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Não é novidade, mas vê-lo reafirmado no final de mais um ano garante que o processo é imparável: o esbatimento de fronteiras entre géneros musicais no vasto universo que vai das fórmulas pop ao experimentalismo mais urbano é uma dádiva. Não sabermos em que pé estamos quando pomos um disco a tocar é uma sorte e 2023 voltou a ser bondoso.

O R&B que desafia as regras — aliás, que comete a afronta de dizer que as regras são para quem as quiser, não para esta gente; o hip hop que contamina e se deixa contaminar, que está presente em toda a parte; até nas canções de bandas rock, que se reúnem anos depois, para concertos e para novos discos que conseguem surpreender e encantar; eletrónicas que arranjam maneira de ser selvagens e domesticadas, na mesma faixa e em coisa de minutos; e notáveis artífices da honestidade nas palavras, que lhes dão espaço e ritmo, mais pessoais, mais ficcionadas.

Estes são os álbuns que os jornalistas e colaboradores do Observador que habitualmente escrevem sobre música mais gostaram de ouvir. Sem definição de fronteiras ou nacionalidade e com um elemento novo: as canções que marcaram o ano, nesta despedida de 2023.

André Santos

Atlas
Laurel Halo
(AWE)

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Muitos músicos “reencontraram-se” nos últimos anos. Alguns por causa da pandemia, outros pela exaustão de anos a viajar. Laurel Halo percebeu que a forma como viveu na última década deixou-a exausta e com poucas soluções criativas para continuar no processo que desencadeou com o brilhante Quarantine de 2012. A solução? Ir para outro sítio, fisicamente, encontrar uma cidade que pudesse chamar casa e partir para outro destino, figurativamente, na criação. Abdicou das convenções, das ideias feitas da sua música e criou ambient a partir de nevoeiro. Atlas existe em vontade permanente de sair do escuro, sem conseguir.

Gentle Confrontation
Loraine James
(Hyperdub)

Nos quatro álbuns que Loraine James editou nos últimos cinco anos existe uma constante: a vontade de abandonar zonas de conforto. Gentle Confrontation age outra vez com essa premissa, desta vez com uma direção clara de ser pop e explorar formas menos óbvias para a música de dança/eletrónica. Ser pop para Loraine James implica experimentar mais e mais, partir pedra entre beats, deixar gente entrar neste universo, exigir o inesperado e criar lugares mágicos — vem logo à cabeça While They Were Singing com Marina Herlop.

Toquei No Sol
Marlene Ribeiro
(Lovers & Lollypops)

Durante anos, Marlene Ribeiro esteve associada a outros projetos (um deles envolvia Thurston Moore). Este álbum é o seu cantinho, seis temas que ligam a dream pop, o shoegaze e o rock experimental, entre percussões hipnóticas e caminhos estonteantes, abraçados pelo sol. Salta-se de canção para canção com uma sensação de refresco, Marlene tira o tapete do chão para depois o usar para nos aconchegar noutra ideia, noutro tipo de execução para chegar ao mesmo sítio. Anda-se à volta e sente-se sempre o mesmo. Imagine-se, isso é bom.

Dogsbody
Model/Actriz
(True Panther Sounds)

Os Model/Actriz acreditam que como se entrega a mensagem tem maior importância do que a provocação do novo, do renascer de uma ideia de rock. O que fazem alinha-se com o rock norte-americano que nasce nas margens e caminha ao seu ritmo para o centro. Mesmo quando não chega lá, impacta, muda tudo. Essa ideia de rock rejuvenesce de tempos a tempos: teve um marco no final dos 1970s, reencontrou-se na sede de nostalgia no início deste século e em 2023 os Model/Actriz justificam a sua existência pelo incómodo geracional. Cantam um mundo a explodir, sem futuro, hedonista e exasperante.

Source Of Denial
Nihiloxica
(Crammed Discs)

A urgência, o desespero e o ridículo contam-se nos BPMs da música alucinada dos Nihiloxica. Em Kaloli, o álbum de estreia editado em 2020, introduziam a velocidade furiosa que adaptava elementos percussivos do Uganda a música eletrónica contemporânea; em Source Of Denial alinham essas ideias com um confronto entre o analógico e a tecnologia, enquanto há gritos de raiva sobre processos burocráticos que afetam uma banda africana que se mete em digressão pela Europa e Reino Unido. Aproveitam o ridículo burocrático para comentar o presente com vários pontos relevantes. Uma bomba.

