A última vez que se discutiu a sério o tema em Portugal foi há quase 20 anos quando o empresário do petróleo Patrick Monteiro de Barros apresentou um projeto para construir uma central nuclear. Agora, o nuclear é recuperado nos programas eleitorais de três partidos. O Observador analisou as propostas das principais forças políticas que vão a votos a 10 de março e até ao domingo das legislativas vai dissecar uma proposta por dia.
Em 2005, o investimento privado de 3,5 mil milhões de euros numa unidade com 1600 megawatts tinha como fundamentos a nova geração de reatores EPR e o petróleo caro (mais de 60 dólares por barril). Na altura, a Finlândia decidiu lançar a sua primeira central nuclear em mais de 20 anos com essa tecnologia, uma unidade que só começou a produzir em 2023. O projeto português, que chegou a ter uma potencial localização em Trás-os-Montes, acabou por cair por falta de apoio político.
Mais de dez anos após o acidente de Fukushima, com a transição energética a acelerar e o empurrão dado pela crise do gás russo, a energia nuclear foi reabilitada como uma tecnologia livre de emissões de CO2 por parte da União Europeia. A dar gás a este novo ciclo está uma sigla — SMR — que significa em português pequenos reatores modulares — e que promete uma solução mais barata, mais segura e rápida de executar do que as grandes centrais.
O que defendem Chega, Iniciativa Liberal e Livre
Chega, Iniciativa Liberal e Livre são os três partidos que passam por cima do “preconceito” que rodeia o nuclear e abordam o tema no seu programa, ainda que com contornos distintos. O partido de André Ventura defende, preto no branco, a incorporação de energia nuclear no mix de produção nacional, em nome dos objetivos “cruciais” da “independência e estabilidade energética”. E tirando partido da “uma nova geração de tecnologias” que, diz, “oferece um vasto leque de benefícios que transcendem a mera produção de energia. Falamos de novos pequenos reatores modulares que primam pela eficiência e segurança reforçada, mais baratos e mais rápidos”.
A Iniciativa Liberal “vê com bons olhos o renascimento das intenções de investimento em energia nuclear anunciados (…) incluindo a emergência das novas modalidades de produção de energia nuclear em unidades mais pequenas (SMR), ainda em desenvolvimento”. E diz que “será sempre a favor uma discussão pública e informada sobre a viabilidade económica da energia nuclear em Portugal, rejeitando preconceitos infundados sobre os seus riscos e impactos ambientais. E defenderá por isso que se façam e discutam os estudos necessários em termos de viabilidade económica da energia nuclear.”
Mais atento aos riscos — do outro lado da fronteira — e mais cauteloso no entusiasmo, o Livre também propõe “seguir atentamente o desenvolvimento de novas tecnologias de produção de energia nuclear (como os small modular reactors, ou a fusão nuclear), que poderão contribuir para a descarbonização, assim como dar resposta ao crescente consumo energético”.
Entre o nuclear e a emergência climática, Rocha e Sousa Real só concordam em discordar
A energia nuclear só entrou nos debates no frente a frente entre Rui Rocha e Inês Sousa Real realizado há duas semanas na SIC Notícias. Negando o rótulo de negacionista quanto às alterações climáticas, várias vezes colado ao partido, Rui Rocha foi mais contido na defesa da opção nuclear do que o teor do programa partidário.
Reconhecendo as “ótimas condições” de Portugal nas energias renováveis, a IL lembra que são necessárias tecnologias de base térmica para assegurar intermitência do abastecimento. E existindo duas opções possíveis — o gás e o nuclear — “dizemos que precisamos de uma”. Invocando a dependência alemã do gás russo, e insistindo no princípio de neutralidade tecnológica, o líder da IL sublinha que “não excluímos essa possibilidade”.
“Se essa estratégia pode fazer sentido em alguns países e com segurança, isso não quer dizer que em Portugal se possa olhar com ligeireza tendo em conta o custo económico, por um lado.” Inês Sousa Real diz que o programa da IL só olha para o ângulo económico, “deixando para trás avaliação ambiental”. Considerando que há demasiados riscos para Portugal por causa da situação estrutural de seca, afirmou ainda que seria “leviano estar a apostar numa produção que é muito mais cara”.
“Derrapagens brutais” marcam projetos de novas centrais
A energia nuclear é apontada como uma energia mais barata porque não tem de incorporar os custos de CO2 de outras fontes térmicas, surgindo na escala dos preços logo após a produção renovável que seja vendida a preço do mercado. Mas a equação é mais complexa e França tem tido preços da eletricidade mais altos do que a Península Ibérica, como sublinha numa publicação no Linkedin, António Vidigal, consultor e ex-presidente da EDP Inovação, num comentário que olha também para os custos da nova central britânica.
