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Demorou, demorou demasiado, revelou fissuras que não deviam existir, mas chegou-se a bom porto: os aliados ocidentais vão apoiar a Ucrânia enviando os tanques de que esta tanto necessita. Alguns países lideraram neste caminho, alguns países bem pequenos. Outros continuam sem dizer o que vão fazer — e entre esses está Portugal, onde a espuma dos dias conta sempre mais do que o empenhamento na luta pela liberdade da Europa. |
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Primeiro saiu uma pequena notícia, discreta, de que Portugal preparava o envio de quatro tanques Leopard 2 para a Ucrânia. Foi na manhã de quarta-feira. Nessa mesma manhã o ministro dos Negócios Estrangeiros (e antigo ministro da Defesa), João Gomes Cravinho, confirmou (em declarações à SIC Notícias) que Portugal ia mesmo enviar esses carros de combate. Confirmou e depois desconfirmou: coube ao seu gabinete dar o dito por não dito, alegando que se tratou de um lapso. No mesmo dia a ministra da Defesa (recordatório para quem não tem dado por ela: chama-se Helena Carreiras) veio acrescentar aquelas frases redondas – “estão a ser avaliadas as diferentes modalidades” – que permitem ir dizendo que nenhuma decisão está tomada. |
Enquanto assistíamos a este espectáculo não muito edificante o país discutia, primeiro, o caso da atriz transgénero que invadiu o palco do São Luiz, depois o custo de outro palco, aquele que será construído para as Jornadas Mundiais da Juventude. Não tive forma de fugir a estes dois temas no Contra-corrente (aqui e aqui), mas a verdade é que neste momento o que mais me preocupa, e aquilo a que mais atenção dedico, continua a ser a guerra da Ucrânia. Por isso não posso deixar de considerar extraordinário que não tenhamos ouvido nenhum dos principais responsáveis políticos portugueses dizer fosse o que fosse de significativo sobre o debate que dividiu a Europa nas últimas semanas, o de saber se se deviam ou não enviar os famosos tanques Leopard 2 para a frente de combate. Disse o Presidente alguma coisa? Não dei por isso. Conhece-se a opinião do primeiro-ministro? Eu desconheço. Houve alguma chamada de atenção do líder da oposição? Se houve foi em surdina. |
Sinceramente não sei até que ponto há em Portugal noção de que a guerra na Ucrânia também é a nossa guerra, só que são os ucranianos que estão a morrer por nós, que se estão a sacrificar para que não regressemos a um tempo em que eram os mais fortes e os seus exércitos que determinavam as fronteiras e a independência ou submissão dos povos. Também não sei até que ponto dos nossos incuráveis optimistas estão conscientes de que a guerra que decorre no outro lado da Europa é dura, que nem tudo são vitórias ucranianas, que há muitos sinais até de que as coisas podem complicar-se em breve, sobretudo de que o conflito pode durar, durar, durar. |
Finalmente também não sei se os que se dedicam unicamente à política umbiguista de nada ver para além de Badajoz têm noção de que o debate que cruzou a Europa a propósito do envio de tanques para a Ucrânia deixou marcas e sinalizou que, nas alianças de que fazemos parte – a NATO primeiro, mas também a União Europeia – há mais divisões do que supúnhamos. |
Sempre defendi que, em tempos difíceis como os que vivemos, se deve começar por falar verdade aos eleitores e prepará-los para o pior, mesmo que esperemos o melhor. Tal como sempre defendi que, em matéria de relações internacionais, não podemos estar sempre na posição de quem estende a mão (vai algum país da NATO ceder-nos material mais barato? será que já podemos ir ao banco da União Europeia?), antes fazer a pedagogia de que também temos obrigações para com os nossos aliados e parceiros. Nunca foi regra, continua a não ser regra. |
Neste quadro era mesmo importante que os responsáveis nos dissessem se estão com os defendem que a ajuda militar à Ucrânia deve continuar e deve atender às crescentes necessidades de Kiev – como eu defendo –, ou se, pelo contrário, alinham com os que temem a chantagem russa e estarão até disponíveis para pressionar o presidente Zelensky no sentido de ele aceitar uma paz falsa e precária. Até porque há sinais que me preocuparam e preocupam. Não me esqueço, por exemplo, de como António Costa falou da necessidade de “não criar falsas expectativas” sobre a adesão da Ucrânia à União Europeia, numa lamentável entrevista do Financial Times. Também continuo à espera de saber quando é que Marcelo Rebelo de Sousa, tão lesto a deslocar-se para ver jogos de futebol, acha oportuno visitar Kiev. Parece que não será ainda na primeira metade deste ano. |