UMA CANÇÃO DE 2023: “Marble Walls”, Tara Clerkin Trio

Algum rock inglês dos últimos anos (caroline, Black Country New Road, Black Midi) aprendeu a reconstruir fórmulas abandonadas nas décadas de 1980 e 1990 e trabalhá-las na obsessão da execução perfeita. Fazem-no tão bem e tão rápido não porque estejam com pressa, apenas porque são mais rápidos do que gerações anteriores. Os Tara Clerkin Trio não estão no campeonato dos nomes atrás mencionados — de popularidade ou audiência – mas são um caso de estudo interessante, debruçam-se no rock e folk psicadélico sem jeitos de homenagem, mas com a (boa) arrogância de ignorarem o que foi feito. Marble Walls soa à canção que os Stereolab poderiam ter gravado com os Galaxie 500. E é ok ser assim, porque não iria acontecer. Por isso, foram os Tara Clerkin Trio que a fizeram. Psicadelismo, desnorte, calma e mel. Cinco minutos e meio de puro vício (e que convidam a ouvir o fabuloso EP The Turning Ground).

Cláudia Marques Santos

Pós-Esmeralda
Conferência Inferno
(Lovers & Lollypops)

Um dos projetos nacionais mais inovadores dos últimos anos, este “trio badwave do Porto”, como se denominam, lança já o seu segundo longa-duração de originais. Depois de Ata Saturna, editado em 2021, a música dos Conferência Inferno continua a fazer uma mistura vencedora entre punk e darkwave, tudo pelo som dos sintetizadores. As letras são também importantes: vivemos o fim de uma era, saltámos diretos para a distopia.

Estilvs Misticvs
Conjunto Corona
(Ed. autor)

Neste novo disco, os Conjunto Corona foram à bruxa. Ou, pelo menos, falam sobre bruxismo, exorcismo, psicadelismo, logo a abrir as hostes, no primeiro tema: “estilos místicos, sentado na mesa a falar com espíritos”. O MCing adaptado ao imaginário guna, ou mitra – é escolher a geografia –, faz da dupla Db (David Bruno) e Logos (Edgar Correia) um caso sério em termos de crónicas, em formato áudio, da mundividência portuguesa. A última faixa, Fumo na Panela, faz díptico com Mãe Birei Gandim, do álbum G de Gandim: “Fumo na panela, mano, fumo na panela/ Fumo na panela, mano/ Fumo, fumo, fumo”.

This Stupid World
Yo La Tengo
(Matador)

Décimo sétimo álbum da banda de indie rock de Nova Jersey, Nova Iorque, poderia parecer difícil conseguir captar ainda a atenção do público depois de álbuns com temas tão marcantes como foram I Can Hear the Heart Beating as One e And Then Nothing Turned Itself Inside-Out. Iran Kaplan canta sobre a inevitabilidade do tempo e quer fazer jus à aproximação da morte. Não é um disco de canções-canções, mas de ambiências exploratórias, resultado das muitas jam sessions que a banda faz nos ensaios.

Everything is Alive
Slowdive
(Dead Oceans)

Para amantes do shoegaze, os Slowdive estão de regresso com novo disco e vão tocá-lo na próxima edição do festival Paredes de Coura, podendo assim redimir-se do concerto com acústica deveras pobre que deram no Primavera Sound do Porto há dois anos. Depois do comeback triunfante da banda em 2017, com o álbum de nome homónimo, este Everything is Alive mantém o que a banda tem de essencial: a delicadeza do gesto, a frescura do som.

Sabina
Luca Argel
(Ed. Autor)

Um disco-guerrilha, a que Luca Argel já nos habituou, politizado, a história de Sabina foi retirada de um texto do historiador e compositor brasileiro Luiz Antonio Simas e vai sendo lido ao longo do disco pela actriz e encenadora Nádia Yracema. Sabina foi uma vendedora carioca de laranjas, cujos frutos serviram para um grupo de estudantes de medicina republicanos atirarem à carruagem do visconde de Ouro Preto, estandarte do império e da monarquia, decorria o ano de 1889. Sonoridades de rua, samba, batidas afro, pozinhos de sintetizadores, tudo misturado pela candura do gesto deste brasileiro radicado em Portugal há mais de uma década.

UMA CANÇÃO DE 2023: “Fumo na Panela”, Conjunto Corona

O rei das panelas, esse mesmo que andou a palmar catalisadores de norte a sul do país, tem direito a um rap de imaginário guna pela dupla Db (David Bruno) e Logos (Edgar Correia) que é um clássico instantâneo. Groove, “Fumo na panela, mano, fumo na panela” e a participação de Tropa Snow. E não esquecer o Homem-do-Robe-tipo-Bez-dos-Happy Mondays.

