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O acordo sobre o Fundo de Resiliência não está já fechado?

Totalmente, não. Depois de longas maratonas negociais, o Conselho Europeu chegou, de facto, a um acordo com base na proposta da Comissão Europeia. Os fundos criados para combater esta crise, com o Mecanismo de Recuperação e Resiliência à cabeça, ficam com 750 mil milhões de euros disponíveis entre subvenções e empréstimos; e o Orçamento comunitário para 2021-2027 atinge 1,07 biliões de euros (o equivalente a aproximadamente cinco vezes o PIB anual português).

Mas o “diabo” continua nos detalhes e esses não estão todos sob controlo do Conselho Europeu. “Há um acordo político de princípio, que agora está dependente de serem aprovados no Conselho da União Europeia — que é diferente do Conselho Europeu os atos que deem implementação a isso”, sublinha Miguel Poiares Maduro, antigo ministro do Desenvolvimento Regional e especialista em assuntos europeus.

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As decisões do Conselho Europeu — a cimeira que reúne os líderes da UE para determinar as linhas políticas comuns — “não têm capacidade de implementação”. É no Conselho da UE, em que os ministros dos governos de cada estado-membro se reúnem para alterar e aprovar legislação e coordenar políticas, que as decisões formais são tomadas.

Os embaixadores dos estados-membros já concordaram formalmente com a posição do Conselho Europeu relativamente ao Fundo de Resiliência e Recuperação económica, que absorve 672 mil milhões de euros — a fatia de leão dos 750 mil milhões que os líderes europeus aprovaram para fazer face à crise —, mas falta limar as últimas e decisivas arestas.

E não só. Uma vez que a pandemia ocorre no preciso momento em que se discutem as novas verbas de apoio comunitário (Orçamento da UE e perspetivas financeiras a sete anos), os dois pacotes estão intimamente ligados, o que traz ainda mais complexidade a este processo, como veremos adiante.

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Como é que os atropelos ao Estado de Direito na Europa atrapalham a discussão?

Uma das questões mais delicadas da última cimeira de líderes, de julho, tem que ver com a salvaguarda do Estado de Direito e dos valores europeus, que tem deixado Hungria e a Polónia sob fogo cerrado das instituições comunitárias. Em causa estão tentativas de retirar independência ao sistema judicial, aos media, a organizações não governamentais e académicos.

Perante o risco de violação grave dos valores europeus, os dois países do Centro da Europa viram a Comissão Europeia ativar nos últimos anos o artigo 7º do Tratado da UE — que tenta, através do diálogo, evitar sanções (como, em última análise, a suspensão dos direitos de voto do Estado-membro em causa no Conselho).

A questão não é de hoje, mas ganhou novos contornos no âmbito da discussão do Fundo de Resiliência. Num primeiro momento, a proposta da Comissão Europeia deixava claro que não seria possível aceder aos novos fundos europeus se não fossem cumpridas as regras relativas aos Direitos Humanos. Só que Hungria e Polónia ameaçaram bloquear qualquer acordo que considerasse esse dossier na distribuição das novas verbas.

Conclusão? O acordo sacado a ferros, às 4:31 da manhã de 20 de julho, assumiu uma terminologia ambígua, deixando a questão em aberto. Onde se lia que “o respeito pelo Estado de Direito é uma pré-condição essencial para uma gestão financeira sólida e um efetivo financiamento da UE”, lê-se agora apenas uma referência genérica a “condicionalidades para proteger o orçamento”.

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Este é, portanto, um dos principais focos de batalha nas negociações em curso, desde logo, entre os líderes europeus, “porque há Estados que estão a ameaçar vetar”, como lembra Poiares Maduro, mas também entre o Conselho e o Parlamento Europeu.

Fonte comunitária garante, no entanto, ao Observador que esta questão “não está a bloquear as negociações“, que estarão a decorrer a bom ritmo entre as duas instituições europeias.

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Qual o papel do Parlamento Europeu neste processo?

O Parlamento Europeu — que tem um papel importante na aprovação do quadro financeiro plurianual — pode ganhar outra preponderância em todo o processo, entende Poiares Maduro. “Não tendo um poder direto” sobre o Fundo de Resiliência, os eurodeputados estão “a exercer o seu poder sobre o Orçamento para condicionar a discussão”.

Apesar de haver outros dossiês a precisar de um acordo, como a diminuição de verbas de alguns programas europeus, a questão dos Direitos Humanos será um dos fatores mais importantes, com o Parlamento Europeu a querer “garantir algum mecanismo no fundo de resiliência” que impeça o acesso de Polónia e Hungria se não cumprirem as regras do Estado de Direito.

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Por outro lado, no quadro financeiro plurianual, “os governos nacionais não têm direito de veto normalmente, mas estão a usar o direito de veto que têm no programa de resiliência” para fazerem vingar as suas posições, considera ainda o antigo governante. Os chamados países frugais não querem um orçamento europeu tão elevado.

Tendo em conta a dimensão da crise, os governos e as instituições europeias estarão pressionados para encontrar uma solução rápida. Poiares Maduro entende que “a pressão política é muito forte no sentido de haver um acordo nas próximas semanas”.

Tem de haver um acordo nas próximas semanas, mas é difícil saber, porque neste momento não parecem existir as condições necessárias para que esse acordo seja conseguido”.

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E os parlamentos nacionais também vão ser chamados a decidir?

Há duas aprovações em cima da mesa neste momento. Uma delas, como vimos, diz respeito às regras de funcionamento do programa de resiliência, que “é um problema político dentro do Conselho e entre o Conselho e a Parlamento Europeu”. Mas há uma outra componente, relacionada com a aprovação dos recursos próprios, para poder ser emitida dívida europeia. E é aqui que entram os parlamentos nacionais.

