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A redenção de Anohni

Anohni and the Johnsons retorna à candura das suas melhores canções em "My Back Was a Bridge for You to Cross", melodias de um encanto discreto sobre o sofrimento da vida. Um álbum arrebatador.

Onde é que estavam em julho de 1969, quando o Neil Armstrong pisou a Lua? E em 1974, à meia-noite e vinte minutos, quando a Renascença passou a “Grândola, Vila Morena”? Ou no dia 11 de setembro, logo que o segundo avião embateu nas Torres Gémeas? Por hábito, recordamos marcos históricos para garantir que temos um lugar próprio na imensidão do tempo. Estes questionários assumem que há eventos sísmicos que formam uma rutura, um acontecimento ou entidade revolucionária que altera a perceção do tempo. Acrescentemos mais uma questão: lembram-se da primeira vez que ouviram Anohni Hegarty?

O vibrato estrondoso de Anohni Hegarty percorreu o mundo há quase vinte anos, em 2005, no álbum I Am a Bird Now, um sucesso extraordinário para uma cantora transgénero que advinha do refúgio de espetáculos à meia-luz, em bares de má fama, na cena drag de Nova Iorque. Em Portugal, assim como no resto da Europa, ouviu-se obsessivamente canções como “Hope There’s Someone”, “You Are My Sister” ou “Fistful of Love”, que continham força suficiente para nos surpreender e derrubar no meio da rua. A essência era esta voz indescritível, andrógena, que surgia de algum cume luminoso, ou de uma cova sombria, um anjo diabólico, entre o céu e o inferno. A aparição regressa para My Back Was a Bridge for You to Cross, o novo álbum de Anohni and the Johnsons, um canto de cisne para o sofrimento da vida.

[“My Back Was a Bridge for You to Cross”:]

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O quinto álbum de Anohni and the Johnsons nasceu despretensiosamente com duas pessoas fechadas num quarto, a tentar extrair canções da atmosfera. A cantora empunhava um bloco de notas, sugeria imagens e o produtor escocês Jimmy Hogarth explorava cenários na guitarra elétrica. Bastaram duas semanas para gravar o álbum que assinala um regresso à candura de I Am a Bird Now; as dez canções compõem o álbum mais arrebatador de Anohni desde a primeira vez que ouvimos esta voz.

A primeira canção, “It Must Change”, é uma resposta direta a Marvin Gaye, que proclamou em 1971 a urgência de uma mudança em “What’s Going On”. A entrada de My Back Was a Bridge for You to Cross é soul, mas não é propriamente o soul revolucionário de Marvin Gaye; o single remete para uma época anterior, antes das convulsões dos anos sessenta, quando bastava uma bateria, baixo e guitarra, e o ciciar de Sam Cooke para derreter corações. Esta época do canto suave, ali no culminar dos cinquentas, é a especialidade do produtor Hogarth — o músico escocês é o compositor de “Warwick Avenue” de Duffy e de “Help Yourself” de Amy Winehouse. Na forma, “It Must Change” é uma encantadora canção de retro-soul, mas no conteúdo é uma história completamente diferente.

[o vídeo de “It Must Change”:]

O antagonismo entre a forma e o conteúdo das canções é um espelho do antagonismo social e político norte-americano de 2023. O álbum de Anohni and the Johnsons é um cavalo de troia: estas melodias de um encanto discreto, que passam despercebidas em qualquer rádio, são um grito de protesto. A formosura da voz e a simplicidade dos arranjos acobertam um pedido pela libertação dos corpos contra uma sociedade moralmente e sexualmente conservadora. Em 2023, já foram registadas mais de 400 novas leis estatais anti-LGBTQ em solo americano, desde a restrição a espectáculos drag à proibição de tratamentos de mudança de sexo — e reparem, ainda falta o resto do ano. Anohni argumenta que esta divisão moral não tem fundamento, é por isso que algo tem que mudar, é por isso que é tudo tão triste: “That’s why this is so sad”.