Tudo isto me inquieta porque se continuo a ver determinação em Londres — o Reino Unido foi o primeiro país a anunciar o envio de carros de combate pesados –, se a presença de Joe Biden na Casa Branca me descansa — foi ele que acabou por desbloquear a posição alemã –, não me posso esquecer que Berlim hesitou demasiado tempo e nem sempre por boas razões (como admito puderem ser as que remetem para a memória ainda bem presente do papel que a Alemanha teve na II Guerra). É que, como escreveu justamente Miguel Monjardino, o chanceler “Scholz, parte do SPD e a indústria alemã não estão verdadeiramente interessados numa vitória ucraniana ou na derrota clara de Putin. Do seu ponto de vista, o risco para a Alemanha seria muito grande e as consequências demasiado imprevisíveis”. |
Em Portugal há quem torça pela vitória da Rússia (nomeadamente alguns generais que comentam nas nossas televisões) mas desconheço se há quem, no activo e com mais responsabilidades, mais modestamente não esteja interessado numa vitória ucraniana. Quanto mais não seja para (egoisticamente) não ter um dia de lidar com a presença na União Europeia de mais um estado, e logo um estado bem grande e bem pobre, candidato aos fundos europeus. Num país viciado em fundos como Portugal, numa terra onde os políticos pensam que só com muitos fundos escaparemos ao atraso (é precisamente o contrário), uma vitória da Ucrânia pode ser mesmo um embaraço. |
Por isso, e também porque é da natureza de quem nos governa, faz-se o habitual: tenta-se passar despercebido, arrasta-se os pés, fica-se à espera de ver o que outros pensam e decidem para também nós podermos ter posição e uma decisão. Afinal de contas, quem sabe onde fica Bakhmut? |
Os Leopard são importantes, mas não chegam para vencer a guerra |
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Esta semana, no Contra-corrente Por fim libertaram os Leopard. Farão a diferença? defendi, com Helena Matos e o major-general Isidro Morais Pereira, como estes carros de combate podem ser importantes, mas não suficientes, como de resto se explica também neste especial do Observador sobre as vantagens e inconvenientes dos tanques Leopard-2. Os nossos argumentos estiveram em linha com os de Bruno Cardoso Reis: “Haverá quem acredite na paz a qualquer preço. Mas quem o defende não teria armas para derrotar Hitler ou dissuadir Estaline. Nada do que se tem passado me convence que Putin percebe ou respeita outra linguagem que não a da força.” |
De entre o muito que li e consultei no quadro deste programa, gostava de vos deixar aqui algumas referências: |
- O editorial da mais recente edição da The Economist, NATO members are right to send tanks to Ukraine, com uma visão crítica de como os aliados andaram a discutir “envia-não-envia” tanques na praça pública: “Mr Scholz’s claim to European leadership was bolstered just after the invasion, when he declared a Zeitenwende, a turning-point in Germany’s strategic outlook. Yet it is Mr Biden who emerges looking the statesman, for having yielded to preserve transatlantic unity when so much was at stake. Mr Scholz, by contrast, endangered it, and squandered Germany’s diplomatic gains by approving Leopards so grudgingly”.
- Igualmente crítica da posição alemã esta análise do Wall Street Journal, Tanks but No Thanks to Olaf Scholz’s Turning Point, onde se desenvolve aideia de que “The German chancellor promised a strategic overhaul. He may not be the leader to deliver one”.
- Muito interessante o ponto de vista desenvolvido na The Atlantic em Tanks for Ukraine Have Shifted the Balance of Power in Europe, isto porque aí se argumenta que acabaram por ser os países mais pequenos, nomeadamente os bálticos e a Polónia, mas sobretudo os nórdicos que acabaram por forçar a NATO a enviar para Kiev os veículos de que a Ucrânia necessita. Mais: “these new drivers of European security strategy are unlikely to ease up. They are among Europe’s richest and fastest-growing economies and have some of the continent’s best-equipped militaries. Plus, they will always have Russia close by, and that reality alone will keep them focused.”
