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O que desencadeou o veto de Hungria e Polónia?

Os “embaixadores” permanentes dos estados-membros junto da União Europeia (COREPER) aprovaram esta semana o mecanismo que impede o acesso aos habituais fundos comunitários (o orçamento plurianual da UE) se o país em causa não cumprir os critérios de Estado de Direito e de valores europeus definidos nos Tratados da UE.

A questão torna-se extraordinariamente relevante numa fase em que se lança precisamente o novo quadro comunitário de apoio para os próximos sete anos (e que entra supostamente em vigor a 1 de janeiro), mas sobretudo porque os países europeus precisam, com urgência, do novo Fundo de Recuperação e Resiliência (FRR).

Só que, tendo a maioria dos países decidido que a regra do Estado de Direito era mesmo para cumprir, tanto Polónia como Hungria vetaram a chamada “bazuca europeia”, o FRR — 750 mil milhões de euros, entre subvenções e empréstimos, para fazer face à crise — a que se juntará cerca de um bilião de euros dos tradicionais fundos europeus. No total, são 1,8 biliões de euros para distribuir entre os 27 estados (ou 9 vezes o PIB anual português).

Hungria e Polónia bloqueiam aprovação de orçamento plurianual da UE

A Hungria e a Polónia não conseguiram impedir a votação inicial porque, ao contrário do pacote de financiamento europeu — que implica um consenso em torno da emissão de dívida europeia —, a regra do Estado de Direito carece “apenas” de maioria qualificada.

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Mas não havia já acordo para a "bazuca europeia"?

Havia um acordo genérico, alcançado na madrugada de 20 de julho, mas que só foi alcançado graças à ambiguidade semântica no texto final, o que permitiu aos chefes de Estado e de Governo respirarem um pouco de alívio.

Como ponto de partida, a proposta financeira apresentada pela Comissão aos estados-membros deixava claro que não seria possível aceder aos novos fundos europeus se não fossem cumpridas as regras relativas aos Direitos Humanos. Hungria e Polónia ameaçaram então bloquear qualquer acordo que considerasse essa questão na distribuição das verbas.

Cinco dias depois — numa maratona que aparentava ter desatado vários nós — a proposta da Comissão estava já irreconhecível nesse parágrafo. Onde se lia que “o respeito pelo Estado de Direito é uma pré-condição essencial para uma gestão financeira sólida e um efetivo financiamento da UE”, passou a constar apenas uma referência muito tímida a “condicionalidades para proteger o orçamento”.

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Mas depois de negociações (que duraram meses) entre o Parlamento Europeu e o Conselho da União Europeia, essa formulação mais vaga acabaria por cair. O acordo entre as instituições acabaria por condicionar o acesso aos fundos do quadro plurianual a um mecanismo que exige o cumprimento por parte dos Estados-membros de um conjunto de princípios do Estado de Direito.

Este mecanismo “permite proteger o orçamento da UE onde se comprove que violações dos princípios do Estado de Direito num Estado-membro afetam ou coloquem um risco sério de afetar uma saudável gestão financeira do orçamento da UE ou a proteção dos interesses financeiros da União”.

Mas há passagens ainda mais concretas, como uma referência explícita às políticas dos Estados-membros que “ponham em risco a independência do poder judicial”. E este é precisamente um dos pontos, no acordo, que é indicativo de uma quebra dos princípios do Estado de Direito.

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As desavenças com Hungria e Polónia não são já antigas?

A Comissão anda há algum tempo a tentar convencer Hungria e Polónia de que devem cumprir as regras de Estado de Direito da União Europeia. Ou seja, nestes casos, que não retirem independência ao sistema judicial, aos media, a organizações não governamentais e a académicos.

Perante o risco de violação grave dos valores europeus, os dois países do Centro da Europa viram mesmo Bruxelas ativar nos últimos anos o artigo 7º do Tratado da UE — que tenta, através do diálogo, evitar sanções — que, se tudo correr mal, podem levar à suspensão dos direitos de voto destes estados-membros no Conselho.

Portanto, a questão não é nova, mas, tendo-se arrastado até 2020, ganhou novos contornos no âmbito da discussão dos novos fundos europeus — por um lado, o Fundo de Resiliência, que visa combater a crise e mitigar os efeitos que tem nas famílias e nas empresas em todo o espaço europeu; por outro, o orçamento plurianual da União Europeia para os próximos sete anos. O problema foi empurrado para mais tarde. E a “bomba” rebenta agora.

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O Grupo de Visegrado, que junta os governos de Eslováquia, Hungria, Polónia e República Checa, reunido com o presidente do Conselho Europeu durante a maratona negocial de julho.

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A decisão é vinculativa? E as negociações prosseguem?

Não é uma decisão fechada, tendo em conta que ocorreu no âmbito da Coreper II — que reúne os representantes permanentes dos estados-membros na UE. Apenas no Conselho da União Europeia, onde os estados estão representados a nível ministerial, as decisões são vinculativas. Mas é um voto político importante que faz disparar as campainhas nas capitais europeias.

