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É desta que o enriquecimento injustificado é criminalizado?

Ainda não é garantido, mas este é, seguramente, o momento em que existe maior vontade política e pressão pública para que tal aconteça. A par da polémica gerada pela decisão do juiz Ivo Rosa na fase instrutória da Operação Marquês, quando caíram 25 dos 31 crimes de que José Sócrates tinha sido acusado pelo Ministério Público (incluindo todos os de corrupção), a Associação Sindical dos Juízes apresentou uma nova proposta que foi bem acolhida pelo presidente da República, pelo Governo e pelos partidos.

Na sequência da leitura da decisão de Ivo Rosa e em sintonia com os juízes, os partidos começaram a concretizar a intenção em propostas que têm por objetivo prevenir atos de corrupção, algumas das quais já deram entrada na Assembleia da República. PS, BE, PCP, CDS, PAN, PEV e Chega avançaram ou vão avançar com iniciativas neste sentido, pelo que é cada vez mais provável que o enriquecimento injustificado ou, na versão dos juízes, a ocultação da riqueza seja finalmente criminalizada.

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Quantas vezes já se tentou fazer isto?

Quando se diz que o crime pode “finalmente” passar a existir na lei portuguesa não é por acaso: há 14 anos que os mais diversos partidos, da esquerda à direita do espetro parlamentar, tentam fazer sucessivas propostas passar, sempre sem sucesso. O longo historial do enriquecimento ilícito, enriquecimento injustificado ou ocultação da riqueza — assim se chamaram as várias versões das propostas, nas suas várias vidas — conta-se em muitas partes e inclui propostas caducas e travões do Tribunal Constitucional.

A história começa em 2007, quando o PSD leva a primeira iniciativa deste género ao Parlamento e a vê chumbada pelo PS, então maioritário (no tempo do primeiro Governo de José Sócrates). Segue-se a apresentação de novas propostas, por PSD, PCP e BE, repetidamente entre 2009 e 2011 — uma delas, do PSD, até começa por ser aprovada na generalidade, no Parlamento, mas acaba, tal como outra da esquerda, por caducar com a queda do Governo de Sócrates.

Já com Pedro Passos Coelho no poder, esquerda (sem o PS) e direita voltam a pôr-se de acordo para criar o mesmo crime e conseguem aprovar a lei, que esbarra no veto do Tribunal Constitucional. Em 2015, o filme repete-se: a maioria PSD/CDS volta a apresentar a proposta — sem apoio da esquerda, que entende que os problemas levantados pelo TC não ficaram resolvidos — e a iniciativa volta a ser travada pelo tribunal.

As propostas mais recentes avançam na última legislatura, depois de ter sido criada a Comissão da Transparência (que passou a ser permanente) para legislar sobre este e outros assuntos. O que resultou não foi a criação deste tipo de crime, embora tenha havido avanços no que toca às obrigações declarativas dos titulares de altos cargos públicos e políticos. Agora, a maioria dos partidos quer voltar a abrir o dossiê, com esperanças de que ao décimo quarto ano de tentativas seja de vez.

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Porque é que as propostas chumbaram, das outras vezes, no TC?

O motivo principal tem a ver com o TC ter entendido que a simples criação de um crime de enriquecimento ilícito implica a reversão do ónus da prova. Quer isto dizer que não é possível assumir, apenas pela observação de comportamentos, por exemplo, que um político enriqueceu sem justificação enquanto esteve num determinado cargo e fazer disso um crime, obrigando a pessoa em causa — por princípio, inocente até prova em contrário — a fazer prova da sua própria inocência.

Para o TC, existe uma “violação do princípio da legalidade” a partir do momento em que se pune uma situação objetiva mas em que o ato ilícito não está identificado (o político X é demasiado rico para os rendimentos que tem, mas não se sabe de onde vem o dinheiro); o que tem de ser punido é, em alternativa, a “ação intencional” de ocultar a “aquisição” dessa riqueza das entidades fiscalizadoras, defendem agora os juízes. “Qualquer solução de criminalização que se baste com a prova pela acusação da disparidade objectiva entre o enriquecimento detectado e os rendimentos conhecidos e em que o juízo sobre a ilicitude resulte da falta de provas apresentadas pelo acusado, permitirá condenações por “enriquecimento ilícito” em situações em que não há prova da acção ilícita”, lê-se na nova proposta.