Filipa Teixeira

Ghosts
Hania Rani
(Gondwana)

A composição clássica sempre foi o chão a partir do qual a pianista e compositora polaca Hania Raniszewska contruiu os seus castelos. Com Ghosts, terceiro álbum a solo, Hania sublimou toda a poética que já lhe reconhecíamos, mostrando-se fiel a um pensamento clássico, sem se inibir de o expandir para uma contemporaneidade que dialoga com Melanie de Biasio, Radiohead, Ólafur Arnalds (que participa na faixa Whispering House) ou Kraftwerk. Ghosts é sobre o que morre e o que se renova, na natureza e na vida, sobre todas as subtilezas que apenas são percetíveis na quietude. É sobre Chopin e Ryuichi Sakamoto, a quem, por vias travessas, faço a devida vénia. 12, álbum requiem do compositor japonês, é um fantasma que também levita nos melhores de 2023.

Gótico Português
Glockenwise
(Vida Vã)

Cinco anos foi o tempo de espera para os Glockenwise deitarem cá para fora um novo álbum. Qual o espanto quando percebemos que Gótico Português em pouco ou nada se assemelhava a Plástico (2018). Benditas as bandas que não se deixam engolir pela voracidade da indústria ou iludir pelo sucesso instantâneo e que, mostrando-se fiéis aos seus princípios, sobram em talento e não têm medo de se explorar. Gótico Português, de canções longas que não cabem nas métricas da rádio, é sobre o poder criativo de quem está na margem, sobre o que fervilha nesses territórios. Cheira a pós-punk de uns Joy Divison, mas também ao barro amassado por Rosa Ramalho. Tudo isto embrulhado numa lírica nietzschiana, em bom português.

Curyman
Rogê
(Diamond West)

A produção artística brasileira – da escrita à música, passando pelas artes plásticas – tem na sua genética a condição antropofágica, fenómeno que se explica pela história de um povo que é mistura de tantas latitudes, sabores, ritmos, plantas e sotaques. Condensar toda essa riqueza humana, natural e estética numa só obra exige um grande equilibrismo e, nesse sentido, Rogê deu-nos uma receita exata que retrata aquilo que o Brasil é na sua imperfeita condição. Homenageando Dorival Caymmi, Jorge Ben Jor ou Tim Maia, Curiman é disco enciclopédia da música brasileira, com forte enraizamento em África e no candomblé e com tempero americano.

Me Chama de Gato Que Eu Sou Sua
Ana Frango Elétrico
(Risco)

Foi difícil escolher entre a belíssima estreia a solo de Zé Ibarra, com Marquês, 256., ou o terceiro álbum de Ana Fainguelernt. Optei pelo segundo, talvez encantada pela ousadia desta compositora, cantora e produtora carioca que tem metido o dedo em alguns dos projetos mais estimulantes que têm saído do país do Carnaval. Neste seu terceiro álbum a solo, Ana Frango Elétrico expõe-se tal e qual como é: não binária, divergente, brasileira com pé no funk e no disco, alguém com uma larga noção de musicalidade e uma inteligência e humor brilhantes na hora de escrever. Rita Lee é uma referência óbvia, mas outros nomes poderiam ser para aqui chamados, como Tom Zé ou Jorge Mautner.

Sundial
Noname
(Ed. autor)

Noname é o nome artístico de Fatimah Nyeema Warne, rapper negra norte-americana que não gosta de ser arrumada em categorias nem de alinhar em reflexões simplistas. O seu posicionamento anti-imperialista, antirracista e feminista é desconcertante, tanto pelas críticas que aponta a nomes quase intocáveis (como Beyoncé, Kendrick Lamar e Barack Obama), como pelo contorcionismo ético a que se e nos expõe. A maneira aparentemente despreocupada como debita o seu spoken word é, por si só, uma delícia tão leve quanto cínica, à qual o seu rap, fundido com jazz, funk ou R&B, empresta uma panóplia rica de cores e formas. Sundial, o terceiro álbum de originais da carreira, mostra-nos o quão necessário e refrescante é ouvir uma voz ativista que não se fica pela rama nem pelo sound bite fácil.

UMA CANÇÃO DE 2023: “The Universe”, Róisín Murphy

Retirada do álbum Hit Parade, esta é uma daquelas canções com um beat catchy que imediatamente se cola ao cérebro. Sem querer, já a estamos a cantar enquanto caminhamos, cozinhamos, no banho ou na pausa do trabalho. Rósín Murphy continua a saber remar nos domínios da pop, da house e do disco com a mesma vitalidade e inventividade de há 30 anos, quando surgiu ao lado de Mark Brydon com o projeto Moloko, e isso sabe muito bem. The Universe é sobre o ato de brincar com a vida e com o desconhecido, tal e qual a própria faz com a sua música: espaço de criatividade e mutação infinita, um jogo cujo objetivo maior é gozar cada jogada, sem medos ou preconceitos.