Os opostos não existem, defende Marsha P. Johnson, a drag queen e ativista LGBTQ desde os tempos da Revolta de Stonewall, que se ouve a discursar num sample, a meio caminho de “It Must Change”. Marsha P. Johnson é o fantasma omnipresente neste álbum, a começar pela capa, um retrato do fotógrafo Alvin Baltrop, que captou a cena gay nova-iorquina na década de setenta, às margens do rio Hudson. Anohni conheceu Marsha num momento vital, em 1992: a jovem de 21 anos era estudante de teatro na Universidade de Nova Iorque e estreava-se em palco como membro dos Blacklips, um grupo de teatro drag avant-garde, onde cantaria as suas primeiras composições. Uma semana depois de conhecer a célebre ativista, o corpo de Marsha foi encontrado a flutuar no Hudson, um alegado homicídio nunca resolvido — há um documentário da Netflix sobre o caso.

Anohni é uma classicista pop, a sua voz merece o silêncio de melodias discretas para carregar uma canção às costas. Se "Hopelessness" empurrava e provocava os ouvintes, "My Back Was a Bridge for You to Cross" abraça-os de volta.

A morte de Marsha P. Johnson foi transformadora: demonstrou a Anohni a urgência de representar e combater pela comunidade LGBTQ em palco, inclusive nomeando a sua banda de “Johnsons”. Mas foi outro ícone de Nova Iorque que a motivou a alcançar milhões de ouvintes: Lou Reed. O primeiro álbum de Anohni, Antony and the Johnsons, foi desenrascado pelo amigo William Basinski e não motivou grande alarido, mas três anos depois, em 2003, foi parar nas mãos de Lou Reed enquanto gravava The Raven, o álbum baseado na obra de Edgar Allan Poe. Lou Reed convidou Anohni para embarcar na sua próxima tournée e a cantar uma versão de “Perfect Day”. Mais tarde, mesmo durante o rebuliço de I Am a Bird Now, entre palcos de ópera e orquestras, a discípula continuou a homenagear o mestre — há melhor versão de Lou Reed do que “Candy Says” por Anohni Hegarty?

Uma interpretação de “Candy Says” era mais que natural para esta cantora transgénero, contudo, havia mais do que uma mera afeição temática. A desarmante simplicidade melódica de Lou Reed é uma receita que Anohni aplicaria nas suas futuras composições, incluindo em My Back Was a Bridge for You to Cross, sobretudo na canção de homenagem ao vocalista do Velvet Underground dez anos após a sua morte: “Sliver of Ice”. Segundo Anohni, nos últimos dias de vida, Lou Reed contou-lhe que ficou arrebatado pela sensação corriqueira de um cubo de gelo a derreter na língua:

“The cold ice on my tongue
Makes its way towards oblivion
How sweet the vista, the portal view
On my way to black and blue

On my way to black and blue
How sweet the vista, the portal view”

A recordação de Marsha e Lou não é pacífica. Afinal, estes mentores abandonaram a luta, deixaram Anohni sozinha, neste mundo cada vez menos convidativo a passeios no lado selvagem. “Porque é que estou viva agora?”, pergunta uma e outra vez, em “Why Am I Alive Now?”, a composição mais próxima de Marvin Gaye, uma balada em tempo acelerado, de baixo e percussão dançante entre espaços. Esta coisa de estar vivo significa que temos de testemunhar em direto a decomposição do corpo, e em última análise, da própria terra, que já esteve de melhor saúde:

“Watching nature swoon and sigh
Watching all the water dry
Watch the sky fall to the Earth
Birds and insects looking for

For a place to hide”

A toada segue em “Can’t”, estão todos mortos e ela está sozinha a apodrecer; e esta desgraça, acreditem, é proclamada durante uma jubilosa cantiga.

É pervertido que Jimmy Hogarth seja o produtor destas canções que deveriam ser taciturnas, idealmente carregadas de sintetizador e de violinos chorosos. O produtor de James Morrison e James Blunt — esse mesmo, que cantou, e passo a citar, “tu és linda, é verdade” — consegue transformar qualquer lamúria em festa, qualquer guitarra em Rock FM, qualquer cantora branquela em diva soul.

