Michel”, na reunião dos chefes de governo da União de junho, onde também marcou presença o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky. Apesar do exemplo dado por Budapeste, os problemas levantados por Bruxelas não foram relativamente à visita a Kiev, mas sobre a visita seguinte a Moscovo.

epa11450081 EU Council President Charles Michel (L) and Hungarian Prime Minister Viktor Orban (R) attend their meeting in Brussels, Belgium, 01 July 2024. Hungarian Prime Minister Viktor Orban is visiting Brussels as Hungary takes over the Presidency of the European Union from 01 July. EPA/NICOLAS LANDEMARD

Charles Michel, presidente do Conselho Europeu, que repreendeu Orbán pelas viagens “não autorizadas” em nome da UE

Noutro plano, e sobre os países nórdicos, esta fonte próxima do governo húngaro revela também que as críticas do primeiro-ministro finlandês, Petteri Orpo, são “para consumo interno” e que ainda no último Conselho Europeu estiveram juntos “a beber um copo” em Bruxelas.

Por isso, e quando questionado sobre o futuro da Hungria na União Europeia, a mesma fonte sublinha que não há “qualquer dúvida sobre a vontade” em continuar a fazer parte do projeto europeu e diz acreditar que a aparente falta de coordenação entre Budapeste e Bruxelas não passa de “discordância ideológica” e critica os eurodeputados que querem expulsar a Hungria do Espaço Schengen. A mesma fonte acredita que o pedido de expulsão não passa da necessidade que alguns eurodeputados têm de “de vez em quando terem de dar provas de vida”.

É possível expulsar a Hungria do Espaço Schengen?

O Acordo de Schengen não prevê a expulsão de um Estado-membro. Em declarações ao Observador, Carlos Coelho, especialista no acordo de Schengen e presidente da associação “Nossa Europa”, diz que o pedido de expulsão da Hungria é uma “manobra política para mediatizar o caso”. O eurodeputado assinala, ainda assim, que há outras formas de punir um Estado-membro – os países poderão, por exemplo, restringir a liberdade de circulação com qualquer parceiro Schengen por razões de segurança.

O ex-eurodeputado social-democrata acredita que é possível que este caso motive o Conselho Europeu a acordar a reintrodução de controlo de fronteiras com a Hungria

Na visão do social-democrata, é provável que Ursula von der Leyen, em articulação com o Conselho Europeu, crie restrições para evitar a circulação dos cidadãos russos contratados pela Hungria dentro do Espaço Schengen.

Estou convencido de que a Comissão Europeia vai acionar o mecanismo de avaliação de Schengen e propor ao Conselho Europeu a reintrodução do controlo fronteiras, tornando nulo, ou muito reduzido, o risco de circulação desses cidadãos russos em países do Espaço Schengen”.

O antigo eurodeputado do PSD esclarece ainda que os Estados-Membros também têm poder dentro das suas fronteiras, que continuam sob jurisdição nacional – podem, por exemplo, encaminhar voos húngaros para terminais internacionais e sujeitar os passageiros ao controlo fronteiriço que é dado a quem chega de fora do Espaço Schengen.

Carlos Coelho assinala que esta é a primeira vez que se fala em restrições de circulação dentro do Espaço Schengen por motivações políticas. Explica que é comum reintroduzir-se temporariamente o controlo das fronteiras por razões compreensíveis — como, por exemplo, durante a visita do Papa Francisco a Portugal -, mas que nunca razões fundamentalmente políticas, como é este caso, motivaram debate em torno de restrições à livre circulação.

Tensões entre a Hungria e a UE não são recentes

O mal-estar com a Hungria foi-se intensificando ao longo dos anos, com especial gravidade quando Budapeste se opôs à ajuda à Ucrânia e às sanções contra a Rússia no eclodir da guerra entre os dois países, em fevereiro de 2022. Também por falhas na política de asilo, o Tribunal de Justiça da UE condenou, em junho deste ano, Budapeste a pagar 200 milhões de multa por ter contornado “deliberadamente a aplicação de uma política comum” da União Europeia.

Já em julho deste ano, 63 eurodeputados de quatro famílias políticas (Partido Popular Europeu, do Renovar Europa, A Esquerda e Os Verdes) exigiram a suspensão dos direitos de voto da Hungria na UE, pelas visitas a Moscovo, Pequim, Kiev e Washington, numa “representação não autorizada” da política externa da UE. A Comissão Europeia chegou a orientar o seus comissários para não participarem nas reuniões informais dos governo húngaro e também o presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, veio desautorizar as viagens de Viktor Orbán.

Mais recentemente, também o Alto Representante da União para a Política Externa e de Segurança, Josep Borrell, bateu de frente com Orbán. Borrell convocou uma reunião em Bruxelas para a mesma data de uma cimeira de política externa organizada pelo primeiro-ministro húngaro, que vai ter lugar em Budapeste a 28 e 29 de Agosto.