Circula nas redes sociais uma publicação que alega que foi recentemente divulgado o “contrato secreto” entre a Comissão Europeia e a farmacêutica norte-americana Pfizer para a compra de vacinas contra a Covid-19 — e que esse contrato prova que a Comissão Europeia comprou vacinas com “eficácia desconhecida”, “eventos adversos desconhecidos” e “efeitos a longo prazo desconhecidos”.
A publicação alega ainda que os decisores políticos tinham prometido que as vacinas seriam seguras e eficazes. Numa acusação difusa, lê-se ainda que “todos os genocidas sabiam, exceto a população”. A publicação termina com uma pergunta: “Quem é o conspiracionista agora?”
No entanto, a publicação tem vários problemas.
Em primeiro lugar, a alegação de que só agora foram divulgados os contratos é simplesmente falsa. Em abril de 2021, ainda durante a fase aguda da pandemia da Covid-19, já o Observador publicou um longo especial dando conta dos detalhes dos vários contratos assumidos pela Comissão Europeia com diferentes farmacêuticas para assegurar o abastecimento de vacinas para o espaço comunitário.
Esta contratação esteve desde o início envolvida numa nuvem de polémica. Efetivamente, os contratos da Comissão Europeia com as farmacêuticas AstraZeneca, Pfizer e Moderna foram mantidos em segredo numa primeira fase. Depois, foram divulgados apenas parcialmente — com textos em que uma boa parte das informações mais importantes estava rasurada. Posteriormente, os contratos foram tornados públicos por vários meios de comunicação europeus.
Quanto à alegação de que a Comissão Europeia assinou um contrato sobre vacinas com “eficácia desconhecida”, é necessário compreender o que está efetivamente em causa.
Os contratos assinados por Bruxelas com as farmacêuticas foram objeto de várias críticas porque se percebeu rapidamente que tinham sido “blindados” pelas empresas, de modo a que não pudessem ser responsabilizadas por qualquer efeito negativo da vacina. Os três contratos, que incluíam formulações muito semelhantes, listavam mesmo os exemplos de efeitos negativos: “Morte, ferimentos físicos, lesões mentais ou emocionais, doença, incapacidade, perda ou danos em propriedades, perdas económicas ou interrupções de atividade económica.”
Ou seja: se alguém sofresse um efeito não desejado da vacina e apresentasse alguma queixa, as farmacêuticas não podiam ser civil ou criminalmente responsabilizadas. Em vez disso, a Comissão Europeia assumiu nos contratos que “a administração das vacinas vai, por isso, ser conduzida sob a exclusiva responsabilidade dos Estados-membros participantes”.
Na prática, a indústria farmacêutica precisava de uma proteção legal, já que, apesar de a tecnologia mRNA usada em parte das vacinas para a Covid-19 estar a ser estudada há décadas, as vacinas especificamente produzidas para o vírus SARS-CoV-2 foram desenvolvidas num período de tempo surpreendentemente curto. Em abril de 2020, surgiam as primeiras notícias de testes de uma vacina contra a Covid-19. Em dezembro do mesmo ano, Portugal começou a sua campanha de vacinação contra o coronavírus.
A produção da vacina contra a Covid-19 tornou-se a prioridade número um para a maioria das grandes farmacêuticas do mundo, mas a urgência em começar a vacinação obrigou a aprovar os produtos sem haver resultados de ensaios sobre os efeitos a longo prazo. Por motivos óbvios: só agora será possível começar a perceber se há ou não (e quais são os) efeitos de longo prazo das vacinas.
Por essa razão, apesar de as vacinas terem recebido luz verde científica — e isso não esteve em causa —, a indústria afirmou que precisava de proteger-se numa situação única. Um alto responsável da AstraZeneca chegou mesmo a dizer à Reuters, sem esconder: “Esta é uma situação única e nós, enquanto empresa, simplesmente não podemos assumir o risco no caso de daqui a quatro anos a vacina resultar em efeitos secundários.”
Ainda assim, o que surge na publicação que está a circular nas redes sociais não é exato. A publicação remete para a página 48, parágrafo 4, do contrato com a Pfizer, e alega que há três premissas no documento: “Eficácia desconhecida”, “eventos adversos desconhecidos” e “efeitos a longo prazo desconhecidos”.
O que se lê naquele parágrafo, na verdade, é que os Estados-membros da União Europeia reconhecem “que os efeitos e a eficácia da vacina a longo prazo não são, atualmente, conhecidos e que pode haver efeitos adversos da vacina que não são atualmente conhecidos”.
Quanto à primeira premissa, o que é desconhecido não é a eficácia da vacina, mas a eficácia a longo prazo. Sabia-se que a vacina era eficaz a reduzir a probabilidade de desenvolver doença grave no curto prazo, mas era impossível saber se essa proteção se manteria no longo prazo. Por uma razão simples: isso só se saberá com o próprio decorrer do tempo. Daí que os países tenham vindo a continuar a estudar os efeitos da vacina e a adequar os esquemas vacinais (por exemplo, determinando qual a periodicidade do reforço).
Quanto à segunda premissa, não é dito que são desconhecidos os efeitos adversos da vacina, mas sim que não são conhecidos todos os efeitos adversos. Na verdade, isto é uma informação presente na bula da generalidade dos medicamentos. Se tiver dúvidas, vá à sua gaveta de medicamentos e espreite as bulas de fármacos tão insuspeitos como o paracetamol ou o ibuprofeno: verá que em ambos encontrará, no fim da longa lista de efeitos adversos possíveis, a indicação de que, além de todos aqueles, há “possíveis efeitos secundários” não mencionados no folheto, que devem ser comunicados a um médico, a um farmacêutico e até ao Infarmed.
Relativamente à terceira premissa, é dito que os efeitos da vacina a longo prazo não são conhecidos, pela mesma razão que a eficácia da vacina a longo prazo não é conhecida: ainda não tinha passado tempo suficiente para ser considerado “longo prazo” e para que pudessem ser observados esses efeitos. Por essa razão, o contrato exigia que os estados-membros reconhecessem que ainda não existiam ensaios clínicos de longo prazo.
Conclusão
Não é verdade que tenha sido recentemente divulgado um contrato secreto sobre a compra de vacinas contra a Covid-19 que provava que a sua eficácia é desconhecida, que os efeitos adversos são desconhecidos e que os efeitos a longo prazo são, também, desconhecidos. O contrato em questão está no domínio público há três anos e já foi amplamente escrutinado pela comunicação social desde então. E o que é dito não é bem isso: na verdade, o contrato inclui salvaguardas exigidas pela indústria farmacêutica devido ao facto de ter passado tão pouco tempo entre o desenvolvimento e a comercialização da vacina. O que é dito é que não existe informação sobre a eficácia e os efeitos da vacina a longo prazo — o que é óbvio, uma vez que ainda não tinha passado tempo suficiente para os observar. A publicação é enganadora ao tentar confundir a segurança a curto prazo com a eficácia a longo prazo.
Assim, de acordo com o sistema de classificação do Observador, este conteúdo é:
ENGANADOR
No sistema de classificação do Facebook, este conteúdo é:
PARCIALMENTE FALSO: as alegações dos conteúdos são uma mistura de factos precisos e imprecisos ou a principal alegação é enganadora ou está incompleta.
NOTA: este conteúdo foi selecionado pelo Observador no âmbito de uma parceria de fact checking com o Facebook.