Mais um volte-face para os defensores da despenalização da morte medicamente assistida. O diploma terá de ser redigido uma quarta vez depois de ter sido declarado inconstitucional pelo Tribunal Constitucional, numa votação renhida de sete contra seis. No entanto, e apesar dos lamentos, a notícia foi recebida como uma quase-vitória, numa análise transversal aos cinco partidos que subscreveram a lei: os juízes do Tribunal Constitucional infligiram uma pesada derrota a Marcelo Rebelo de Sousa.
À cabeça, quando decidiu enviar o diploma para o Tribunal Constitucional, o Presidente da República tinha questionado o facto de não terem sido ouvidas as assembleias legislativas dos Açores e da Madeira. No acórdão agora divulgado pelo Palácio Ratton, nem por uma vez aparece qualquer referência às regiões autónomas, o que deita por terra o primeiro argumento levantado por Marcelo Rebelo de Sousa.
Depois, o Presidente da República tinha também questionado a supressão dos conceitos de “doença fatal” e de “antecipação da morte” como condições para aceder à morte medicamente assistida, argumentando que tais alterações implicariam “um regime menos restritivo no tocante à morte medicamente assistida não punível”.
A maioria dos juízes do Tribunal Constitucional entendeu o contrário, algo que mereceu o voto vencido do próprio presidente, João Caupers. “O efeito conjunto da eliminação das palavras fatal, referida à doença, e antecipação, referida à morte assistida descriminalizada, traduz um significativo alargamento dos casos desta. (…) A doença já não tem de ser fatal, isto é, provocar inexoravelmente a morte; e esta já não tem de ser antecipada, na medida em que deixou de ser previsível o seu momento”, considerou Caupers.
Acolhido o conceito de “doença grave e incurável”
No mesmo sentido, para Marcelo, importava saber se o Tribunal Constitucional entendia as alterações introduzidas pelo Parlamento como tendo sido no sentido de densificar e de garantir a “determinabilidade” exigida num texto jurídico desta natureza. O facto de o critério essencial à despenalização da morte medicamente assistida ter passado de “doença fatal” para “doença grave e incurável”, aqui entendida como uma patologia “que ameaça a vida, em fase avançada e progressiva, incurável e irreversível e que origina sofrimento de grande intensidade”, dava ao diploma uma enorme “indefinição” conceptual.
Mais: segundo argumentou Marcelo na altura, o facto de a “exigência de verificação de situação de sofrimento de grande intensidade” ocorrer “tanto quando existe lesão definitiva de gravidade extrema como nos casos de doença grave e incurável” imprimia “uma indefinição conceptual” que não podia “manter-se, numa matéria com esta sensibilidade”, em que se exige, explicou o Presidente, a “maior certeza jurídica possível”.
Ora, a maioria dos juízes do Tribunal Constitucional não acompanha os argumentos utilizados por Marcelo nestes pontos em concreto e desmonta as dúvidas levantadas pelo Presidente da República em torno do conceito de “doença grave e incurável” – um termo chave e difícil de balizar quando se discute uma questão como a eutanásia.
Para o Palácio Ratton, “não há dúvida de que se trata de um conceito jurídico indeterminado”. Mas, acrescenta-se, tem de o ser. “Na impossibilidade de elencar todas as condições clínicas de gravidade e incuráveis e na impossibilidade de definir exaustivamente uma situação clínica que pressupõe conhecimentos técnicos de que o legislador ordinário não dispõe, o mesmo optou pela utilização de um conceito de conteúdo incerto (…) que nem será muito difícil de preencher”.
Além disso, continuam os juízes do Tribunal Constitucional, “no caso em análise, trata-se de um conceito juridicamente indeterminado, que não é manifestamente vago, e que permite com relativa facilidade o seu preenchimento por parte dos aplicadores da lei sem que haja o perigo de deturpar a vontade do legislador ou de tomar opções políticas por ele”.
Quando enviou o diploma para o Constitucional, Marcelo levantou outra questão: “Acresce que, de acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 3.º do Decreto, parece que a exigência de verificação de situação de sofrimento de grande intensidade ocorre tanto quando exista lesão definitiva de gravidade extrema como nos casos de doença grave e incurável. Já na alínea e) do artigo 2.º, quando se define «Lesão definitiva de gravidade extrema», não se refere o sofrimento de grande intensidade, ao contrário do que sucede na alínea d) do mesmo artigo”.