As histórias de beleza e sofrimento de Anohni não devem ser encaradas como uma realidade distante — no ano passado, 519 portugueses mudaram de género e de nome no registo civil, e quanto às alterações climáticas, basta abrir a janela e estamos conversados.

O convite a Hogarth surgiu com uma provocação: Anohni disse à editora que queria fazer um disco de blue-eyed soul, isto é, soul feita por brancos. Na década de oitenta, o conceito de blue-eyed soul remetia essencialmente para cantores britânicos, desde George Michael a Alison Moyet, com cantigas adocicadas que Anohni conhecia de trás para a frente. Hoje, é um conceito ultrapassado, um exemplo recorrente de apropriação cultural, e ao mesmo tempo, foi um formato que ostentou uma libertação sexual e celebratória característica daquele tempo, em figuras como Boy George. O novo álbum de Anohni and the Johnsons está neste caminho: é um exemplo musical ultrapassado, de outra época, enquanto alerta para temas urgentes do nosso tempo.

Aparentemente, “Scapegoat” é uma calorosa balada, mas a criação é aterradora: o narrador é um animal que deve ser abatido para a expiação da sociedade:

“You’re so killable
Just so killable
It’s not personal
It’s just the way you were born”

Em Portugal também conhecemos esta história, recordem a Gisberta, assassinatos que não foram pessoais, estavam mesmo a jeito. A explicação possível, sugere Anohni, é a disseminação de discurso de ódio. Em “Go Ahead”, baixa momentaneamente a guarda, o embrulho harmónico revela-se dissonante, e convida-nos a odiar à vontade: “Go ahead and burn it down/ Go ahead, kill your friends”. Os culpados são, evidentemente, todos nós: “It’s my fault, it’s my fault, it’s my fault/ The way I broke the Earth”.

Este é o principal engenho de "My Back Was a Bridge for You to Cross", são canções imediatas, que qualquer pessoa distraída cantarola, sobre os temas mais urgentes, e antagónicos, de 2023

Há uma outra morte que paira sobre todos os fantasmas: a morte da terra. Desde The Crying Light, em 2009, e especialmente com Swanlights, em 2010, a cantora colocou a fragilidade da natureza e as alterações climáticas no centro das suas canções, antes de ser moda. Estas reflexões culminaram em “4 Degrees”, uma canção apocalíptica zangada com a indiferença da população, convertida em hino eletrónico pelos produtores Oneohtrix Point Never e Hudson Mohawke. “4 Degrees” era uma das peças centrais de Hopelessness, o álbum anterior de Anohni, lançado em 2016, um caso isolado de um disco eletrónico exploratório, a flirtar com a pop EDM, que debita sobre ataques de drones, Barack Obama e a crise climática.

Hopelessness é um álbum excecional e certamente um dos melhores daquele ano. No entanto, esta cantora que cresceu a ouvir Marc Almond não está particularmente confortável na aspereza de Hopelessness. Anohni é uma classicista pop, a sua voz merece o silêncio de melodias discretas para carregar uma canção às costas. Se Hopelessness empurrava e provocava os ouvintes, My Back Was a Bridge for You to Cross abraça-os de volta.

As histórias de beleza e sofrimento de Anohni não devem ser encaradas como uma realidade distante — no ano passado, 519 portugueses mudaram de género e de nome no registo civil, e quanto às alterações climáticas, basta abrir a janela e estamos conversados. Este é o principal engenho de My Back Was a Bridge for You to Cross, são canções imediatas, que qualquer pessoa distraída cantarola, sobre os temas mais urgentes, e antagónicos, de 2023. “You Be Free” é o desfecho possível, uma destruição moral de embalo delicado: a vida foi sofrida, tantos morreram, e eu não morri por pouco. E o sofrimento serviu para construir a ponte que hoje atravessamos:

“My back was broke
My back was a bridge for you to cross”.

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