- Ainda sobre a diferença que estas armas podem fazer nas próximas batalhas há que ler, no New York Times, Western Tanks Are Coming to Ukraine, but Will They Be Enough?, ter noção que até eles chegarem a Ucrânia vai ter de resistir o melhor que pode (como explica o Wall Street Journal em Russia Seeks Gains in Ukraine Before Western Tanks Arrive) e não esquecer os riscos, nomeadamente na perspectiva alemã exposta pela Spiegel em Germany’s Leopard Tanks Are a Game Changer with Significant Risks. Tudo isto mesmo sabendo que os russos terão sempre dificuldades em retomar uma ofensiva eficaz, como se explica no Politico (Manpower will be crucial for Russia to mount a spring offensive).
- Relativamente à forma como se chegou à decisão final de enviar os tanques este artigo do New York Times, How Biden Reluctantly Agreed to Send Tanks to Ukraine, é muito revelador. Conta não só os bastidores da decisão da Casa Branca como revela as reticências levantadas pelos militares e pelo Pentágono. É que apesar de se saber como poderão ser importantes para a Ucrânia, é bom não esquecer aquilo que Mark Galeotti, autor de vários livros importantes sobre a Rússia de Putin, explicou na Spectator em Tank warfare: why the West is worried about arming Ukraine: “They are still the best weapon for breaking a line in the inevitable spring offensive. More to the point, Kyiv believes that if it can build a brigade of modern western tanks and infantry fighting vehicles, it would have a spearhead able to punch through Russian defences and pose a serious threat to the strategic land corridor to Crimea.”
- Mais: mesmo sabendo que foi a Rússia que escolheu fazer esta guerra e que ela se trava apenas nos campos sangrentos da Ucrânia, Martin Keetle não exagera quando escreve no The Guardian que Sending tanks to Ukraine makes one thing clear: this is now a western war against Russia. Na sua perspectiva, sendo claro que a atitude do Ocidente endureceu relativamente a este conflito e que há agora mais empenhamento numa vitória ucraniana, mesmo assim “the uncertainty about numbers and logistics in the tank deployment is not simply down to the need for secrecy. It also reflects continuing political ambivalences”.
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Leituras complementares (e não só) |
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Para além destes texto há ainda um conjunto de outros que recomendo a quem quiser continuar a seguir – e a perceber melhor – o conflito que definirá a Europa das próximas décadas. Ei-las: |
- Um jornalista do Telegraph de Londres esteve em Mariupol numa comitiva organizada pelos russos para mostrarem como estão a reconstruir a cidade, mas regressou de lá com histórias arrepiantes que conta em Visiting Russia’s worst war crime. Neste artigo podemos entrar no que resta do teatro onde morreu um número ainda indeterminado de ucranianos que aí se abrigavam, mas também visitar o cemitério: “At the end of the cemetery thousands of caskets with unidentified bodies now lie in newly dug trenches on the hill overlooking the city and the calm Azov Sea. Each trench contains around 25 civilian bodies, and every casket marked by a numbered, wooden sign. One number – one life. Early in December the graves numbered close to 4,000 in this location, but satellite images suggest there are almost 10,000 new graves.”
- A revista francesa L’Express publicou um dossier muito interessante que abre com um texto revelador: Derrière la guerre en Ukraine, le naufrage moral de la Russie. O ponto de partida foi tentar perceber como é que o país de Dostoïevski e Tolstoï pode cair tão baixo.
- Para quem aprecia textos provocadores, mas inteligentes e bem argumentados, em Bernard-Henri Lévy é leitura obrigatória e o título da sua mais recente coluna no Wall Street Journal é todo um programa capaz de indignar muitos dos nossos comentadores “bem pensantes”: Ukraine Belongs in NATO. Nele se recorda que, depois do que se está a passar, até “Henry Kissinger now says the idea of a neutral Kyiv is ‘no longer meaningful.’”
- Muitos julgarão que tudo melhoria se Putin fosse derrubado, mas isso não é certo, bem pelo contrário, como argumenta Mikhail Zygar, autor de obras sobre quem é quem no Kremlin, e no New York Times explica como o chefe do grupo Wagner, Yevgeny Prigozhin, é The Man Who May Challenge Putin for Power. Aterrador no mínimo.
