“É falso”, “está a mentir”, “continue com as falsidades”. O debate entre Mariana Mortágua e André Ventura ficou marcado, do início ao fim, pelas acusações mútuas de falta de honestidade, com a líder do Bloco de Esquerda a apontar sucessivamente os “truques” do líder do Chega.
No meio de um debate aceso sobre corrupção e apreensão de rendimentos provenientes de atos ilícitos, Ventura acusou Mortágua de “hipocrisia” por ela própria incumprir a lei. “A Mariana sabe mais sobre isso, porque recebeu três salários ao mesmo tempo sem os declarar“, afirmou sem reservas, e foi mais longe ao denunciar a alegada “porta-giratória” entre a Mariana Mortágua e o grupo Global Media.
A bloquista classificou as alegações do adversário enquanto “falsidades”, e acusou-o de esconder-se atrás das mesmas. Mas será que André Ventura tem fundamento para fazer tal afirmação?
Mortágua, que iniciou a sua atividade como deputada à Assembleia da República em agosto de 2013, foi desde 2015, e até 2022, colunista semanal no JN, detido pelo grupo Global Media Group (GMG). Importa também referir que sempre defendeu e aplicou ao seu caso pessoal o regime de exclusividade enquanto deputada, sendo esta uma das bandeiras do Bloco de Esquerda.
Em março de 2022, vários jornais davam conta de que os recibos emitidos pela parlamentar pela colaboração com aquele jornal não configuravam remuneração de propriedade intelectual — permitida no âmbito da exclusividade parlamentar — mas prestação de serviços em atividades de consultoria, científicas, técnicas e similares. Ventura, na altura deputado único, requereu de imediato a verificação e consequente parecer sobre o regime de exclusividade de que beneficiou a deputada.
A conclusão do parecer elaborado pela Comissão de Transparência e Estatuto dos Deputados foi claro. “A atividade desenvolvida pela senhora deputada Mariana Mortágua no âmbito da sua colaboração com o Jornal de Notícias circunscreveu-se à elaboração da referida coluna semanal de opinião, pelo que não se verifica qualquer violação do regime de exclusividade no exercício do mandato com esse fundamento”, referia o parecer.
Na altura, a deputada bloquista assegurou que a atividade era “objeto de recibo, declaração ao parlamento e declaração fiscal“, informação confirmada pela comissão parlamentar. “No que à componente fiscal diz respeito, conhecendo o EBF [Estatuto dos Benefícios Fiscais], optei pela modalidade fiscalmente mais conservadora e, logo, mais penalizadora para mim, evitando o benefício fiscal decorrente da declaração ao abrigo de direitos de autor para criação literária e artística”, alegou ainda. De referir que nem um mês depois, a 26 de abril de 2022, a crónica no jornal chegou ao fim, com Mortágua a acusar o presidente da GMG, Marco Galinha, de ser o autor da decisão. A direção do jornal esclareceu que a saída decorria de uma “profunda remodelação” da opinião.
O caso mais mediático e com desenvolvimentos mais recentes é, no entanto, o que envolve Mortágua enquanto comentadora num espaço da SIC. Mariana Mortágua acumulou o salário de deputada com a remuneração do programa Linhas Vermelhas, durante cinco meses, entre outubro de 2021 e março de 2022, o que não seria permitido pelo regime de exclusividade. A notícia foi da revista Sábado, à qual a deputada disse desconhecer uma alteração à regra que permite aos deputados receber dinheiro por artigos de opinião, que têm direitos autorais, mas não por participar em programas de comentário televisivo.
O Parlamento acabaria por considerar que, com a devolução do montante auferido nos cinco meses, Mortágua ficava ilibada, já que o entendimento da Comissão de Transparência foi o de que a alteração da regra não era clara, porque havia outros deputados — cujos nomes a comissão não quererá incluir no parecer — a fazê-lo ou a adotar regras diferentes para a mesma situação. O próprio PSD recuou na intenção de exigir a devolução de retroativos à deputada e aos restantes parlamentares em situação similar.
Em abril de 2023, Mariana Mortágua foi constituída arguida num processo cujos queixosos eram um candidato do Chega e um advogado condenado por burla. O Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC) arquivou o caso, no qual a deputada do BE era acusada de violar o regime de exclusividade. “Decide-se julgar totalmente improcedentes os requerimentos apresentados pelos assistentes e, consequentemente, não pronunciar a arguida pela prática de um crime de peculato (…) e pela prática de um crime de recebimento indevido de vantagem”, lia-se na decisão instrutória.
Conclusão
Após a análise dos dois casos de alegadas brechas na exclusividade da bloquista, fica claro que “não recebeu “três salários” em simultâneo “sem os declarar”, mas sim duas colaborações com remuneração com origem em atividades públicas e declaradas. No primeiro caso, da coluna de opinião no JN, o Parlamento foi claro ao excluir quebra de exclusividade. No segundo caso, não só a Assembleia da República esclareceu a alteração no regimento parlamentar que gerou dúvidas de interpretação em relação à participação em espaços de comentário televisivo, como uma decisão judicial validou a improcedência das acusações.
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