Os acórdãos que o tribunal publicou em 2011 e 2015 coloca vários outros entraves e considera que não é constitucional impor um “dever geral de declaração de bens aplicável a todos os cidadãos”, porque este contraria o direito fundamental à propriedade privada. Por isso mesmo, a lei deve referir-se apenas a titulares de cargos específicos, que tenham a obrigação de declarar rendimentos e património específicos.

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Então o que é que é diferente, desta vez?

Desta vez, com o empurrão político que o caso Sócrates provocou, os partidos garantem que conseguem, com a ajuda da proposta dos juízes, contornar os obstáculos apontados pelo Tribunal Constitucional. A pressão de Marcelo Rebelo de Sousa foi clara: no início da semana passada, o presidente da República veio dizer que já se perdeu “tempo de mais” e é preciso que não se perca uma “boa ideia” por causa da forma como é executada.

“Não posso fazer mais”. Marcelo pressiona Governo e partidos para criminalizar enriquecimento injustificado

Dias depois, era António Costa quem vinha dar a sua benção à ideia, elogiando a proposta avançada pelos juízes. Além dos partidos que já apresentaram ou anunciaram que vão apresentar projetos de lei, o PSD disse, em resposta ao Observador, ter “abertura” para aprovar propostas destas, desde que fique assegurado que os problemas constitucionais não voltam a colocar-se.

O PS, depois de alguma hesitação, confirmou esta semana que vai mesmo apresentar um projeto próprio, que visará “aperfeiçoar” o sistema atual e acolher propostas dos juízes. Na reunião da bancada socialista, esta semana, o aviso ficou feito: os deputados responsáveis pela pasta estão a tratar de construir uma proposta nova, mas é preciso deixar claro junto da opinião pública que não se está a partir do zero, havendo já legislação para responder a estes casos, e que uma simples alteração da lei não funcionará como uma bala de prata para resolver casos como os de José Sócrates.

Enriquecimento injustificado. PS vê proposta dos juízes com “muito bons olhos” e vai apresentar projeto no Parlamento

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O que é que a lei já prevê nestes casos?

A legislatura passada serviu, na Comissão da Transparência, para desenhar uma lei que prevenisse casos de enriquecimento sem justificação — ao Observador, um deputado socialista gracejava sobre as novas iniciativas, dizendo que a pressão pública renovada sobre o assunto pretende, na verdade, “arrombar portas que já estão abertas”.

O que ficou estabelecido na lei 52/19, na sequência dos trabalhos da Comissão da Transparência, é que as pessoas que desempenhem uma série de cargos políticos e altos cargos públicos (onde se incluem magistrados) têm de apresentar uma declaração única com a indicação total dos rendimentos brutos, com indicação da sua fonte; a descrição do seu “ativo patrimonial”, se forem titulares ou cotitulares, incluindo se resultar de uma herança, assim como de elementos patrimoniais de que seja “possuidor, detentor, gestor, comodatário ou arrendatário, por si ou por interposta pessoa coletiva ou singular, existentes no País ou no estrangeiro” e ações, quotas e outros direitos, desde que num valor “superior a 50 salários mínimos”.

Da declaração deve ainda constar a “descrição do seu passivo”, consista este em empréstimos do Estado ou quaisquer outras pessoas singulares ou coletivas, assim como a menção de cargos sociais desempenhados nesse momento ou nos três anos anteriores. Será preciso apresentar nova declaração se no exercício de funções houver uma alteração do património superior a 50 salários mínimos e uma outra três anos depois do fim do exercício do cargo em questão.

Caso a declaração não seja apresentada, ou seja apresentada de forma incompleta ou incorreta, a pessoa em causa é notificada para fazer as correções necessárias num prazo de 30 dias. É então que, caso não cumpra esta obrigação, pode perder o mandato ou ser demitido (salvo se for presidente da República, do Parlamento ou primeiro-ministro) e ser punido por crime de desobediência qualificada, com pena de prisão até 3 anos.