Isilda Sanches

Sundown
Eddie Chacon
(Stones Throw)

Depois do maravilhoso Pleasure Joy and Happiness, editado discretamente em 2020 mas que o mundo tem vindo a descobrir aos poucos por efeito de contágio, Eddie Chacon continua as suas explorações soul sobre as grandes questões da existência em Sundown. Gravado entre Ibiza e Los Angeles, é um disco de sofisticada simplicidade com produção meticulosa de John Carroll Kirby. Com quase 60 anos, no segundo álbum, Eddie Chacon soa fresco, luminoso e inspirador

Clubs Hit
Império Pacífico
(Variz)

O segundo álbum da dupla Pedro Tavares (funcionário) / Luan Belussi (trash CAN) combina vários elementos eletrónicos e orgânicos numa síntese de vocação baleárica que se entranha na pele como calor de verão. As canções movem-se por aquele território incerto, mas irresistível, que liga a pista de dança ao cosmos. Panda Bear participa, o que garantiu alguma atenção internacional, mas há muito mais do que Aftershow nestes Clubs Hit.

Supermaket Joy
Margarida Campelo
(Discos Submarinos)

https://open.spotify.com/intl-pt/album/4c7agR5hHfE5VThxKrZ2My?si=20f0143f3e5c411f

Supermarket Joy é uma pérola. Ou várias, já que quase todas as canções do disco brilham. O álbum de estreia de Margarida Campelo, produzido por Bruno Pernadas, está cheio de referências à city pop japonesa dos anos 80, ao easy listening e jazz, soul clássica e moderna e combina tudo numa fantasia encantatória que tem tanto de imediato como de complexo. Nada é óbvio e, no entanto, tudo soa familiar e acolhedor nestas canções de Supermarket Joy.

95 Mindjeres
Nídia
(Príncipe)

O título do terceiro álbum de Nídia refere-se a um pelotão de 95 mulheres que combateu ao lado do PAIGC pela independência da Guiné Bissau e Cabo Verde durante os anos 60, uma parte esquecida da história que inspirou Nídia enquanto mensagem de poder e autonomia femininos. A música é de pista de dança, guiada por um sentido rítmico aguçado, até feroz, e uma capacidade inventiva imprevisível, e traduz-se na mais poderosa e consistente afirmação de Nídia em álbum.

Illegal Planet
Rita Braga
(Comets Coming)

A música de Rita Braga vive de muitas referências, incluindo de cinema. Illegal Planet (piscadela de olho ao filme Forbidden Planet) é um disco de dream pop retro futurista sobre questões modernas em ambiente de film noir que às vezes deriva para a sci-fi série B. Parece confuso, mas resulta como um episódio de Twin Peaks. Entre marimbas e ukuleles, caixas de ritmos de sintetizadores, influências de jazz e música latina, Rita Braga faz o seu próprio filme e é fácil entrar nele.

UMA CANÇÃO DE 2023: “It Must Change”, Anohni and the Johnsons

Soul clássica a lembrar Marvin Gaye e não é por acaso, Anohni admitiu ter-se inspirado no álbum What’s Going On. It Must Change é a primeira canção do álbum My Back Was A Bridge For You To Cross, é sobre o amor como única forma de redenção num mundo de que ninguém escapa. Começa com a voz ternamente dramática de Anohni, suportada apenas por guitarra, percussão e cordas surgem depois, sublinhando a mensagem. Ouço-a como uma canção de esperança para tempos difíceis.

João Bonifácio

The Greater Wings
Julie Byrne
(Ghostly International)

Há vozes que são como gatos, que se deitam ao nosso lado ou se enrolam à volta do pescoço como um cachecol, vozes-lareira, que nos aquecem enquanto chove lá fora, nos trazem conforto no meio da tempestade. Julie Byrne é dona de uma dessas vozes – já o havia provado com Not Even Happyness, o disco de folk etérea que a tornou uma figura de culto e volta a prová-lo com The Greater Wings, disco marcado pela morte de Eric Littmann, de 31 anos, que fora o homem responsável pelos sintetizadores e pela produção de Not Even Happyness – o homem que definira o som de Byrne. Esse disco acabava com órgãos etéreos e a voz de Byrne nas nuvens – The Greater Wings começa onde o anterior, editado seis anos antes, acabava: a voz, a guitarra, os sintetizadores, os arranjos de cordas emanam a mesma tristeza celestial. Byrne não nos traz soluções, apenas nos mostra a beleza que resta depois da devastação – a sua voz paira acima das coisas mundanas, possuída pela resignação de quem sabe que tudo isto acaba e o que nos resta é apenas o amor que pomos em cada pequeno gesto. Foi para artistas como Byrne que se criou a palavra milagre.