Nuno Ribeiro da Silva, que foi presidente da Endesa Portugal, diz que é preciso distinguir entre as centrais que têm mais de 20 anos, e cujo risco de investimento está assumido, e uma nova tecnologia que ainda é “um suponhamos”, na medida em que não existe ainda um reator SMR a produzir integrado num sistema e numa rede elétrica nacionais. E lembra que o nuclear tem um histórico “derrapagens brutais” em termos financeiros e prazos.
Quando está em causa a construção de novas centrais, o preço terá de cobrir os custos de amortização do investimento. Olhando para dois projetos recentes na Europa, Jorge Sousa, professor coordenador do Instituto Superior de Engenharia de Lisboa (ISEL), estima que o custo de capital da central Olkiluoto 3 na Finlândia corresponde a 50,82 euros por MW hora para um investimento de 11 mil milhões de euros num reator de 1600 MW (com um tempo de vida de 40 anos, fator de capacidade de 90% e taxa de desconto de 5%).
A central de Hinkley Point, a primeira a ser construída em 20 anos no Reino Unido, tem dois reatores nucleares com uma potência total de 3260 MW para um investimento de 26 mil milhões de euros. A unidade deverá entrar em operação em 2025 com custos de capital de 58,95 euros por MW, também para um horizonte de 40 anos.
Mas a equação não é apenas económica. O professor do ISEL e presidente da Associação Portuguesa de Economia da Energia avisa que a construção de centrais nucleares na Europa tem um “histórico recente de grande derrapagem orçamental e temporal”. E dá o exemplo da Finlândia, que foi o primeiro país da UE a regressar ao investimento nuclear após o acidente de Chernobyl. Começou a construir a sua quinta central em 2005, mas Olkiluoto, considerada a maior central da Europa, só iniciou a produção em abril de 2023. O custo final foi de 11 mil milhões de euros, quase quatro vezes o previsto inicialmente, e o projeto sofreu um atraso de 13 anos.
Dentro da União Europeia, Finlândia, Suécia, Polónia e França foram países que reforçaram o compromisso com a produção nuclear nos últimos anos, enquanto a Alemanha fez o contrário desligando os últimos reatores no ano passado. Espanha mantém as suas centrais a operar, tendo adiado o fecho.
Porque não serve o nuclear (tradicional) para Portugal
E Portugal? Jorge Sousa, que é especialista em sistemas de energia, alerta que uma “eventual aposta na energia nuclear não teria resultados operacionais no horizonte de 2030 (talvez, mesmo nem 2040), traria elevados riscos políticos e económicos e não iria concorrer para nenhum objetivo estratégico não energético”. A vantagem face ao gás é a ausência de emissões de CO2 na fase de operação, permitindo substituir esta energia na fase de transição para um sistema totalmente neutro em carbono. Mas aponta várias desvantagens:
- “Uma difícil viabilização económica, sem um sólido apoio político que garanta uma gestão de risco inerente ao fluxo de receita a qual seria, em última instância, suportada pelos contribuintes e/ou consumidores de energia.
- A ausência de escala para instalar um parque nuclear com tecnologia nuclear tradicional
- A energia nuclear em Portugal viria a reforçar a dependência energética e tecnológica, e não a reduzi-la, como é necessário (e ao contrário do que defende o Chega). O nuclear é uma tecnologia que está concentrada em muito poucos países e empresas, o que reduz a concorrência e a existência de alternativas.
A Polónia é o único país sem tradição nuclear que decidiu adotar esta tecnologia, devendo receber o seu primeiro reator em 2033. Formalizou um contrato com a empresa americana Westinghouse para a construção de uma central com 3.750 MW. As primeiras fases de financiamento estão asseguradas com fundos públicos e mais tarde está previsto um modelo financeiro com capital privado americano. A Polónia já fez um acordo com a Coreia do Sul para instalar um segundo reator da mesma dimensão e tem ainda planos para instalar mais seis pequenos reatores da tecnologia SMR em vários locais do país.
Jorge Sousa diz que a motivação polaca é a redução das emissões de CO2 que resultam da queima de carvão, um problema muito grave na Polónia onde 70% da geração elétrica vem desta tecnologia. Portugal, assinala, já não tem carvão (foi o primeiro países da UE a desligar estas centrais em 2021) e falta-lhe “escala para acomodar um parque nuclear como o que se prevê para a Polónia”.
Os pequenos reatores podem ser solução?
As derrapagens de custos e calendários das centrais tradicionais contribuíram para o surgimento de novos designs de reatores que permitam “mitigar estas desvantagens”, explica o professor do ISEL.
