A Europa e os EUA estão em “desaceleração sincronizada” e, sobretudo no caso da Europa, essa desaceleração económica arrisca mesmo transformar-se numa recessão, num futuro relativamente próximo. O vaticínio é da gestora de ativos Allianz Global Investors, que está convencida, porém, que não vai haver descontrolo na inflação e que, por essa razão, os bancos centrais vão poder ser menos agressivos no aperto da política monetária – ou seja, boas notícias para as bolsas, que podem recuperar das fortes perdas dos últimos meses.
Os últimos indicadores económicos divulgados nos EUA e na Europa, sobretudo aqueles que tentam antecipar a evolução económica futura, confirmam esse risco de uma recessão económica. Um risco de recessão que a Allianz GI considera ser ainda mais “provável” na Europa do que nos EUA, por força de fatores como a maior dependência da energia russa, explicou Virginie Maisonneuve, chief investment officer global da gestora de ativos, na área das ações.
Esta “veterana” da gestão de ativos – com mais de 30 anos de carreira ao serviço de algumas das principais gestoras mundiais, como a Pimco e a Schroders – esteve em Lisboa nos últimos dias e, depois de uma apresentação a jornalistas, disse em entrevista ao Observador que as bolsas podem estar perto do “fundo” e isso cria boas oportunidades para investir em ações mundiais. Mas só para quem tiver uma perspetiva de longo prazo e conseguir suportar a volatilidade elevada que, tudo indica, vai continuar.
A bolsa norte-americana tem estado sob pressão desde que, nas últimas semanas de 2021, o banco central dos EUA deixou cair a análise de que a inflação era apenas “transitória”, como vinha alegando convictamente desde a primavera – quando alguns economistas já apontavam para os indícios claros de que a inflação era mais persistente do que se dizia não só nos EUA mas, também, na Europa.
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Nesse final de 2021, houve uma mudança de paradigma: o banco central mais poderoso do mundo, a Fed, passou a estar numa posição de aperto da política monetária (fim dos estímulos e subida das taxas de juro) – e, alguns meses mais tarde, o Banco Central Europeu está a seguir-lhe as pisadas.
Nos mercados financeiros, isso acabou com aquilo que era regra acontecer, por exemplo, há um ano: sempre que saíam notícias negativas sobre o andamento da economia, as bolsas subiam, isto é, “más notícias” para a economia eram “boas notícias” para os mercados (e vice versa) porque levavam os investidores a acreditar que, com a economia em pior estado, os bancos centrais iam ser mais brandos na retirada dos estímulos.
Isso deixou de acontecer, “por uma razão simples: agora temos o fator-inflação“, diz Virginie Maisonneuve. Os investidores receiam que até que a inflação dê sinais de estar controlada, os bancos centrais (sobretudo a Reserva Federal) vão continuar a apertar mais e mais a sua política – mesmo tendo passado diretamente da chamada “expansão quantitativa” para a “redução quantitativa” sem qualquer fase intermédia, de alguma neutralidade, em que nem se estava a inchar o balanço da Fed nem se estava (como já está) ativamente a tentar encolhê-lo.
Com esse medo de descontrolo na inflação, sempre que saem dados económicos que falham as expectativas isso só alimenta ainda mais o pessimismo geral entre os investidores. E foi assim que a bolsa norte-americana acumulou perdas de aproximadamente 20% desde os recordes fixados no último outono. Na Europa, as perdas têm sido mais contidas mas também estão na casa dos dois dígitos (Stoxx 600 europeu cai 10,8% até ao momento, este ano).
Porém, da mesma forma que a Allianz GI já avisava em novembro, também em entrevista ao Observador, que “o risco de inflação mais elevada está [estava] a ser subestimado” – uma análise que se revelou certeira –, agora a mesma gestora de ativos acredita que as expectativas dos investidores se moveram demasiado no sentido oposto. “Não acredito que vamos ter um descontrolo da inflação“, afirma a CIO da Allianz GI para os mercados acionistas globais, admitindo até que a velocidade de subida dos preços já poderá ter passado o pico – embora a evolução dos preços do petróleo e da energia gerem bastante incerteza nesta matéria.
A confirmar-se que o auge da inflação já passou, as bolsas podem receber uma injeção de otimismo. “Se nos próximos meses houver uma perceção de que a inflação já passou o pico e houver abrandamento nas economias então isso significa menos subidas das taxas de juro“, afirma Virginie Maisonneuve, acrescentando que “os preços das ações não estão extraordinariamente baratos mas estão mais baratos do que estiveram, por isso acredito que existe potencial de recuperação”.
A queda de quase 20% que o índice S&P 500 chegou a acumular, nos últimos dias, (em relação ao ponto mais alto) fez com que quase se tenha cumprido a definição técnica de um bear market, um mercado onde são os ursos e não os touros que dominam os acontecimentos. A prazo, porém, Virginie Maisonneuve não acredita que se vão confirmar os receios de alguns analistas de que as bolsas ocidentais podem estar a entrar num longo período de bear market, potencialmente arrastando-se ao longo de vários anos.