The Ballad Of Darren
Blur
(Parlophone)

Tudo passa, tudo passará: a guerra pelo domínio da brit-pop acabou, os putos já não ouvem guitarras, antes balançam o corpo ao som da batida latina de Rosalía, ninguém quer saber de guitarras. Exceto quando um quarteto de ingleses de meia-idade se junta para expiar as dores de envelhecer e continuar a errar. Os Blur não precisavam de nada disto: continuariam a encher estádios do mundo inteiro só a tocar os êxitos, mas Damon Albarn tinha a necessidade de expiar a separação da mãe da sua filha e quando um homem se divorcia precisa dos amigos – e foi assim que chegámos ao mais triste e mais adulto disco dos Blur: dos metais grandiosos de The Heights às guitarras de indie-rock clássico de Barbaric, passando por The Narcissist, Goodbye Albert ou o piano e cordas de Russian Strings, os Blur fizeram um disco não só pejado de grandes canções como terrivelmente honesto – um disco que não finge ser feito por miúdos, um disco adulto sem ser aborrecido, comovente sem ser lamechas. A vida pode não correr bem a Damon Albarn, mas a tristeza dele é a nossa bênção – já não sob a forma de pérolas pop, como antigamente, mas de grandes canções com hipoteca e filhos.

The Age of Pleasure
Janelle Monáe
(Atlantic)

Há um tema (e respetivas variações) que se repete em cada disco de Janelle Monáe: a autonomia da mulher, o direito de cada mulher a fazer da vida o que bem lhe apetecer, a decidir com quem dorme, o que mostra do seu corpo, a dizer o que quer e a não ter de prestar contas a ninguém. Enquanto forma de olhar o mundo (passe a expressão) é inatacável, mas de boas intenções estão muitas más canções cheias; acontece que nunca como em Age of Pleasure Monáe foi tão explicitamente sensual, nunca procurou tão deliberadamente que a sua música funcionasse como uma espécie de enzima da libido. De Champagne Shit (meia reggae meia r’n’b) a Water Slide, passando por Phenomenal, Monáe exibe o seu imenso talento em fundir o r’n’b com todos os géneros possíveis e imaginários por forma a fazer passar a mensagem explícita em The Rush: “Fucking you like it’s my Destiny”. Age of Pleasure é um disco sobre pinar simplesmente porque se quer pinar – e é um disco que sabe a exata roupa com que deve vestir cada refrão, para a despir no momento certo.

Desire, I Wanto to Turn Into You
Caroline Polacheck
(Sony)

Todos os dias nascem novas apps, cuja única função é criar um lugar onde os putos não sejam vigiados pelos pais. Não há propriamente uma razão para se adotar uma em vez de outra, mas a obsessão do Tik Tok com vídeos tornou-a a app de eleição dos putos. Os putos usam-na como motor de pesquisa, câmara de experimentação identitária e arena de descoberta musical – se uma canção explode no Tik Tok o autor pode ver-se, da noite para o dia, tornado em estrela. Foi o que aconteceu a So Hot You’re Hurting My Feelings, de Caroline Polachek, pop simples com um refrão entre os anos 80 e o r’n’b atual. Polacheck não era uma novata (fez parte da banda indie-pop Chairlift), mas foi esse o momento em que se tornou uma estrela. O tempo de vida das estrelas do Tik Tok é variável mas quase sempre curto – Desire, I Want to Turn Into You, o mais recente álbum de Polacheck, demonstra que ele é uma sábia criadora de pop esquisita: Bunny is a Rider, Blood and Butter, I Believe ou Billions demonstram que ela sabe como criar muito a partir de quase nada: beats que se acumulam antes de um refrão r’n’b, pianos, pizzicatos de violinos – nada disto faz sentido e no entanto, chegados aos refrões, damos por nós a querer mascar de novo a chiclete. Os putos podem não saber o que fazem, mas sabem o que ouvem.

