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[Artigo originalmente publicado a 2 de julho de 2019 e atualizado a 16 de julho, a propósito da eleição de Ursula von der Leyen para a presidência da Comissão Europeia]
Surgiu como proposta de última hora para desbloquear o impasse sobre quem assumiria a presidência da Comissão Europeia e fez rapidamente o caminho necessário para convencer a maioria a escolhê-la. Quando o seu nome saiu do Conselho Europeu, tinha os votos do PPE assegurados. Pelo caminho, trocou cartas com os eurodeputados socialistas e liberais, numa tentativa de os juntar também a bordo — uma delas, já na reta final da campanha, com os compromissos que assumiria, caso fosse eleita.
E foi desses compromissos que falou durante as intervenções que fez no Parlamento Europeu, em Estrasburgo, na manhã do dia da votação. De tal forma que houve quem a acusasse de se ter apropriado de parte da agenda do candidato que os socialistas europeus preferiam, o holandês Frans Timmermans. Era estratégia, claro.
A base de apoio de von der Leyen vinha sobretudo do centro-direita e dos liberais, o que fazia com que pudesse ser considerada uma presidente mais à direita. Precisava dos votos do centro-esquerda e precisava de defender um programa que sinalizasse que havia margem para trabalharem em conjunto caso a eleição se concretizasse.
Concretizou. Mas nas horas que antecederam a votação, o pessimismo começou a reinar mesmo no seio da sua família política, o PPE. Na reunião do grupo, que decorreu já durante a tarde, houve discussão acesa sobre o teor do discurso da alemã, que seria demasiado “leftie”, demasiado à esquerda. Sobretudo porque se comprometeu em áreas polémicas como o Exército Europeu, o fim da unanimidade nos processos de decisão, ou as vantagens das listas transnacionais.
A dada altura, um eurodeputado do PPE saía da reunião e comentava nos corredores: “Ainda vai perder isto”. De facto, a matemática era incerta e imprevisível. Ursula precisava de 374 votos, as contas faziam-se com vários cenários, mas nenhum era claro o suficiente para garantir o resultado, até porque o voto foi secreto.
No final ganhou mesmo, com 383 votos a favor. A Alemanha volta a conseguir a presidência da Comissão Europeia mais de 50 anos depois do último chefe alemão do executivo comunitário, Walter Hallstein.
Na conferência de imprensa depois do anúncio do resultado, a nova Presidente garantia aos jornalistas: “Estas foram as duas semanas mais intensas da minha vida política”.
Ursula von der Leyen chegou tarde à política, mas rapidamente compensou o tempo perdido. Foi só em 2003, aos 45 anos, que se envolveu na política local, em Hanover. Ninguém diria: falamos da mulher que foi a única ministra a ocupar continuamente um lugar no Conselho de Ministros da chanceler Angela Merkel desde 2005. Durante anos, a imprensa alemã e internacional especulou se seria ela a escolhida para suceder a Merkel; o destino — ou, melhor dizendo, a CDU — acabaria por empurrá-la para outros voos, chegando agora à presidência da Comissão Europeia.
[15 factos sobre Ursula von der Leyen num minuto e meio:]
Nascida e criada em Bruxelas, filha de um pai que trabalhou para a primeira Comissão
Von der Leyen nasceu precisamente em Bruxelas, cidade para onde se mudará agora, precisamente porque a política europeia não era estranha à sua família. Ou, por outras palavras, Ursula nasceu a par e passo da Comissão Europeia. O seu pai, Ernst Albrecht, foi chefe de gabinete de Hans von der Groeben, um dos dois membros alemães nomeados para a recém-criada Comissão em janeiro de 1958. Ursula nasceria precisamente nove meses depois, na cidade que é capital da Bélgica. O pai Ernst teria um papel relevante na criação da União Europeia como a conhecemos, já que Von der Groeben viria mesmo a presidir ao comité que preparou o Tratado de Roma, como recorda o Politico.
Ursula viveria em Bruxelas até aos 13 anos, altura em que o pai decide regressar à Alemanha para mergulhar na política nacional, acabando por se tornar primeiro-ministro da região da Baixa Saxónia. O período na capital europeia ajudou-a a aprender línguas — não é por acaso que hoje é das poucas políticas alemãs que fala fluentemente inglês e francês. Em 1978 foi para Londres estudar Economia na prestigiada London School of Economics. Para além da bagagem educativa, ganhou um pseudónimo: Rose Ladson em vez de Ursula, já que as autoridades temiam que pudesse ser vítima do terrorismo de extrema-esquerda que grassava na Alemanha ocidental, fruto do cargo do seu pai.