- E para quem quiser perceber a forma atroz como este grupo trata os soldados que foi recrutar às prisões russas vale a pena ouvir o último episódio do podcast Battleground: Ukraine, Leopards are coming. Nele conversa-se com um velho e experiente repórter de guerra, Julius Strauss, que esteve recentemente perto da linha da frente em Bakhmut. O relato é muito duro, chega a dar a volta ao estômago, mas mesmo assim recomendo. Strauss também escreveu na sua newsletter sobre o que viu nessas terras devastadas.
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O que a Geografia ajuda a explicar |
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Aqui há uns anos li, ainda antes de ser traduzido para português, o livro de Tim Marshall Os Prisioneiros da Geografia. Antigo jornalista com uma vasta experiência em teatros de guerra, Marshall socorria-se de dez mapas para mostrar como muitos dos conflitos da actualidade têm por vezes mais a ver com circunstâncias geográficas do que com agendas ideológicas ou alinhamentos geoestratégicos. Foi por isso com especial interesse que comecei a ler A Vingança da Geografia, até porque já conhecia o seu autor, Robert D. Kaplan, também jornalista, de outras obras, nomeadamente de um livro que li antes de ter ido a Sarajevo durante a guerra nos Balcãs (Balkan Ghosts: A Journey Through History). |
Devo dizer que este A Vingança da Geografia tem outra densidade quando o comparamos com Os Prisioneiros da Geografia e que, no que toca ao actual conflito na Ucrânia, nos oferece pistas de interpretação bem interessantes sobre a natureza da Rússia e do império que construiu desde que Ivan IV, “O Terrível”, iniciou a sua expansão a partir dos limites mais estreitos da Moscóvia. O regime Putin não está apenas obcecado com o passado da Rússia, está também limitado pela sua geografia. Por um lado, pela sua posição geográfica, “a Ucrânia é o estado axial que, por si só, transforma a Rússia”. Por outro não podemos esquecer que “enquanto outros impérios nascem, se expandem e caem – e não se volta a ouvir falar deles –, o Império Russo expandiu-se, caiu e renasceu várias vezes”. |
Ora, recorda também Kaplan, “quando a União Soviética foi oficialmente desmantelada, a Rússia estava reduzida à sua menor dimensão desde antes do reinado de Catarina, A Grande”, pelo que, olhando para a sua geografia e também para a geografia dos seus vizinhos, entendemos melhor (mas não justificamos) tanto a persistente autocracia como as ameaças que ela constitui para quem, da bacia do Dniepre à fronteira dos Himalaias, passando pelo sempre ameaçador Cáucaso, está a construir identidades nacionais que sempre lhe haviam sido negadas. |
Para variar, uma exposição |
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Conheço José Pedro Croft desde a adolescência, fui sempre acompanhando o seu trabalho, mais proximamente nos anos mais recentes, onde nos reencontrámos, muito pela mão da minha mulher. Cada vez que inaugura uma nova exposição ou cada vez que o visito no atelier – por coincidência mesmo ao lado de onde o Observador agora se instalou – fico sempre surpreendido porque há sempre qualquer coisa de novo e de desafiante no que vai fazendo. Isso voltou a acontecer esta quinta-feira, quando estive na abertura da sua mais recente exposição, “Et sic in infinitum” (“E assim até ao infinito”, se assim posso traduzir), que abriu na Fundação Arpad Szenes — Vieira da Silva, em Lisboa. Comissariada por Sérgio Mah mostra sobretudo obras dos dois últimos anos – desenhos, gravuras e esculturas de parede – e explora uma forma que era pouco habitual nos seus trabalhos anteriores, o círculo. Como disse Sérgio Mah a Isabel Salema, “a força [da obra de Croft] reside na migração, no ensaio, na alternância, na refutação” e isso percebe-se mal subimos o primeiro lanço de escadas e, ao lado de um desenho novo, está uma escultura do tempo em que trabalhava sobretudo a pedra, uma escultura que também explora, desconstrói e constrói, as formas circulares. Não é por ser seu amigo que aqui deixo esta nota e a recomendação: passem por lá, vale a pena. |
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José Manuel Fernandes, publisher do do Observador, é jornalista desde 1976 [ver o perfil completo]. |
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