Praise a Lord Who Chews But Which Does Not Consume; (Or Simply, Hot Between Worlds)
Yves Tumor
(Warp)

Que mais não fosse, Yves Tumor merecia o prémio de autor de melhor nome de disco do ano, mas felizmente a música de Praise a Lord (…) está à altura da inventividade do título: há algo neste som de rústico, de rua, de inacabado, sujo, as linhas de baixo pesadas, as guitarras cheias de ferrugem, as vozes roucas, e um ruído de fundo constante, alimentado por beats furiosos. Rende desde o primeiro tema, God is a Circle, até à última Ebony Eye, com uma entrada sumptuosa. Vindo do mundo do underground e do noise, Yves Tumor diz que só quer fazer hits – mas não se enganem, não são hits para a família, como os de uma Taylor Swift – são canções explosivas, barulhentas, gigantes, porcas, cheias de detritos, que fazem a ponte entre o rock alterativo e o r’n’b e se riem da lata com que tão desavergonhadamente se apresentam. Um grande disco em qualquer parte do mundo, em qualquer ano.

UMA CANÇÃO DE 2023: “Vampire Empire”, Big Thief

Há um estado de saúde que se define por acessos de febre à visão do objeto de desejo, aumento da circulação sanguínea e uma sensação de conforto amniótico que, quando apartados do dito objeto, nos escapa. Sim, eu sei que este foi o ano dos Lankum, de Water From Your Eyes, de Caroline Polacheck, o ano em que billy woods lançou uma canção chamada Year Zero mas sou meio cego dos ouvidos, ouço com o coração e o meu coração vive num estado de expectativa e desespero por cada nova iteração da presença mágica de Adrianne Lenker no mundo. Os Big Thief, a banda de Lenker, lançaram exatamente uma canção este ano — folk-rock clássica com uma explosão no refrão, um arrepio de desejo que a leva a cantar “I wanted to be your woman / I wanted to be your man”, antes da doçura da coda — e eu, um burro de orelhas grandes, não sei de mais nada, para mim não há mais canções, não há mais mundo, não preciso de mais nada, quero viver enrolado nesta canção até que depositem o meu corpo debaixo da Terra, feliz por ter sido contemporâneo deste milagre.

Luís Freitas Branco

Desire, I Want to Turn Into You
Caroline Polachek
(Sony)

O conceito de pop alternativa é uma contradição: se a pop é o género musical de massas, de refrões acessíveis prontos a vender, onde se enquadra uma pop de nicho, experimental e desinteressada em negócio? Em todo lado, responde Caroline Polachek, diva da pop alternativa em 2023. Desire, I Want to Turn Into You desenvolve-se de uma paleta trip-hop, profundamente anos 90, derivando em R&B, transe, música celta, flamenco, delírios de musique concrète, num plano concertado para encantar os nossos ouvidos. É uma sereia que seduz os marinheiros de passagem, de canto minuciosamente manejado; qualquer resistência é vã, lancem a âncora e desembarquem na Ilha dos Amores de Caroline Polachek.

Scaring the Hoes
Danny Brown e JPEGMafia
(AWAL)

Para começar, que se lixe o Elon Musk. Esta é a primeira frase de Danny Brown, o rapper de voz anasalada ao extremo, no álbum de colaboração com JPEGMafia, um produtor incapaz de apresentar uma canção minimamente digestível. O título de Scaring the Hoes resume o álbum — na falta de melhor tradução, sugiro “música para assustar as gajas”. Como é que é suposto fazer dinheiro com isto?, graceja a certa altura Danny Brown. Scaring the Hoes é absurdamente abrasivo, JPEGMafia desmantela os samples R&B com distorção, glitches, dubstep, e uma panóplia de sons aleatórios, como quando o Super Mario dá a cabeçada na caixinha. Scaring the Hoes é um comprimido de adrenalina, droga da boa, de efeito imediato.

My Back Was A Bridge For You To Cross
Anohni and the Johnsons
(Secretly Canadian)

O novo álbum de Anohni and the Johnsons é um canto de cisne para o sofrimento da vida. A cantora de vibrato estrondoso retorna ao classicismo soul, onde esta voz indescritível, que surge de algum cume luminoso, ou de uma cova sombria, abraça-nos como uma assombração divina. My Back Was A Bridge For You To Cross é um cavalo de Troia: estas melodias de um encanto discreto, que passam despercebidas em qualquer rádio, são um grito de protesto. A formosura da voz e a simplicidade dos arranjos acobertam um pedido pela libertação dos corpos contra uma sociedade moralmente e sexualmente conservadora. Esta não é uma realidade distante, isto é também Portugal em 2023.