As negociações podem ser reabertas a qualquer momento pela presidência alemã da UE ou no Conselho da União Europeia, em que os ministros dos governos de cada estado-membro se reúnem para alterar e aprovar legislação e coordenar políticas. Um órgão que não se confunde com o Conselho Europeu, a cimeira que reúne pontualmente os líderes da UE para determinar as linhas políticas comuns, mas que não toma decisões formais.

A UE mergulha novamente em crise política, com o próximo ato marcado para quinta-feira, numa cimeira de líderes por videoconferência.

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“Acreditamos que a União Europeia vai resolver o conflito que está a empatar este mega-pacote orçamental de 1,8 biliões, mas provavelmente isso não acontecerá já esta quinta-feira”, escreve Holger Schmieding, economista do Berenberg Bank, em nota enviada esta quarta-feira aos clientes do banco. “Será mais provável que o acordo chegue finalizado até à cimeira de 10 e 11 de dezembro”.

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O que é que pode desatar este nó?

É uma certeza que “será grande a pressão, nos bastidores, por parte da Polónia e da Hungria nas próximas semanas, mas o que é mais provável é que a formulação da cláusula sobre o Estado de Direito não será alterada”, diz o Berenberg Bank. “Porém, poderão ser dadas à Polónia e à Hungria concessões como uma declaração política anexa a garantir que as transferências só serão travadas em casos muitos específicos”, diz o economista Holger Schmieding.

No caso concreto da Hungria, outra peça que poderá ajudar a desatar o nó é “ser instalado algum tipo de mecanismo que vá avaliar o Estado de Direito no país – e tome muito tempo a fazê-lo”. Isso poderá “dar à Hungria e Polónia algum tempo extra, potencialmente evitando um embaraço para o governo húngaro pelo menos até às próximas eleições, em 2022”.

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Quanto à Polónia, recebeu, em termos líquidos, 12 mil milhões de euros da UE no ano passado (2,3% do PIB de 2019), sobretudo em fundos de desenvolvimento regional e ajustamento estrutural. “Além de subsídios generosos ao abrigo do novo quadro comunitário, a Polónia deverá receber 26,9 mil milhões dos 390 mil milhões do fundo de recuperação. Ou seja, abdicar destes recursos votando contra o orçamento da UE acabará por se tornar algo muito dispendioso, numa altura em que o governo polaco já está sob pressão devido às recentes medidas que vieram restringir o aborto e que foram muito impopulares”, diz o banco de investimento.

“Neste contexto, fazer finca-pé neste veto poderá aumentar a pressão pública sobre o governo, sobretudo porque a maior parte das pessoas não está propriamente a ver porque é que deverá pôr-se do lado do governo nesta matéria que está ligada à independência do poder judicial do poder político”.

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O primeiro-ministro da Polónia, Mateusz Morawiecki, acompanha as reivindicações do húngaro Viktor Orban

E há um terceiro elemento, chamado Angela Merkel. “A Alemanha detém a presidência rotativa da UE até ao final deste ano e, para Angela Merkel, fechar um acordo para um pacote desta magnitude será um corolário marcante para a sua carreira política. Portanto, ela tem um forte incentivo a fazer com que este acordo seja fechado rapidamente”, conclui o economista.

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Então, mas onde é que entra aqui a Eslovénia?

O primeiro-ministro da Eslovénia, Janez Jansa, deu o seu apoio à Hungria e à Polónia nesta questão. Numa carta enviada a Ursula Von der Leyen e a Charles Michel, Jansa começa por dizer que a Eslovénia apoia o respeito pelo Estado de Direito em toda a linha. Mas diz que não isso que está aqui em causa.

“Mecanismos discricionários que não se baseiam num critério independente, mas sim em critérios politicamente motivados não podem ser apelidados de ‘Estado de Direito”, adiantou o chefe do Governo esloveno. “Atualmente” – acrescentou – “numerosos media e alguns grupos políticos no Parlamento Europeu estão a ameaçar, abertamente, usar o o instrumento erradamente chamado de ‘o Estado de Direito’ como forma de disciplinar, através de uma maioria, Estados-membros individuais da UE”, completou.

Esta posição seria de esperar dos outros dois países que, ao lado da Hungria e da Polónia, formam o Grupo de Visegrado: a República Checa e a Eslováquia. Então de onde vem a posição da Eslovénia? É que Janez Jansa é um forte aliado político, além de amigo, do húngaro Viktor Orban.

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Jansa ascendeu ao poder na Eslovénia em Março deste ano, quando o então primeiro-ministro Marjan Sarec (liberal) não conseguiu apoios para formar governo. Aliás, o mesmo tinha acontecido ao partido de Jansa – o SDS (Partido Democrático da Eslovénia) nas eleições de 2018, quando foi o mais votado, mas nenhuma outra formação lhe deu a mão, devido ao seu programa de extrema-direita e as posições sobre a imigração.

