“Não sei qual o mal que fizemos. Será que estamos a morrer porque não votámos na Frelimo? Será que é esse o nosso pecado?” A pergunta, num direto da TV Sucesso, veio de um homem que acabara de ver um jovem morto a tiro, durante as manifestações de apoio a Venâncio Mondlane, conhecido por VM7 entre os seus apoiantes. Esta quinta-feira foram três as vítimas mortais (todos jovens) entre os apoiantes do candidato presidencial que aterrou ao início da manhã em Maputo a apontar o dedo a um “genocídio silencioso” promovido pelo regime. E para tomar posse como “presidente eleito pelo povo”.
Chegou no voo vindo de Doha, Qatar, mas não se sabe onde viveu nos últimos dois meses e meio em que esteve fora por motivos de segurança, como contou ao Observador no início de novembro. Saiu do aeroporto de óculos escuros e Bíblia na mão, ajoelhou-se e rezou perante os apoiantes que estavam na primeira fila do aeroporto internacional de Maputo. Lá fora, desde manhã cedo já se ouviam alguns disparos, havia um grande número de pessoas nas imediações à espera de Venâncio e também forte presença policial a tentar conter a multidão.
A tomada de posse do próximo presidente da República de Moçambique está marcada para o meio da próxima semana, mas Venâncio vinha preparado para se antecipar à cerimónia oficial. Já tinha prometido voltar ao país para tomar posse e foi isso que fez, logo à porta do aeroporto, depois das primeiras declarações aos jornalistas. Pediu a Bíblia, pôs a mão direita no ar e declarou: “Eu, Venâncio Mondlane, presidente eleito pelo povo moçambicano, não pelo Conselho Constitucional nem pela CNE, mas pela vontade genuína do povo, juro, pela minha honra, servir a pátria moçambicana e os moçambicanos”.
Chegada de Mondlane a Maputo. Número de mortos em Moçambique sobe para três
Continuou ainda: “Juro pela minha honra respeitar a Constituição e a lei e usar todas as minhas energias, físicas, psicológicas, intelectuais e até emocionais, em benefício desta terra para que daqui a cinco anos ou dez anos se torne uma das maiores nações do mundo. Digo isto na qualidade de presidente eleito pelo povo moçambicano.” Repetiu o mesmo número de auto-proclamação pouco depois, no meio da multidão que seguiu atrás do carro que o transportava pelas ruas de Maputo.
Aos jornalistas tinha garantido não ter regressado ao abrigo de um “acordo político” e manteve-se inabalável sobre quem venceu as eleições do início de outubro: ele e não Daniel Chapo, que se prepara para assumir funções, após a proclamação oficial dos resultados pelo Conselho Constitucional. “Se quiserem tomar posse no dia 15, então vamos ter dois presidentes“, avisaria dali a pouco Mondlane, em cima de um carro, enrolado numa bandeira de Moçambique com a multidão à sua volta a gritar pelo seu nome próprio.
Garante que não fez “esta luta toda para ser chefe, ter benefícios financeiros ou materiais”, ainda assim admitiu estar aberto ao diálogo. Aliás, disse que é para isso que vem, para quebrar a “narrativa” de que não há diálogo com a oposição porque ele estava fora do país. E até disse, a dada altura na resposta às perguntas dos jornalistas logo à chegada, que “mesmo que o diálogo leve à necessidade de pessoas” que fazem parte do seu “grupo integrarem o executivo”, há um elemento que nunca o integrará: “Nunca serei eu que farei parte de um executivo que provenha de resultados falsários, manipulados e burlescos.”
Uma das denúncias que trazia para fazer era sobre o “genocídio silencioso” que diz que a Frelimo está a promover, falando mesmo em “valas comuns” com apoiantes seus, assassinados pelo regime. Até ao final de dezembro, as manifestações pós-eleitorais em Moçambique já tinham feito mais de 250 mortos, metade só na semana antes do Natal.
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O próprio Venâncio Mondlane chegou a temer pela vida, daí a fuga de Moçambique no final de outubro, e esta quinta-feira o receio continuava lá. Em cima dos telhados do aeroporto havia snipers, nas ruas havia forte dispositivo de segurança, muitas armas, com vários períodos em que se ouviam tiros disparados em vários pontos da cidade — as vitimas mortais confirmariam mais tarde que não era só gás lacrimogéneo, mas também balas verdadeiras.
O carro onde circulou Venâncio seguiu sempre com seguranças pendurados de lado e, depois do pequeno comício junto ao Mercado Estrela Vermelha, refugiou-se novamente em parte incerta. Ao fim do dia, o seu conselheiro Cremildo Chichongue garantiu que “o Presidente está neste momento seguro e vai fazer o trabalho que um Presidente faz: montar a estrutura de governo, as pastas” nos próximos dias.
