Tem circulado nas redes sociais uma publicação que alega que, durante os anos em que esteve sob domínio britânico, a Palestina tinha os seus símbolos nacionais embebidos da identidade israelita. Concretamente, a publicação diz que “a moeda da Palestina Britânica pré-Israel tinha sua moeda em hebraico e sua bandeira com a estrela de David”.

Além desta declaração, a publicação inclui imagens ilustrativas das duas alegações que faz:

  • Em cima, surge a imagem de uma nota de cinco libras palestinianas, supostamente datada de 1927, com setas que destacam os caracteres hebraicos, a referência a Telavive e a expressão “terra de Israel”;
  • Em baixo, surge uma imagem supostamente retirada de um dicionário francês com data de 1939 onde é possível ver um elenco de bandeiras de todo o mundo, incluindo uma suposta bandeira da Palestina composta por duas secções (uma azul e outra branca) com uma estrela de David amarela ao centro.

Contudo, esta publicação induz o leitor em erro, levando-o a considerar que, ainda antes da criação do Estado de Israel (1948), já aquele território tinha uma identidade israelita. Não é verdade — e é necessário analisar com cautela as duas alegações (sobre a bandeira e sobre o dinheiro) para o compreender.

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Em primeiro lugar, impõe-se um breve contexto histórico. As datas associadas aos dois elementos mencionados na imagem (1927 e 1939) enquadram a alegação num período concreto da história do Médio Oriente: entre 1920 e 1948, o território que hoje corresponde a Israel e à Palestina esteve sob o domínio do Reino Unido sob o nome “Mandato Britânico da Palestina”.

A história daquela região, que foi o palco dos célebres relatos bíblicos e é o berço do Judaísmo e do Cristianismo, é longa e complexa. Para o efeito concreto deste fact-check, bastará recuar até à Idade Média, quando o Império Otomano tomou o controlo daquele território. Durante largos séculos, os lugares que hoje correspondem a Israel e à Palestina foram regiões administrativas dos otomanos.

Era justamente sob domínio otomano que aquele território se encontrava quando, no final do século XIX, se começou a desenvolver na Europa o movimento sionista: um movimento político-religioso que dava corpo à vontade do povo judeu (disperso em diáspora há séculos e alvo de duras perseguições um pouco por todo o mundo) de criar um Estado judaico no seu território histórico, com capital em Jerusalém, de onde haviam sido expulsos dois milénios antes. Todavia, aquele território era habitado por povos árabes, o que representava um obstáculo à ambição sionista.

No contexto da derrota do Império Otomano na Primeira Guerra Mundial, os britânicos passaram a controlar o território palestiniano. É deste período que data um documento fundamental para compreender a história contemporânea de Israel e da Palestina, a “Declaração Balfour“. Assinada pelo ministro dos Negócios Estrangeiros britânico, Arthur James Balfour, a declaração mostrava-se favorável às aspirações sionistas e propunha “o estabelecimento na Palestina de um lar nacional para o povo judeu”, mas esse novo Estado não poderia prejudicar os direitos civis e religiosos dos povos que já viviam na Palestina.

A partir de 1922, o Reino Unido passou a controlar a Palestina com legitimidade formal reconhecida pela Sociedade das Nações — com o objetivo de ali criar o Estado judeu. Mais tarde, a perseguição contra os judeus lançada pela Alemanha nazi aumentou significativamente o número de judeus a emigrar para a Palestina britânica, o que levou a uma revolta dos palestinianos contra os britânicos e contra os judeus. Já depois da Segunda Guerra Mundial, a ONU viria a adotar a resolução que ainda hoje está por cumprir: a divisão do território da Palestina em dois Estados, um judeu e outro árabe.

Em maio de 1948, os britânicos saíram daquele território e Israel declarou a independência — e usou a força para expandir o seu território, expulsando centenas de milhares de palestinianos, num conflito que se arrasta até hoje e que ao longo dos últimos 75 anos tem conhecido múltiplos episódios sangrentos.

Israel dos judeus, dos cristãos e dos muçulmanos. A complexa história religiosa de um lugar que nunca teve paz

Vamos, então, às duas alegações da publicação, que surge num contexto em que o conflito entre Israel e o Hamas volta a estar num ponto crítico, depois do ataque de 7 de outubro contra território israelita, por parte do grupo terrorista, que nas primeiras horas fez centenas de vítimas mortais e que, nas semanas seguintes, soma mais de 17 mil mortes, sobretudo do lado palestiniano.