Os juízes do Ratton desvalorizam. “Estamos em crer que se trata de um caso típico de má técnica legislativa – como manifestamente o é a utilização, na alínea f), do definido na definição, afirmando-se tautologicamente que sofrimento de grande intensidade é um sofrimento com grande intensidade – que não compromete de forma intolerável a inteligibilidade da lei.”
Tudo somado, e simplificando, os dois grandes argumentos de Marcelo – o facto de as regiões autónomas não terem sido consultadas e o conceito indeterminado de “doença grave e incurável” – não colheram aceitação por parte do Tribunal Constitucional, o que desarmadilha o caminho que os proponentes da lei têm agora de trilhar se quiserem ser bem sucedidos.
O conceito de “sofrimento físico” — com dor ou sem dor?
No entanto, nem tudo são boas notícias para os subscritores desta lei. E muito por causa da referência ao “sofrimento físico”, introduzida nesta última redação do diploma. Escreve o Tribunal Constitucional: “O sofrimento é privado e pessoal. O sofrimento é, por natureza, ontológico, multidimensional e subjetivo, ligado a uma situação de angústia e aflição que afeta a integralidade da pessoa. Cujas causas podem ser físicas, emocionais ou morais. Sobram, pois, reservas quanto à conceção de sofrimento físico”.
A questão é, de facto, complexa e as duas imagens utilizadas pelo presidente do Tribunal Constitucional durante uma declaração aos jornalistas sem direito a perguntas sintetizam bem isso mesmo: “Em termos práticos, está em causa saber se um doente com cancro terminal com um prognóstico de esperança de vida muito limitada ou um doente que padeça de Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA) que não tenham sofrimento físico tem ou não acesso à morte medicamente assistida”.
Dito de outra forma: uma pessoa a quem é diagnosticado um cancro terminal não tem necessariamente e no sentido mais restrito do termo de estar a sentir um sofrimento físico; nos casos de ELA, a força muscular é afetada, o que quer dizer as pessoas não sentem dores, pelo que o conceito de sofrimento físico pode ser colocado em causa.
“Parece que a alusão ao caráter físico reclamará uma repercussão somática do sofrimento: a literatura vem ligando a expressão sofrimento físico à dor corporal ou, pelo menos sofrimento que advém da dor”, recuperam os juízes do Tribunal Constitucional.
Segundo apurou o Observador junto de fontes partidárias conhecedoras do processo, esta referência do Tribunal Constitucional provocou alguma estupefação, uma vez que a leitura do conceito de “sofrimento físico” por parte dos proponentes do diploma vai muito para além da ideia de “dor corporal”. Todavia, a vontade destes partidos é que se encontre uma redação que permita ultrapassar esse obstáculo. Resta saber como.
O problema do “e”
Apesar destas questões que os juízes do Tribunal Constitucional levantaram, existe um aspeto nuclear a determinar a decisão de vetar o diploma da despenalização da morte medicamente assistida: a utilização de um “e” — e a dúvida sobre se a lei, tal como foi desenhada, pretendia ser mais restritiva ou mais ampla.
Nesta última redação, os partidos entenderam que estariam em condições de recorrer à eutanásia todos aqueles que estivessem a enfrentar um “sofrimento físico, psicológico e espiritual, decorrente de doença grave e incurável ou de lesão definitiva de gravidade extrema, com grande intensidade, persistente, continuado ou permanente e considerado intolerável pela própria pessoa”.
Segundo a interpretação do Tribunal Constitucional o uso do “e” levanta uma dúvida: alguém que queira antecipar a morte deve manifestar sinais de grande “sofrimento físico, psicológico e espiritual” – “persistente, continuado ou permanente e considerado intolerável pela própria pessoa” – ou basta que uma das condições (física, psicológica, espiritual) seja observada?
“No caso de se entender que se trata de condições cumulativas, daí decorre que, para se poder recorrer ao procedimento da morte medicamente assistida, é necessário que o requerente sofra, quer física, quer psicológica, quer, ainda, espiritualmente. Se se entender que se trata de condições alternativas, bastará a verificação de apenas um desses tipos de sofrimento”, alertam os juízes.