Dois anos depois, mudaria de ideias: a Economia ficava para trás, trocada pela Medicina. Ursula acabaria por se especializar em ginecologia e começaria a trabalhar numa clínica, mas interromperia a carreira aos 28 anos. O motivo? A bolsa em Stanford atribuída ao marido, o professor de Medicina Heiko von der Leyen e descendente de uma família aristocrática que tinha feito fortuna no negócio da seda. Em 1986, a família partiu para a Califórnia, com os dois filhos gémeos que já tinham nascido. O casal acabaria por ter outros cinco. A experiência nos Estados Unidos e o contacto com profissionais que também eram mães revelar-se-ia fulcral para as ideias de conciliação do trabalho com a maternidade que Ursula traria para a política alemã. Mas, naquela altura, ainda faltavam alguns anos para isso.
O desafio a Merkel nas quotas de género provou que era mais do que simples ministra
Foi só no regresso à Alemanha que Ursula começou a considerar uma aproximação à política. Primeiro, juntou-se à CDU (centro-direita). Depois envolveu-se na política local, em Hanover. Em 2003 seguiu oficialmente os passos do pai ao tornar-se ministra do governo estadual da Baixa Saxónia. Daí para o palco nacional, foi um salto. Em 2005, era nomeada por Angela Merkel ministra da Família.
A nomeação, à altura, foi encarada por muitos como uma escolha que apenas serviria para compor o figurino, sem qualquer peso político. Uma mãe de sete filhos para a pasta da Família, uma escolha feminina para compor o ramalhete da igualdade no governo, nada mais. Mas Von der Leyen, à semelhança do que tinha acontecido com Merkel, provou que tinha capacidades políticas para ir além da pasta da Família.
Começou com a decisão de apoiar algumas das ideias da oposição para alargar as licenças de maternidade e paternidade, enfrentando as primeiras resistências dentro da CDU. “Nos Estados Unidos as pessoas diziam-me ‘Oh, sete filhos, foste abençoada’. Na Alemanha a reação é: ‘Sete filhos e um trabalho. Como é possível gerir isso?’”, comentou a ministra à agência Reuters em 2005. O seu objetivo era provar que era possível conciliar a maternidade com uma carreira e que as mães alemãs tinham apoios para conseguir fazê-lo.
O primeiro embate fez, contudo, com que ganhasse pontos com Merkel: em 2009, com o novo governo, foi promovida para a pasta do Trabalho. As suas posições mais centristas foram, no entanto, alvo de críticas internas dentro da CDU. Von der Leyen declarou que não sabia de “nenhum estudo que diga que as crianças que são educadas por um casal de pessoas do mesmo sexo tenham percursos diferentes daquelas que são criadas por heterossexuais”. Defendeu a criação de um salário mínimo nacional — medida que viria a ser introduzida pelo governo de Merkel em 2014, depois de muita discussão — e falou publicamente da necessidade de serem criados “uns Estados Unidos da Europa”. A frase, dita numa entrevista à Der Spiegel em 2011, terá enfurecido o ministro das Finanças, Wolfgang Schäuble, que comentou que tentar manter o controlo de uma crise financeira com colegas como Ursula era “como atravessar uma sala cheia de nitroglicerina com uma vela acesa na mão”.
A atitude mais ambiciosa de Ursula foi a defesa clara da introdução de quotas de género nas empresas, propondo um valor de 30%. “Exijo legislação para introduzir números obrigatórios de mulheres em posições executivas porque não tenho grande fé na vontade das empresas de fazerem isso por elas próprias”, declarou a ministra do Trabalho. A medida, contudo, representou um desafio à chanceler: Merkel não era a favor da proposta e deixou-o claro. Ursula acabaria por acatar a linha do partido. Meio ano depois, porém, a chanceler cederia, numa negociação com os sociais-democratas para formar um novo governo.
Mas não falta quem diga que esse desafio a Merkel ajudou a minar as hipóteses de Von der Leyen vir a suceder-lhe, como tantos profetizavam. “Merkel ainda vê Von der Leyen como uma aliada na luta contra a viragem à direita dos cristãos-democratas e quer mantê-la como ministra. Mas já não acredita que Von der Leyen tenha capacidade de reunir uma maioria que a apoie [à liderança]”, resumia a Der Spiegel no início de 2018, um ano antes da escolha de Annegret Kramp-Karrenbauer para suceder a Merkel.
A pasta da Defesa e os escândalos — plágio e contratos irregulares
No novo governo liderado por Merkel, em 2013, foi atribuída a Von der Leyen a pasta da Defesa. A medida era histórica: nunca o ministério tinha sido liderado por uma mulher na História da Alemanha. Mas Ursula não era conhecida pela sua experiência em matérias militares ou internacionais. “A par do seu foco em política social, ela sempre se interessou por temas internacionais e acho que essa é uma boa combinação para um ministro da Defesa alemão”, assegurou Merkel. “Acredito que irá cumprir esta tarefa muito, muito bem.”