Se a não apresentação não esconder nenhum elemento patrimonial, a multa vai até 360 dias. Além disso, os acréscimos sem justificação são tributados, para efeitos de IRS, à taxa especial de 80% (o regime geral é de 60%).

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Quais são as alterações que os juízes vieram propor?

Tendo em conta os reparos feitos no passado sobre as propostas anteriores, incluindo os que foram levantados pelo TC, os juízes desenharam uma nova proposta para criminalizar a “ocultação da riqueza” com a preocupação de contornar vários obstáculos, para garantir que a lei desta vez passa.

Na proposta da Associação Sindical dos Juízes, critica-se o facto de as obrigações declarativas já previstas na lei preverem apenas que se declarem e discriminem os rendimentos e património obtidos, sem explicar qual a origem do dinheiro ou dos bens em causa. “Com a lei actual, em tese, o titular de um cargo abrangido pela LOD pode declarar um incremento patrimonial superior a 50 salários mínimos mensais – por exemplo, a aquisição da propriedade de um bem ou a liquidação de um empréstimo bancário – sem ter de explicar a proveniência dos respectivos meios financeiros”.

Por outro lado, a lei atual “não obriga os sujeitos por ela abrangidos a declararem vantagens patrimoniais futuras cuja promessa de aquisição ocorra no período do exercício do cargo”. Ou seja, não há obrigação de declarar uma vantagem prometida num ato de corrupção, por exemplo, que só vá ser entregue no futuro. “Isso significa, em tese, por exemplo, que o titular de uma alta função pública pode hoje receber no seu exercício uma promessa de vantagem económica futura, de um terceiro com quem se relacionou nessa função, sem que alguma vez tenha de a declarar ou possa ser sancionado por não fazer essa declaração. Esta omissão apresenta-se como muito problemática”, dizem os juízes.

A proposta critica ainda um argumento utilizado de forma frequente: o problema não estará na falta de leis, mas na falta de meios para os concretizar (a Entidade da Transparência, aprovada em 2019 para fiscalizar estas declarações, ainda não foi criada, por exemplo). “A persistir-se nesse caminho continuarão a repetir-se no futuro, com toda a probabilidade, casos de exibição imoral de património incongruente e não declarado, por pessoas que exerceram altas funções públicas, sem que se chegue a descobrir a fonte desse enriquecimento, e daqui a 30 anos a sociedade estará exactamente na mesma, a discutir a milésima estratégia anticorrupção e a necessidade de apostar no reforço dos meios”.

Em resumo, com esta proposta, a norma aplicar-se-ia apenas aos cargos previstos na lei de 2019 (cargos políticos, altos cargos públicos e equiparados, juízes do Tribunal Constitucional e do Tribunal de Contas, Provedor de Justiça, membros dos conselhos superiores das magistraturas e magistrados judiciais e do Ministério Público); passa a ser obrigatório explicar a origem de grandes aumentos de rendimento e patrmónio; a punição passa a ser sobre omissões sobre essa declaração e falta de justificação da fonte de riqueza; e essa punição torna-se mais pesada, sendo, em vez de até três anos, de um a cinco anos.

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Mas porque é que não lhe chamam enriquecimento ilícito nem injustificado?

Esta correção existe para prevenir problemas como os que já foram levantados no passado — a simples implicação de que o enriquecimento cuja origem fosse desconhecida seria “ilícito”, por exemplo, simbolizava o perigo de inversão do ónus da prova. Esta é “uma proposta que, a bem da necessidade de clarificar conceitos e não inquinar a discussão pública, abandona de vez designações como “enriquecimento ilícito”, “enriquecimento injustificado” “enriquecimento incongruente” ou outras equivalentes”, explicam os juízes, que optam por chamar-lhe crime de “ocultação da riqueza”. A denominação usada pelos partidos varia, tendo BE ou PCP optado pelo termo “enriquecimento injustificado”.