“Não acredito que estejamos a entrar num bear market de muitos anos. E não acredito nisso porque não acredito que vamos ter inflação descontrolada e não acredito que teremos taxas de juro demasiado altas”, afirma a especialista. “Acredito que vamos ter taxas de juro mais altas do que tivemos nos últimos 15 anos, e uma inflação um pouco mais elevada do que temos tido – mas para as ações alguma, desde que não demasiado elevada, até é uma coisa boa, desde que estejamos a falar de empresas com pricing power”, ou seja, capacidade de repercutir as subidas dos custos em aumentos de preços na venda ao público, sem prejudicar as vendas em demasia.
“Penso que estamos a entrar na fase da capitulação nos mercados financeiros, aquela altura em que o pessimismo se apodera das pessoas”, acrescenta a especialista, em entrevista ao Observador. Esse é um termo bem conhecido da teoria dos mercados financeiros, já que descreve o momento em que uma grande parte dos investidores desiste de tentar esperar por uma recuperação dos preços e, por essa razão, vende também os seus títulos, agravando, assim, a pressão vendedora nas bolsas.
O que a teoria dos mercados diz é que é na fase da capitulação que se fazem os grandes investimentos, embora seja muito difícil afirmar, em tempo real, quando é que se atingiu esse “fundo” nos mercados. Só a posteriori, depois de grandes momentos de correção, é que normalmente é possível detetar exatamente em que altura se entrou na fase de capitulação.
Virginie Maisonneuve salienta que “é muito difícil apontar qual será o fundo das bolsas”, antes da recuperação, “mas nesta fase estamos a constatar que as boas notícias empresariais provocam uma reação praticamente neutral nos mercados e as más notícias provocam enormes quedas… Estamos a ver descidas de 30%, 40%, muito violentas”.
“O que isso nos diz é que as pessoas deixaram de acreditar no racional de investimento, na visão que tinham, quando investiram, e vendem a qualquer preço. A capitulação é isso mesmo“, aponta a especialista. “É nestas alturas que os investidores devem assumir visões de longo prazo, selecionando investimentos temáticos a pensar nos setores mais promissores para o futuro”, afirma, acrescentando que quem tiver condições para isso deve, numa lógica de longo prazo, “comprar e esquecer que se tem aquilo, ignorando a volatilidade que poderá continuar” nos próximos tempos.
Muitos investidores continuam hesitantes, o que fica evidente pela dificuldade que as bolsas têm tido em suster várias sessões positivas consecutivas. A maior parte dos dias de ganhos para as bolsas têm sido seguidos de dias negativos, o que demonstra pouca confiança entre os investidores que aproveitam cada momento de tentativa de recuperação para garantir mais-valias. A convicção mais consensual, entre os investidores, é que pelo menos no curto prazo serão sempre mais limitados os ganhos bolsistas num contexto em que os bancos centrais estão a apertar.
Depois de vários anos em que a Reserva Federal e outros bancos, como o Banco Central Europeu, contribuíram com as suas injeções de liquidez para empolar os preços das ações, de um modo geral, o receio que existe é que qualquer entrada nos mercados acionistas nesta fase possa ser um passo em falso – sobretudo enquanto não for claro que as bolsas conseguem aguentar-se mesmo com o banco central a fechar um pouco mais a “torneira”.
Virginie Maisonneuve não recusa a ideia de que as bolsas estavam em níveis empolados pela dinâmica da política monetária – sobretudo com as injeções feitas para combater o impacto da pandemia – mas acredita que nesta fase os mercados já estão em níveis mais sustentáveis. “Já houve um ajuste – alguns setores, como o tecnológico, já começaram a cair há muito tempo, desde novembro“. Um exemplo, o índice tecnológico Nasdaq 100 caiu para menos de 7.000 pontos quando começou a pandemia e em novembro último superou os 16.500 pontos – porém, desde então, voltou para níveis abaixo dos 12.000 pontos [11.835 pontos foi o fecho a 20 de maio].
É pessimismo em demasia, afirma a CIO da Allianz GI, “quando vemos boas empresas com quedas bolsistas de 40% porque os lucros falharam as expectativas por 5% e deram orientação futura cautelosa… bem… orientações futuras cautelosas todas as empresas estão a dar, vivemos num contexto de incerteza…”.
Esta é, na opinião da especialista, “a altura em que um investidor deve dar um passo atrás e pensar: ora bem, dentro de cinco anos o que é que eu acho que vai acontecer?”. Usando um exemplo aleatório, de uma ação que caiu 35% após apresentar resultados pouco animadores, Virginie Maisonneuve pergunta: “Será que a Netflix vai desaparecer? Ou será que a Netflix vai conseguir reinventar-se e criar novas formas de criar valor para os seus acionistas?”
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“É quando vemos o fator-medo a entrar em cena que se deve procurar oportunidades das quais podemos tirar partido“, como, por exemplo, ações de empresas tecnológicas de qualidade, como as de cibersegurança (não tanto aquelas tecnológicas “sonhadoras”, com poucos ou nenhuns lucros, que tenderão a ser mais penalizadas num cenário de capital menos barato, diz). Porém, “é preciso ser muito paciente, não usar alavancagem [endividamento para fazer investimentos] e, depois de comprar, não pensar mais naquilo durante uns anos“.