Orbán deu o seu apoio público a Jansa nas eleições de 2018 e alguns jornalistas de investigação na Hungria e na Eslovénia deram conta que alguns empresários de media próximos do primeiro-ministro húngaro terão investido milhões de dólares na criação de órgãos de comunicação social favoráveis ou ligados a Jansa.

Quanto ao seu programa, é muito parecido com o de Orban: uma política muito mais apertada no que diz respeito ao direito de asilo, medidas reforçadas de segurança fronteiriça e medidas de etno-nacionalismo voltadas para as famílias eslovenas. O Hungary Today escrevia na sua edição 10 de março, a propósito da ascensão de Jansa a primeiro-ministro, que “o primeiro-ministro húngaro pode esperar um amplo apoio político vindo de Ljubliana na União Europeia”.

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E agora?

Viktor Orban, o primeiro-ministro húngaro, já avisou que vai ser irredutível – está a adotar uma linha mais dura na recusa da cláusula controversa. Mas, como lembra Holger Schmieding, economista do Berenberg Bank, nas últimas três décadas “foi sempre possível a Alemanha e a Hungria resolverem as suas divergências – sobretudo tendo em conta que a Hungria teve um papel importante no derrube da Cortina de Ferro, em 1989”.

E há outra questão, potencialmente decisiva: “Para a Hungria, a teimosia em recusar os fundos será algo cada vez mais dispendioso”, isto porque “Budapeste deverá receber 6,1 mil milhões do fundo de recuperação pós-corona — 4,2% do produto nacional bruto (PNB) de 2019, um pouco menos do que os 5,1% da Polónia. Mas a Hungria é um grande beneficiário, em termos líquidos, das transferências da UE — 5,1 mil milhões de euros só em 2019 (3,5% do PNB daquele ano)”.

A chanceler da Alemanha, Angela Merkel, tem pouco mais de mês e meio de presidência da UE pela frente, sendo depois substituída pelo Governo português.

Há, no entanto, um problema identificado por Richard McGuire, analista do Rabobank em Londres. “A lógica diz-nos que a Hungria, em especial, precisa muito daqueles recursos financeiros concedidos pela UE e que, portanto, simplesmente não fará sentido do seu ponto de vista estar a colocar tudo em risco”, considera o analista. Mas “uma lição que aprendemos nos últimos anos é que o populismo nem sempre segue as regras da lógica — veja-se o caso do Brexit”.

Ou seja, “ficamos, portanto, a navegar um pouco às cegas no sentido de perceber se a Hungria e a Polónia vão ceder algum terreno. Mas uma coisa é certa: há um grande número de precedentes que demonstram que não há, na UE e na zona euro, barreiras inultrapassáveis ou linhas vermelhas”.

“Isto porque se percebe que o futuro do projeto europeu é mais importante do que qualquer outra matéria — e é por isso que temos dificuldade em acreditar que a atual resistência da Hungria e da Polónia poderá acabar mesmo por fazer com que o orçamento comunitário e o fundo de recuperação não acabem por ser aprovados por todos os países”, atira o analista do banco de investimento sediado nos Países Baixos.

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Até quando pode durar este impasse?

Caso não se chegue a um acordo até dezembro, então os primeiros desembolsos do fundo de recuperação que estão previstos – que somam os 390 mil milhões de euros – provavelmente irão resvalar para o segundo trimestre ou, mesmo, para o terceiro trimestre, diz o Berenberg Bank. “Se isso acontecer, embora seja lamentável, poderá não fazer grande diferença na prática porque os países têm capacidade para pedir emprestado nos mercados financeiros a taxas excecionalmente baixas”, afirma o banco de investimento.

Ou seja, não é especialmente problemático haver algum atraso de uns meses, porque os estados têm acesso fácil ao mercado e o BCE está na iminência de o tornar ainda mais fácil quando lançar novos estímulos e mais compras de ativos em dezembro. É possível usar o mercado de dívida para “fazer a ponte” até que os fundos sejam desbloqueados, desde que não seja um período maior do que alguns meses, dizem os bancos de investimento.

O problema maior pode ser outro. “A UE pode continuar a trabalhar dentro do quadro comunitário existente, como que em duodécimos e com acordo sobre cada nova iniciativa – seria como quando, nos EUA, há dificuldade em passar o orçamento no Congresso e se chega a situações de government shutdown”, diz Holger Schmieding. A questão é que “numa Europa com várias nações, podia ser bem mais perigoso — se os atrasos gerarem uma perceção de falta de solidariedade dentro da UE isso poderá alimentar a narrativa dos partidos eurocéticos populistas, colocando em risco a coesão da UE”.

É por isso que, para o Berenberg Bank, parece ser “extremamente improvável que esta questão faça descarrilar, por completo e de vez, o pacote de 1,8 biliões”. Até porque “quando a parada é mais elevada, a probabilidade de uma solução para os problemas também é maior” e a “UE continua, apesar de tudo, a ser a melhor máquina de compromissos que algum dia foi criada, para resolver conflitos entre países vizinhos”.