Em primeiro lugar, a bandeira. Em declarações à agência Reuters, o historiador Shay Hazkani, especializado na história contemporânea do Médio Oriente, explicou que a bandeira que surge na fotografia “parece ser uma bandeira não oficial que por vezes aparecia em navios detidos por judeus durante o período do Mandato, quando o nome oficial do país ainda era Palestina”. Por seu turno, também à Reuters, o sociólogo palestiniano Salim Tamari explicou que “durante o Mandato Britânico era usada a Union Jack [bandeira britânica] com a palavra ‘Palestina’ sobreposta”.

Pode ver um exemplar dessa bandeira na página de internet dos Museus Imperiais Britânicos.

Embora a bandeira britânica fosse a oficial, não era a única. O movimento nacional palestiniano, que defendia a identidade árabe, tinha a sua própria bandeira, inspirada na bandeira da Revolta Árabe (o movimento nacionalista árabe contra o Império Otomano), muito semelhante à atual bandeira da Palestina. Por outro lado, os movimentos sionistas e judaicos radicados na Palestina também usavam bandeiras com símbolos judaicos (como aquela que surge no dicionário mencionado na publicação), embora sem qualquer estatuto oficial.

Quanto à imagem da nota de cinco libras palestinianas datada de 1927, também é necessário contexto. A imagem é verdadeira, mas não conta a história toda.

Como explicava em 2014 o jornal israelita Haaretz, a libra palestiniana, conhecida em hebraico como “lira” ou “funt” e em árabe como “junya“, foi introduzida na Palestina em 1927 pelos britânicos para substituir a lira egípcia, que era a moeda aceite no território palestiniano até então, e tinha o seu valor ligado ao da libra britânica. O jornal recorda ainda que as notas das libras palestinianas eram trilingues: as notas eram emitidas tanto em inglês, como em árabe, como em hebraico.

Citada pelo Haaretz, a leiloeira Kedem, que recentemente leiloou vários exemplares de notas de libras palestinianas, muito procuradas por colecionadores, explica que aquela moeda era causa de sentimentos mistos. “Paralelamente à alegria que evocava na comunidade judaica, estas notas motivaram raiva e mágoa entre os árabes, principalmente devido ao uso da língua hebraica, do nome hebraico do país [Israel] e da representação de símbolos e lugares sagrados judaicos nas notas.”

Com o tempo, porém, as antigas notas impostas pelos britânicos, que representavam uma afronta à identidade dos árabes, ganharam um valor histórico. “Existe hoje um interesse nestas notas como parte de uma luta nacional”, disse ao Haaretz o especialista em numismática Mark Kaputkin, sublinhando que todos os materiais com referências à Palestina são hoje de grande interesse de colecionador. “São colecionadas em preparação para o estabelecimento de um Estado palestiniano. É uma espécie de fenómeno ‘retro’ de saudade da Palestina, como um símbolo do que está por vir.”

Conclusão

A publicação é manifestamente falsa em vários aspetos. Por um lado, a imagem que alega mostrar a antiga bandeira da Palestina é simplesmente falsa: a bandeira oficial da Palestina britânica era a Union Jack alterada com a palavra “Palestina”. A bandeira apresentada na publicação era uma bandeira usada por movimentos sionistas na Palestina. Já no que toca à nota de cinco libras, ela é verdadeira, embora a publicação omita dois aspetos fundamentais: a emissão das notas era trilingue (hebraico, árabe e inglês) e as notas com as referências às aspirações sionistas, impostas pelos britânicos, eram na verdade mal vistas pelo povo árabe que ali residia e que já desde o século XIX procurava afirmar a sua identidade árabe, primeiro contra o Império Otomano e depois contra os britânicos. Por fim, a tese subjacente à publicação — a de que, mesmo antes da criação do Estado de Israel, aquele território já tinha uma identidade israelita — é falsa. Apesar de toda a complexidade do processo histórico em torno do território de Israel, o que é certo é que antes da criação do Estado de Israel vivia naquele território um povo árabe com uma identidade diferente da do povo judeu.

Assim, de acordo com o sistema de classificação do Observador, este conteúdo é:

ERRADO

No sistema de classificação do Facebook, este conteúdo é:

FALSO: As principais alegações do conteúdo são factualmente imprecisas. Geralmente, esta opção corresponde às classificações “falso” ou “maioritariamente falso” nos sites de verificadores de factos.

NOTA: este conteúdo foi selecionado pelo Observador no âmbito de uma parceria de fact checking com o Facebook.

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