Why Does the Earth Give Us People to Love?
Kara Jackson
(September)

Há pessoas que matam para ser reconhecidas, outras mentem, drogam-se, ou simplesmente aperaltam-se, pondera a cantautora e poeta Kara Jackson no seu álbum de estreia. Sugiro mais uma possibilidade: há pessoas que fazem canções tão singulares, inconfundíveis à primeira audição, que estão fadadas ao reconhecimento. O timbre contralto de Kara Jackson condiz com a candura das composições, a narradora admite azar nos homens, que a consideram intimidante, e como não, ouçam a segurança deste folk meditativo, não é descabido mencionar aqui Joni Mitchell e Leonard Cohen. Será que mereço aplausos?, pondera em curtains. Claro que sim Kara, aplausos, vénias, e o nosso eterno reconhecimento.

Gótico Português
Glockenwise
(Vida Vã)

Os melhores álbuns nacionais de 2023 retratam um persistente fosso cultural: os músicos da Grande Lisboa, seja Profjam, Slow J ou Carminho, profetizam o advento de uma identidade lisboeta global, urbana e cosmopolita; enquanto nas margens, lá p’ra cima, lá p’ra dentro, outros músicos portugueses desenham um país diverso, de delírios, seitas e promessas, e sobretudo, de enclausura. Gótico Português é um álbum político, de gente sozinha a refletir o que é ser artista, estar vivo, numa terra alegadamente abandonada; um testemunho fundamental da extraordinária banda de Barcelos na entrada dos cinquenta anos do 25 de Abril.

UMA CANÇÃO DE 2023: “Bad Idea Right?”, de Olivia Rodrigo

A californiana é reconhecida pelas baladas, repletas de incertezas e súplicas, mas o que distingue Olivia Rodrigo das restantes pop stars é outro estado de alma: o rock’n’roll — lembram-se, consiste em atitude e guitarradas. Bad Idea Right? bate forte e feio, as guitarras ora rasgam em direções diferentes, ora convergem num refrão inescapável, a certa altura distorcem num solo à Jack White, e não esqueçamos o maravilhoso baixo borbulhante — és tu Kim Deal? A letra é uma galhofa: ela entra em casa do ex-namorado — “Hey” — congela mal lhe vê a fronha — “My brain goes, Ah” — e acaba na cama — “I just tripped and fell into his bed”.

Nelson Ferreira

The Returner
Allison Russell
(Fantasy)

O melhor disco de “Americana” veio do Quebec. Ao segundo álbum, Allison Russell mergulha em sonoridades (ainda) mais densas no género que melhor define o interior dos EUA. O número de nomeações que conseguiu com o disco de estreia (Outside Child, 2021), será difícil de ultrapassar mas, artisticamente este The Returner é um salto mais alto, mais fundo, na mixlândia de influências que não ajudam a colocar Russell numa só prateleira.

Curyman
Rogê
(Diamond West)

Depois de 20 anos de discos e mil colaborações no Brasil natal, Rogê trocou em 2019 o Arpoador por Los Angeles. E em boa hora o fez. Curyman é o seu primeiro disco “internacional” e um dos mais felizes. O samba do morro modernizou-se e a lírica tornou-se mais consciente. Mas nunca se perde de vista esse Brasil imenso que não precisa de língua inglesa para emocionar o mundo.

Dedos Finos
Vludo
(Quarto Mágico)

O melhor disco nacional de 2023 é Afro Fado de Slow J. Dito isto, há outros que merecem igualmente menção e elogios fartos. Dedos Finos é a estreia de Blasph e Sam The Kid como Vludo. Um disco que me fez regressar a um rap do qual não sabia que tinha tantas saudades. Duro, rude, forte, obscuro. As origens de Vludo estão entre a Margem Sul e Chelas, mas estas canções fazem muito sentido numa viagem pela marginal do Douro, entre o Freixo e a Ponte D. Luís I, num dia de nevoeiro.

Cimbron Celeste
Acácia Maior
(Tabanka Records)

Finalmente, um dos mais excitantes projetos da lusofonia baseada em Lisboa tem um disco inteiro! Para além da farra, Cimbron Celeste é triunfal, divertido e esperançoso. Cachupa Psicadélica, João Gomes, Paulino Vieira, só para citar alguns, fazem dos Acácia muito mais que uma banda criada por Luís Firmino e Henrique Silva, mas antes um espaço de comunhão que transcende quaisquer fronteiras.