Ainda assim, Jorge Sousa, defende que um SMR não pode ser usado como central de backup do sistema elétrico devido aos seus elevados custos de capital. Ou seja, para amortizar o investimento seria necessário ter um nível de produção mais elevado do que se associa a uma central de backup.
O ex-presidente da Endesa Portugal, Nuno Ribeiro da Silva, também considera que esta nova tecnologia não pode ser vista como uma “panaceia”. A tecnologia não está consolidada e não há “uma elétrica em países com uma economia de mercado que assuma o risco de desenvolver um projeto deste género.” Isto porque há demasiados riscos económicos, financeiros e de prazo de execução. O gestor diz ainda que os SMR em operação na Rússia são muito específicos e estão ligados à propulsão naval, não cumprindo os requisitos de segurança da União Europeia.
Sublinhando que não conhece contratos fechados entre empresas privadas para esta opção — ao contrário de outras tecnologias, como as baterias, que podem potenciar a produção renovável, Nuno Ribeiro da Silva admite que os mini-reatores podem vir a ser uma peça do puzzle, mas nunca num horizonte anterior a 2030/2035.
Notícias recentes dão conta de um aumento de custos em toda a cadeia de produção destes reatores de nova geração que pode comprometer a viabilidade económica, devido à inflação e aos juros altos.
Os SMR (Small Modular Reactors) têm um dimensão mais reduzida e são construídos de forma modular, o que possibilita serem produzidos no local de origem para serem transportados e montados no local de operação. “Reduzem assim a complexidade de construção no local, aumentam a eficiência e segurança com o recurso a sistemas passivos que operam sem intervenção humana”, diz Jorge Sousa.
Na definição da Agência Internacional de Energia Nuclear, o SMR tem uma potência até 300 MW (megawatt). Estes reatores começaram a ser desenvolvidos nos anos de 1950 para a propulsão navios de submarinos nucleares. Apesar de existirem mais de 50 novos projetos em licenciamento e construção, incluindo em países europeus como a França, há poucos SMR a operar, sendo a Rússia pioneira nesta tecnologia, em particular nos modelos de água leve (LWR — light water reator).
A Comissão Europeia acrescenta que, sendo de menor dimensão, exigem menos espaço (e menos água para arrefecimento) mas permitem uma maior flexibilidade sobretudo na hora de escolher onde podem ser instalados. A UE tem, aliás, apoios à pesquisa e desenvolvimento desta tecnologia, ao abrigo do programa Euratom, e aguarda que o desenvolvimento dos primeiros projetos esteja concluído no início de 2030.
A Roménia pode ser o primeiro país a ter um destes reatores operacionais, na sequência de um acordo com os Estados Unidos. Neste caso, o objetivo é usar o SRM para reconversão de uma central a carvão desativada.
Dos partidos que defendem que se olhe para esta tecnologia em Portugal, o Chega é o que revela maior entusiasmo. “O avanço desta tecnologia permite, atualmente, uma forte capacidade para reprocessar e reciclar parte do combustível utilizado, optimizando o seu rendimento e diminuindo a quantidade de resíduos finais.”
Para a Iniciativa Liberal, o nuclear “tem assegurado a produção de eletricidade de emissões nulas nas últimas décadas. Se a Europa tivesse continuado a apostar mais ainda nessa trajetória, teríamos hoje um percurso mais fácil pela frente”. A IL quer estudar a viabilidade económica dos novos reatores face à tecnologia do gás natural. No debate com Inês Sousa Real, Rui Rocha foi confrontado com o facto de o programa não equacionar as implicações ambientais de uma opção nuclear num país que vive, de forma recorrente, períodos de seca.
As centrais nucleares precisam de muita água para arrefecer os reatores. E se devolvem uma grande parte da água que usam, fazem-no a uma temperatura elevada. Quando precisam de recorrer aos rios, a sua produção pode ficar fortemente condicionada ou mesmo parada, devido a situações de seca. Foi o que aconteceu em França durante o verão de 2022 no qual várias centrais tiveram de reduzir produção por causa da escassez de água nos rios que não tinham caudal para absorver a quantidade de água devolvida a alta temperatura.
Apagão nuclear em França está a agravar a crise energética europeia
O especialista do ISEL indica que em 2021, as centrais nucleares foram responsáveis por cerca de 12% do consumo de água doce em França, apesar de devolverem 97% da água que retiraram dos rios para arrefecer os reatores. É certo que as centrais nucleares pode usar água do mar para refrigeração, se estiverem no litoral, e que a necessidade deste recurso por parte dos novos mini-reatores é bastante menor.