Os tiros junto à comitiva de Mondlane. Dia registou três mortos e mais seis pessoas foram baleadas
Foi ainda quando Mondlane falava à multidão, em Maputo, que o som de tiros rasgou o ar. A polícia começou a dispersar a multidão reunida nos arredores do Mercado Estrela Vermelha com gás lacrimogéneo e terá disparado. Não tardou a que surgissem as primeiras notícias de mortes: dois jovens, cujos corpos foram mostrados em direto na televisão e nas redes sociais. Horas depois, surgia a notícia de mais uma vítima mortal.
Ao todo, pelo menos outras seis pessoas terão sido baleadas ao longo do dia, confirmou à Agência Lusa a Plataforma Decide. Uma delas será o muezin (responsável pelo chamamento para a oração numa mesquita) Háfiz Ashraf Salimo, da mesquita Masjid Bilal, em Maputo. Salimo seguia para a mesquita quando foi apanhado no meio da confusão perto do Estrela Vermelho e acabou atingido a tiro.
A confusão e violência foram sendo sentidas a espaços ao longo de todo o dia em Maputo e arredores. Em Maluana, a Estrada Nacional 1 esteve cortada durante várias horas por cidadãos em protesto pelas pessoas que foram alvejadas. Um vídeo divulgado nas redes sociais mostra um grupo de manifestantes a levar um agente da polícia para parte incerta e a empurrá-lo violentamente.
Do outro lado, para além das mortes registadas não é claro o total grau de repressão das forças de segurança. Alguns jornalistas moçambicanos divulgaram um vídeo que mostra um grupo de homens armados a disparar e a entrar numa habitação — sendo que, ao longo dos últimos meses, a população tem apontado para casos de violência perpetrada por membros das forças de segurança “à civil”. Oficialmente não houve ainda qualquer reação das forças de segurança, nem são conhecidos números de detidos.
Cremildo Chichongue denunciou também nas suas redes sociais que terá sido seguido por um agente da Sernic (Serviço Nacional de Investigação Criminal), que lhe foram roubados os seus telemóveis e que teve de fugir do local onde se encontrava. “O meu assistente foi agredido e obrigado a entregar todos os celulares”, escreveu no Facebook, garantindo que esta “não foi uma ação de ladrões”. Mais tarde, Chichongue acrescentou que foi avisado por alguns jovens de que estaria a ser seguido por “um homem da Sernic”. Segundo o conselheiro, os jovens retiraram-no da zona e esconderam-se numa paróquia.
Diálogo aberto, mas com “plataformas partidárias”, diz Chapo
Ao mesmo tempo que Venâncio Mondlane terminava o seu discurso e a violência se espalhava pelas ruas de Maputo, o Presidente Filipe Nyusi recebia os líderes de todos os partidos com assento parlamentar, incluindo do Podemos, a força política que apoiou a candidatura de Mondlane — mas cujo atual líder, Albino Forquilha, se tem distanciado do candidato.
Se o nome de Mondlane foi ou não abordado na reunião, não se sabe. O excerto da reunião divulgado pela Televisão de Moçambique focou-se sobretudo nas declarações de Daniel Chapo, o candidato da Frelimo, que garantiu ter havido um compromisso entre os partidos ali representados para levar a cabo “reformas relacionadas com a lei eleitoral, reformas relacionadas com o aprimoramento do processo de descentralização (…) e reformas que possam levar-nos à revisão da Constituição”.
A única pergunta autorizada veio de um jornalista que se focou na chegada de Mondlane e questionou se há abertura para dialogar com o candidato do Podemos. A resposta veio de Chapo, dizendo que o diálogo “está em aberto”, mas sublinhou que este é feito com “as plataformas partidárias”. Abriu, contudo, a possibilidade de “futuramente” esse diálogo ser aberto “à sociedade civil”.
A Frelimo explora assim a divisão interna do Podemos, que vive um momento de cisão entre Forquilha e Mondlane, com uma recente troca de acusações de “traição” e “vilipêndio”. Logo na chegada ao aeroporto de Maputo esta manhã, Venâncio Mondlane tinha feito questão de colocar água na fervura, ao garantir que continua a estar ligado ao partido. “O que aconteceu foi que o líder do Podemos teve atitudes — como vocês sabem, já rolou muita tinta sobre isso — que não foram dignificantes. Mas eu não estou separado do Podemos”, assegurou, referindo-se a Albino Forquilha.
“Acordo com Venâncio Mondlane ainda está de pé” garante Podemos
Pouco tempo depois da reunião entre Nyusi e os líderes partidários, o Presidente assinou a exoneração de alguns dos membros do seu governo — precisamente aqueles que, como a ministra dos Negócios Estrangeiros Verónica Macamo, fazem parte da lista de deputados eleitos pela Frelimo, que podem assim vir a fazer parte do futuro executivo. A tomada de posse de Daniel Chapo como novo Presidente de Moçambique está marcada para o dia 15 de janeiro.