“O acordo no Conselho Europeu e entre o Conselho e o Parlamento Europeu não é suficiente relativamente à entrada em funcionamento do programa de resiliência e recuperação económica”, nota Poiares Maduro.

“O programa de resiliência e recuperação económica está dependente da emissão de dívida por parte da UE — e essa emissão de dívida, por sua vez, depende da alteração do teto dos recursos próprios, definindo o limite de financiamento que a União pode incorrer”. Ora, essa “é das poucas decisões que, não sendo uma alteração do tratado, exige a ratificação pelos parlamentos nacionais”.

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O professor universitário acredita que “isso ainda vai demorar”, tendo em conta que “na última vez que isso aconteceu foi preciso quase um ano para ter a ratificação pelos parlamentos nacionais”. Desta vez não deverá levar tanto tempo, porque “vai haver muita pressão para ser feito em poucos meses”, mas Poiares Maduro vê como “praticamente impossível que antes do final do ano a Comissão esteja sequer em condições de emitir a dívida”.

O académico lembra que “em alguns parlamentos nacionais não há uma maioria estável” e, por isso, o processo de ratificação “vai trazer riscos adicionais — além da demora, traz riscos”.

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Portugal já pode negociar com a Comissão sem o plano europeu totalmente aprovado?

Pode, informalmente. O primeiro-ministro já entregou em Bruxelas o esboço do programa português, com base no trabalho feito pelo gestor António Costa Silva, e a versão final deve ser entregue, o mais tardar, até 30 de abril.

A avaliação da Comissão a esses planos dos governos deve demorar, no máximo, dois meses. Mas as conversas com a Comissão Europeia podem já começar. “Há uma negociação informal, isso pode ir ocorrendo” — e já aconteceu, por exemplo, no âmbito do orçamento comunitário, lembra Poiares Maduro.

“Mesmo não estando ainda aprovadas as decisões formais, podem ir ocorrendo negociações informais entre governos e Comissão no pressuposto das propostas que a Comissão fez, para acelerar o ritmo de aprovação logo depois”.

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Com luz verde da Comissão, o dinheiro chega a seguir?

Ter os planos aprovados implica mais do que a avaliação da Comissão Europeia. O Conselho, além das consultas a comités de especialistas, vai ainda pedir ao Comité Económico e Financeiro que dê o seu parecer positivo face ao cumprimento dos objetivos e das metas, algo que deverá acontecer até um mês depois de receber a avaliação preliminar da Comissão.

E alguns casos podem vir a ser mais problemáticos. É que o Conselho Europeu previu um “travão de emergência”, no acordo alcançado em julho, que permite que qualquer estado-membro possa levantar dúvidas sobre um plano de outro país, por ter “sérios desvios” face ao cumprimento previsto das metas e dos objetivos.

Os planos nacionais, que devem conter o planeamento das reformas e do investimento que consideram necessários até 2026, integram não só as metas que se espera atingir, mas também os custos estimados.

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Uma vez aprovados os planos, os Estados-membros podem então requerer pré-financiamentodo pacote de ajuda já em 2021, até 10% do total a que têm direito.

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Mas quanto tempo é que Portugal vai ter de esperar pelas primeiras verbas?

No caso do Fundo de Resiliência, “é muito difícil dizer” quanto tempo vai demorar, diz Poiares Maduro, porque há várias frentes de negociação, com governos, Parlamento Europeu, Comissão e parlamentos nacionais a influenciarem o resultado final.

Mas, relativamente a outros fundos, de menor dimensão, Portugal deve receber “em breve” as primeiras verbas. Foi isso que referiu a presidente da Comissão Europeia, após o encontro este mês com António Costa. Ursula von der Leyen anunciou que Portugal irá receber nos próximos tempos 5,9 mil milhões de euros do programa europeu SURE, de combate ao desemprego provocado pela pandemia. E o Governo adiantou que, dessa verba, espera receber 3 mil milhões de euros já em novembro.

Para esse efeito, a União Europeia já emitiu esta quarta-feira as primeiras tranches de dívida (chamadas de “obrigações sociais” — social bonds, em inglês), no valor de 17 mil milhões de euros, que serão pagas até 2030 e 2040.

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E o dinheiro dos habituais fundos estruturais?

Ao contrário do fundo de recuperação, o quadro financeiro plurianual não precisa de aprovação dos parlamentos nacionais. Mas isto não significa que seja necessariamente mais rápido, porque “tem de haver negociações com cada estado-membro, e a celebração dos acordos de parceria”, recorda Poiares Maduro.

Todo esse processo “vai demorar muito mais meses, na melhor das hipóteses, em meados do próximo ano ou final do próximo ano devem ser celebrados os acordos de parceria com os estados membros e os programas operacionais — foi o que aconteceu no passado”.

Apesar de as negociações entre o Parlamento Europeu e o Conselho terem sido suspensas há cerca de duas semanas, fonte comunitária garante que “não há razão neste momento para haver atrasos”.

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Em todo o caso, a questão do próximo Orçamento não tem tanta urgência como o dinheiro do pacote de apoio à crise. Primeiro, porque, como habitualmente, os prazos para conclusão dos programas comunitários não são coincidentes com as datas fixadas para a sua execução. Ou seja, ainda será executado nos próximos anos o atual quadro comunitário de apoio (2014-2020), que tem dinheiro para gastar até 2023.

Além disso, há ainda que contar com o dinheiro proveniente do REACT-EU (Assistência à Recuperação para a Coesão e os Territórios da Europa), que alarga as medidas de resposta a crises, tendo quase 40 mil milhões de euros para os estados-membros.

Portugal deve beneficiar de 4% desse valor, ou seja, 1,6 mil milhões de euros em subvenções já em 2o21 que acrescem ao atual quadro de apoios comunitários.