Brain Worms
RVG
(Ivy League)

Continua de saúde o mercado de exportação rock australiano. E desta feita com um disco cheio de nervo, sinceridade e letras galvanizantes. Os RVG fazem-nos lembrar que fica difícil bater bons riffs de guitarra, um baixo bem grave, uma bateria acelerada e uma voz que vem das entranhas, através da carismática Romy Vager. Se o rock ainda salva em 2023 é graças a discos como Brain Worms dos RVG.

UMA CANÇÃO DE 2023: “Big Trouble”, Zooey Celeste

Quando um surfista californiano que viveu no Havai até bater com a cabeça num coral se muda para Brooklyn, nascem coisas estranhas como Restless Thoughts. Um disco em que apetece mergulhar, quanto mais não seja para tentar perceber tudo o que se está ali a passar. E não é pouco. Na internet dizem que é “uma onda etérea contínua de lo-fi e astral-pop”, a que se juntam ótimos sintetizadores e uma voz que faz lembrar o melhor disco de Planningtorock.

Ricardo Farinha

Sundial
Noname
(Ed. autor)

Inteligente e com sentido de humor, Noname usa Sundial como um manifesto político que não se leva muito a sério, onde tanto há espaço para apontar dedos como para assumir culpas, refletir sobre desamores e questionar os poderes instalados. As letras espirituosas casam na perfeição com os instrumentais jazzísticos dinâmicos, suaves e calorosos, onde a voz de Noname é dona e senhora — e os convidados foram igualmente bem escolhidos.

Afro Fado
Slow J
(Sente Isto)

Slow J já explorara o fado e os balanços africanos na sua música, mas nunca como aqui. No seu terceiro álbum, com a ajuda preciosa dos co-produtores GOIAS, João Batista Coelho funde todos os elementos que habitam o seu universo sonoro para criar um corpo de som único — sem quaisquer abordagens óbvias — que marca o seu disco mais identitário, onde o lema é a apologia da mistura. É o álbum que o leva ao patamar seguinte, a um passo mais próximo de Amália e Eusébio.

1 Prétu — Xei di Kor
Prétu
(Tchada Elektro)

Já se tinha afirmado como um dos mais talentosos e importantes rappers portugueses enquanto Chullage. Mas é na casa dos 40 anos, numa fase de extrema maturidade e consciência, que Nuno Santos se reinventa como Prétu. O resultado é um álbum desconcertante, profundamente político, que recupera a tradição musical lusófona mas a leva por uma jornada afro futurista sem retorno. O passado a servir de combustível para a ideia de um futuro mais justo, já imaginado pelos ícones revolucionários e agora materializado em som, num registo experimental que explora terreno novo, escapando aos cânones do hip hop, e que reafirma Prétu como um dos mais relevantes músicos na história deste país.

Red Moon in Venus
Kali Uchis
(Geffen)

Num disco algo surrealista e fantasioso, onde o espaço e o tempo parecem maleáveis, Kali Uchis preparou uma ode ao feminino. O terceiro álbum da artista colombiano-americana oscila entre R&B cosido a seda e sonoridades pop latinas que, combinados, resultam num disco suave e edificante, com instrumentais e vozes que parecem pertencer a sonhos lilases, de uma certa luxúria escapista. Baladas refrescantes — e ao mesmo tempo confortáveis — para alimentar a alma e absorver o negrume.

Diabos m’Elevem
Riça
(Biruta)

Foram poucos os álbuns de rap lançados em Portugal nos últimos anos com a originalidade de Diabos m’Elevem. Riça propôs-se a subverter os cânones do hip hop ao incorporar a música tradicional portuguesa — sobretudo do norte e das beiras — neste disco com uma produção auspiciosa e cuidada (muito graças também ao talento e dedicação de Zé Menos) e com letras que evocam superstições e mitos regionais enquanto processam traumas pessoais. Um álbum de rap que só poderia ter sido feito em Portugal e que expande cada vez mais as fronteiras da música nacional contemporânea, que olha para si própria antes de se dirigir ao mundo.

UMA CANÇÃO DE 2023: “A Revolução Não Vai Ser um Tweet”, Prétu

Pegando na velha máxima de Gil Scott-Heron, Prétu atualiza-a para os tempos das redes sociais e da era digital e termina o seu álbum Prétu 1 — Xei di Kor com uma canção que nos remete imediatamente para o meio de uma manifestação de rua. Há ruído, uma certa urgência na voz e uma adrenalina que vai borbulhando através do instrumental endiabrado. Pelo meio, como que serpenteando os corpos numa multidão, os versos certeiros de Prétu vão estabelecendo o que conta ou não — com mais sarcasmo ou acidez, esperança ou revolta — para esta missão “permanente e lenta” que vai ser a revolução. Um hino à consciência social e ao inconformismo.