“Estamos apenas a começar. Vamos atacá-los até que eles aprendam. O Hamas [do Estado Palestiniano] aprendeu, o Hezbollah [do Líbano] aprendeu e a Síria aprendeu. Os Houthis vão aprender também.” Em tom de ameaça, horas após o principal aeroporto, centrais elétricas e portos do Iémen terem sido atacados, o primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, deixava claro, esta quinta-feira, que Israel não se ficaria por ali. Tendo chegado a um cessar-fogo com o Hezbollah no Líbano e estando o Hamas numa das posições mais frágeis desde o 7 de outubro, Telavive parece ter um novo alvo na mira.
Esse alvo são os Houthis, um grupo xiita (mais especificamente da corrente zaidita) que controla parcelas do Iémen, como a capital Sanaa. E que faz parte, tal como o Hezbollah e o Hamas, do autoproclamado “eixo de resistência” montado pelo Irão no Médio Oriente. Desde o início do conflito na Faixa de Gaza, aquele movimento islâmico tem levado a cabo ataques aéreos contra território israelita. No entender do governo de Benjamin Netanyahu, chegou a altura de retaliar — e com força.
No entanto, militar e estrategicamente, a situação não será nada fácil para o Estado judaico. O Iémen está localizado no extremo sul do Mar Vermelho, enquanto Israel está no extremo norte. Estão separados por cerca de dois mil quilómetros, o que faz com que os ataques tenham de ser de longo alcance. Além disso, os Houthis controlam um importante ponto estratégico: o estreito Bab al-Mandab (“Portão das Lágrimas”, em português), que é um ponto nevrálgico do tráfego marítimo comercial. Ou seja: não só é mais difícil atacar território iemenita, como também pode trazer consequências para todo o mundo — incluindo para os aliados israelitas.
Isso não parece desmotivar o executivo israelita, pelo menos a curto prazo. O ministro da Defesa, Israel Katz, enfatizou que os Houthis deixarão de ser uma ameaça para os israelitas e destacou que, tal como aconteceu com o Hezbollah ou o Hamas, Telavive promete “decapitar” a liderança da organização xiita: “Vamos caçar todos os seus líderes — nenhum vai conseguir fugir do longo braço de Israel”. A estratégia está definida no governo, mas nem todos em Israel concordam.
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Os ataques, a divergência com a Mossad e a preparação dos Houthis
Depois de um ataque dos Houthis a Israel na véspera de Natal, o ministro da Defesa anunciava o que podia ser interpretado como uma nova fase do conflito. Israel Katz indicava que Telavive ia atacar “as infraestruturas” e também a liderança do grupo xiita com o objetivo de “eliminar a ameaça” que representa para o Estado judaico. “Olhem para a forma como tomámos conta do [líder do Hamas, Yayha] Sinwar em Gaza, do [líder do Hamas no exílio, Ismail] Haniyeh em Teerão, do [Hassan] Nasrallah em Beirute. Vamos lidar com os líderes dos Houthis em Sanaa ou em qualquer parte no Iémen.”
No mesmo sentido, o primeiro-ministro de Israel avisou igualmente que os “Houthis eram uma ameaça”. “Tal como agimos contra os braços terroristas do eixo malévolo do Irão, também vamos atacar os Houthis. Com força, determinação e sofisticação”, prometeu. Benjamin Netanyahu assegurava igualmente que Telavive ia “continuar a esmagar as forças malvadas, mesmo que isso leve tempo.”
Os Houthis têm atacado de forma constante Israel desde 8 de outubro, sendo que se têm seguido várias retaliações de Telavive. Mas agora Benjamin Netanyahu comprometeu-se publicamente a intensificar os ataques. Mas porquê? Um dirigente israelita explicou ao Times of Israel que se deve a uma conjuntura favorável. “Neste momento, em que há um cessar-fogo no Líbano e combates menos intensos em Gaza, temos a oportunidade de desviar a nossa atenção e recursos para a frente iemenita, para a frente dos Houthis.”
O mesmo dirigente assinalou que Israel se tem preparado”nos últimos dias” para direcionar os esforços para o Iémen. “Estamos a preparar uma resposta ao lado dos nossos aliados liderados pelos Estados Unidos da América. Quando o tempo chegar, garantiremos que as forças dos Houthis vão pagar.”
Porém, nem todos estão de acordo com os ataques aos Houthis. Para os serviços secretos israelitas, a Mossad, o foco devia ser o Irão, que atravessa um momento de debilidade, e não o Iémen. De acordo com a imprensa israelita, o líder das secretas, David Barnea, considera que uma ofensiva contra o território iemenita não trará benefícios. “Temos de agir diretamente contra o Irão. Se nós apenas atacarmos os Houthis, certamente que não seremos capazes de os travar”, terá dito o responsável máximo da Mossad ao primeiro-ministro, segundo o Canal 13.
O primeiro-ministro israelita discordou da abordagem — e terá levado, pelo menos por agora, a sua avante. Ao líder da Mossad, Benjamin Netanyahu garante que também haverá uma retaliação contra o Irão, mas “num tempo apropriado” que não pormenorizou qual seria. Especula-se que o chefe do executivo esteja à espera que o Presidente eleito norte-americano, Donald Trump, tome posse para atacar o território iraniano.