“Resumidamente, o que aos olhos de um leigo pode parecer uma mera indeterminação terminológica, na realidade tem implicações de monta, no plano jurídico-constitucional, quanto ao círculo de casos em que é descriminalizada a morte medicamente assistida. (…) Efetivamente, sendo suficiente um sofrimento psicológico ou espiritual, abrem-se as portas para a morte medicamente assistida em situações em que, verificando-se uma das duas hipóteses tipificadas na lei, ainda não há dor física e o requerente da morte medicamente assistida deseja a mesma por motivos relacionados, v.g., com a sua qualidade de vida, com a vontade de não ser um encargo pesado para os seus familiares, ou com circunstâncias laterais da mesma índole”, argumentam.
De resto, o facto de a Assembleia da República ter tentado enquadrar o conceito de “sofrimento de grande intensidade”, mencionando o tal “sofrimento físico, psicológica e espiritual” mereceu críticas do juiz Gonçalo Almeida Ribeiro, que votou pela inconstitucionalidade da lei. “É difícil determinar o que levou o legislador a empreender tão espinhosa tarefa, tendo em conta que o acórdão [anterior] não censurou neste aspeto o decreto então apreciado – que, recorde-se, não definia a noção de sofrimento −, e que o legislador espanhol não cometeu a imprudência de tentar definir o que é porventura insuscetível de definição”, argumenta Almeida Ribeiro, antes de acrescentar: “A verdade é que, para além de não ter logrado um conceito mais determinado, o que não lhe era de todo o modo exigível, o legislador português criou, suponho que inadvertidamente, uma nova indeterminação, esta grave e evitável.”
O Tribunal Constitucional recorda, a título de exemplo, que na legislação espanhola, que serviu de grande inspiração à portuguesa, “o sofrimento físico e o psicológico valem como alternativa e não como condições cumulativas”, como sucede com a lei belga e colombiana. “Com o que fica a dúvida: terá o legislador português, afastando-se da legislação espanhola, querido optar por uma solução mais restritiva?”, questionam os juízes.
Os autores do diploma procuram utilizar conceitos já previstos na lei que regula o acesso aos cuidados paliativos, que utiliza de facto a formulação “sofrimento físico, psicológico, social e espiritual”. Ora, contra-argumenta o Tribunal Constitucional, as pessoas que têm acesso aos cuidados paliativos não têm de acumular estas quatro tipologias de sofrimento. Pelo que a apropriação desta formulação no desenho da lei da eutanásia levanta dúvidas sobre a verdadeira intenção do legislador: querem ou não que os três pressupostos (sofrimento físico, psicológico e espiritual) estejam verificados?
Partidos vão procurar aproximação
Apesar das reservas do Palácio Ratton, a questão, como se viu pelas declarações de Isabel Moreira (PS), João Cotrim Figueiredo (IL), José Manuel Pureza (BE), Inês Sousa Real (PAN) e Paulo Muacho (Livre) não se coloca: a intenção do legislador passou sempre por garantir que a questão fosse cumulativa, ou seja, que estivessem sempre garantidos os três pressupostos – sofrimento de grande intensidade físico, psicológico e espiritual – de maneira a garantir uma solução mais conservadora.
Ou seja, uma vez esclarecida a dúvida do Tribunal Constitucional na redação do novo diploma (as tês condições são cumulativas), há margem para que a lei receba luz verde da maioria dos juízes do Palácio Ratton. É essa, pelo menos, a grande expectativa dos cinco partidos envolvidos no desenho do diploma.
Mesmo a terminar o acórdão, os juízes do Tribunal Constitucional deixam esse mesmo desafio: “Cabe ao legislador parlamentar, perante esta dúvida – para desencadear o procedimento que conduz à morte medicamente assistida é exigido, cumulativamente, o sofrimento físico, o psicológico e o espiritual, ou basta que se verifique um deles? –, fazer uma determinada opção legislativa (cumulação ou alternatividade) e formulá-la de tal forma que não deixe lugar a dúvidas ou equívocos. (…) Caso o legislador pretenda que os sofrimentos sejam cumulativos, deverá usar uma expressão que o indique de forma absolutamente clara. Assim o exige um Estado que se quer, efetivamente, de direito”.