Defensora do multilateralismo, Von der Leyen reforçou sempre, ao longo do tempo em que ocupou o cargo, a necessidade de a Alemanha colaborar com aliados — quer seja a NATO, quer seja a França. Comprometeu-se com um aumento da contribuição alemã para a Aliança Atlântica, mas não há ainda previsões de o país atingir os 2% do PIB com que se tinha comprometido, a par dos restantes países europeus. Donald Trump tem aproveitado para criticar a política de Defesa dos alemães, talvez espicaçado pelas próprias farpas de Von der Leyen, que não se acanha de criticar o Presidente norte-americano. “Penso que Donald Trump sabe que esta eleição não foi a favor dele, mas sim contra Washington, contra o sistema”, declarou no rescaldo das eleições norte-americanas. “Sabemos como este Presidente opera. Os seus tweets são desenhados para causar agitação e incerteza”, diria mais tarde, na sequência de uma cimeira da NATO já com Trump no poder.
O período na Defesa, contudo, ficaria marcado por vários escândalos. As acusações de plágio na sua tese de doutoramento levaram a uma investigação independente da universidade e a uma conclusão não totalmente ilibatória: “Há falhas óbvias, sobretudo na introdução”, reconheceria o painel, que apontou ideias copiadas nessa parte da tese. Mas o “padrão de plágio” não indicava “intenção fraudulenta” e os resultados da dissertação eram “cientificamente novos, válidos e de relevância prática”.
Os problemas não se ficariam por aí. O caso de Franco A., militar com ligações à extrema-direita que estaria a preparar um atentado e foi apanhado, levou a ministra a dizer que o Exército alemão “tem um problema de atitude e fraquezas na liderança a vários níveis”, o que provocou muitas críticas. Mais recentemente, em dezembro de 2018, surgia novo escândalo na Defesa: um inquérito parlamentar ao papel da ministra em irregularidades na atribuição de contratos públicos, por suspeitas de nepotismo. Enfraquecida, Ursula von der Leyen viu a possibilidade de suceder a Merkel esfumar-se. O seu futuro continuava, até há bem pouco tempo, incerto. Até que começaram a surgir os rumores de que poderia vir a ocupar um cargo europeu.
Ursula na Comissão: o que esperar?
O rumor confirmou-se esta terça-feira e revelou ter ficado aquém da realidade. Ursula von der Leyen será presidente da Comissão Europeia, numa solução de compromisso para agradar ao grupo de Visegrado, que vetou o socialista Frans Timmermans. O nome terá sido proposto pelo Presidente francês, Emmanuel Macron, a quem agradam algumas ideias de Von der Leyen, como a parceria militar com os franceses e a simpatia à ideia de um Exército europeu. Merkel absteve-se na votação, para não a influenciar.
Foi de dentro de casa que surgiram as principais críticas à escolha do nome. “Leyen é a ministra mais fraca. Pelos vistos isso é suficiente para se ser presidente da Comissão”, lamentou o ex-líder do SDP e antigo presidente do Parlamento Europeu, Martin Schulz, no Twitter. Também o eurodeputado dos Verdes alemães, Sven Giegold, não hesitou em deixar críticas: “Von Leyen tem uma comissão de inquérito em casa por não atribuir corretamente contratos de consultoria. A Europa merece melhor!” No Parlamento Europeu, há subtis ameaças de que o nome poderá ser vetado — não por causa de Ursula, mas pelo método de escolha. Mas outros, como o ex-presidente da Comissão Durão Barroso, elogiaram uma solução “equilibrada”, com políticos “experientes”.
The package of proposed leaders for the E.U. top jobs , with von der Leyen , Michel, Lagarde and Borrell is a really balanced one with very experienced and truly commited Europeans . I am confident they will provide real leadership to a stronger E.U. My very best wishes!
— José Manuel Barroso (@JMDBarroso) July 2, 2019
O que poderemos esperar de Von der Leyen à frente dos destinos da Europa? Não são muito conhecidas as posições da alemã no campo europeu, a não ser que é uma federalista, como admitiu em 2011. Como ministra da Defesa, fez várias declarações críticas à Rússia de Vladimir Putin (“tenta compensar a sua crescente fraqueza económica com uma postural marcial”), acusou Bashar al-Assad de ter “sangue nas mãos” pelo que fez na Síria e defendeu uma política de asilo comum entre os vários países europeus, equilibrada com uma “proteção das fronteiras externas da Europa”. Mais concreta foi em relação ao Brexit: “Enquanto for viva, não haverá uma re-entrada do Reino Unido na UE.”
Ursula von der Leyen terá agora tempo para explicar o que queria dizer com todas essas afirmações e que outras ideias traz consigo para Bruxelas, cidade onde nasceu e cresceu. De uma coisa não parece haver dúvidas: está pronta para se sentar à mesa e fazer voz grossa quando for preciso — mas não tenciona gritar. Isso mesmo explicou numa tensa entrevista em 2011, onde criticou ideias feitas contra as mulheres (como a de que não podem ter ambição) e o estilo “cheio de testosterona” de fazer política. “Muitas mulheres políticas têm problemas com a voz, porque quando falamos alto muitas vezes sai agudo. Mas o problema tem-se resolvido à medida que fico mais velha. Costumava ser uma apaixonada cantora soprano. Agora a minha voz está cada vez mais rouca e profunda; já não sou mais uma soprano.”