Tendo em conta o que aconteceu com outros membros do “eixo de resistência”, os Houthis estão a prevenir-se para os intensos ataques que Israel promete realizar. Assim, o movimento xiita aumentou o seu nível de alerta para o mais elevado. Isso inclui direcionar tropas para zonas de confronto com outros grupos que controlam outras partes do Iémen. Dividido em três parcelas na sequência de uma sangrenta guerra civil que ainda continua ativa, grande parte do norte do território iemenita (incluindo a capital Sanaa) é controlada pelos Houthis, ao passo que o leste é gerido pelo Presidente Rashad al-Alimi — reconhecido pelas Nações Unidas e pela comunidade internacional, sendo um aliado da Arábia Saudita e do Ocidente. No sul, existem igualmente forças separatistas, apoiadas essencialmente pelos Emirados Árabes Unidos.
De acordo com o que apurou o jornal saudita Asharq al-Awsat, os líderes dos Houthis estão igualmente a evitar reunir-se em grandes conglomerados e a evitar utilizar formas tradicionais de comunicação, temendo ser espiados. Outra estratégia do movimento xiita consiste em transferir bens e sedes de instituições para fora de grandes centros urbanos.
Alvos demasiado longe e as implicações geoestratégicas: as dificuldades de atingir o Iémen
O Líbano faz fronteira com Israel. Gaza também. O Iémen não. Como explica o comentador militar Yossi Yehoshua, citado pelo Guardian, mesmo estando “a duas horas de carro” de Telavive, “demorou bastante a encontrar os líderes do Hamas”. “No Norte, foram continuamente recolhidas informações pelos serviços secretos destinadas a assassinar a liderança do Hezbollah”, prossegue o mesmo analista, que ilustra assim as dificuldades que Telavive enfrentou para eliminar a liderança daqueles dois grupos.
“Assassinar líderes terroristas treinados que sabem esconder-se num país longínquo e caótico não é propriamente um passeio no parque”, conclui Yossi Yehoshua. Dito doutra forma, o especialista acredita que as autoridades israelitas vão enfrentar vários problemas em descobrir onde estão os dirigentes de topo dos Houthis.
Para além das dificuldades no terreno, os Houthis tiram partido da vulnerabilidade em que se encontra a população do Iémen. Segundo a Organização das Nações Unidas, o país atravessa uma das “maiores crises humanitárias” no mundo. “Estar em conflito constante fortalece a sua coesão doméstica. As pessoas não pedem muito por causa da guerra”, indica ao Times of Israel Wolf-Christian Paes, membro do think tank International Institute for Strategic Studies.
Internamente, apesar dos constante estado de tensão contra outras fações, os Houthis parecem ter uma posição relativamente estável. No seio do mundo islâmico, aquele grupo xiita está a beneficiar de ser o único que ainda é capaz de retaliar contra Israel e atacar aquele país, ganhando pontos por isso. “Se amanhã o regime de Teerão mudar ou o governo de Teerão decidir parar com [a ofensiva a Israel], isso não significa que os Houthis parem”, afirma Wolf-Christian Paes, destacando a singularidade daquele movimento xiita.
Entre os dirigentes israelitas, a questão do moral dos Houthis não é despiciendo. Pelo contrário, como apurou o jornal Ynet; o facto de aquele grupo islâmico se sentir confiante incomoda Telavive. Contrariamente a outros membros do “eixo da resistência”, o movimento xiita pouco sofreu desde o 7 de outubro. E também o facto de ser desconhecido por muitos torna-se uma vantagem, já que não desenvolveram anticorpos em outras partes do mundo.
Em relação à distância entre os dois países, a Força Aérea israelita assegura que tem meios para combater os Houthis. No rescaldo dos ataques desta quinta-feira que fez pelo menos seis vítimas mortais e 40 feridos, o comandante Tomer Bar referiu que eram uma “demonstração tangível daquilo que Israel é capaz” de fazer. E deixou uma garantia: “Seremos capazes de fazer muito mais”.
Mas subsistem dúvidas sobre se as forças israelitas terão capacidades para empreender uma campanha aérea sustentada contra os Houthis ao longo do tempo. Não são apenas as dificuldades em definir a localização dos alvos a ser atacados; é também, como nota o Hareetz, o facto de Israel “não ter capacidades para levar a cabo” ataques constantes “a dois mil quilómetros de distância”
Em resposta a estes ataques, uma possível retaliação dos Houthis também assusta a comunidade internacional, devido aos impactos que pode acarretar para o comércio. No passado, o movimento xiita já atacou por várias vezes navios no Mar Vermelho, em particular aqueles que passam no estreito Bab al-Mandab, ponto fulcral para as embarcações que desejam dirigir-se do Mar Vermelho para o canal do Suez.
No final de dezembro do ano passado, Corey Ranslem, especialista em segurança marítima da empresa Dryad Global, dizia ao Observador que o “Mar Vermelho é uma rota do comércio marítimo global significativa”. “Por ano, transitam naquela região cerca de 35 mil navios, o equivalente a cerca de 10% de todo o PIB mundial”, prosseguiu, conjeturando na altura que, se o conflito se agudizasse, isso poderia ter um “impacto” no comércio, principalmente no que concerne ao “aumento dos custos de envio dos bens que normalmente transitam nesta região”.
Caso se sintam pressionados e desejem retaliar, os Houthis podem, por isso, perturbar o comércio mundial, ao atacar os navios que atravessem o estreito Bab al-Mandab. Uma retaliação do movimento xiita pode ser, descreve o Hareetz, “devastadora e internacional”.
Embora o governo israelita esteja focado em atacar os Houthis, existe a perceção, segundo o jornal Ynet, de que será um “osso duro de roer”. O movimento xiita atravessa um bom momento, está numa posição charneira no “eixo da resistência” e controla sem resistência um país que enfrenta uma das piores crises humanitária da História. Para já, Benjamin Netanyahu não dá sinais de querer desistir dos ataques contra o Iémen.