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Saúde mental: quantos anos até acabarmos com o estigma? |
A pandemia de Covid-19 destapou o tema da saúde mental, trouxe-o para a ordem do dia e, a partir daí, passámos a falar do assunto como nunca tínhamos falado antes? Certo. |
Desde então, começámos a assumir com mais naturalidade alguns dos nossos problemas e desafios nesse capítulo (diagnosticados ou não), assim como os das pessoas que nos são próximas? Mais ou menos. |
E esse caminho, que começou a ser trilhado por necessidade, levará a que, a médio ou longo prazo, doenças como esquizofrenia, depressão major ou perturbação bipolar deixem de ser estigmatizadas? Errado. |
Pior que isso: o estigma não recai exatamente sobre as doenças, mas sobre os doentes e as suas famílias. E esses sentem-no na pele a toda a hora. Quer pelos outros, quer por si próprios. |
“Talvez daqui a uns bons anos as coisas mude”, diz o médico psiquiatra Miguel Xavier. “As gerações mais novas são muito avessas a preconceitos e isso vai-se notando à medida que vão chegando à universidade.” O Coordenador Nacional das Políticas de Saúde Mental, tuteladas pelo Ministério da Saúde, sabe do que fala. Professor Catedrático de Psiquiatria e Saúde Mental e presidente do Conselho Científico da Nova Medical School (a Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa), Miguel Xavier está habituado a falar com jovens estudantes de Medicina e reconhece-lhes o reflexo da vontade de mudança que uma franja da sociedade vai mostrando. |
Mas o caminho é longo. E o assistente graduado sénior de psiquiatria do Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental também o admite, olhando justamente para o mesmo exemplo. “Há mudança de atitudes mas é só quando chegam ao quinto ano e começam a lidar com doentes de psiquiatria que os alunos alteram mesmo a forma de pensar e largam algum estigma.” |
A palavra é forte e continuará presente no léxico da saúde mental por muito tempo. No dicionário online Priberam, “estigma” é descrito como uma “cicatriz perdurável” e a expressão marcante assenta como uma luva a todos os vieses que nos deturpam a forma de encarar estas questões. |
A pandemia, reconhecem os especialistas, ajudou a relativizar problemas como insónias, burnout, depressão ou perturbações de ansiedade, que tantas pessoas sentiram durante os períodos de confinamento. Mas os outros diagnósticos, mais graves, esses continuam a ser limitados pelo preconceito. Ou, por outras palavras, continuamos a olhar de lado para as pessoas com doença mental grave e isso não vai lá com pandemias ou confinamentos. Ou sequer com campanhas de sensibilização. |
“A maneira mais eficaz de combater o estigma da doença mental grave é tratá-la no mesmo sítio que se tratam as outras: nos hospitais gerais, nos centos de saúde e nas comunidades.” Miguel Xavier é peremptório na defesa desta ideia e, na conversa que tivemos ao telefone sobre o tema, reforçou-o várias vezes. “Só com a mudança no modelo de prestação de cuidados de saúde mental é que contribuímos para a mudança na mentalidade das pessoas.” |
O decreto-lei 113/2021, de 14 de dezembro, que institui a criação de equipas comunitárias de saúde mental, foi um avanço grande na mudança de paradigma em Portugal e reforça um caminho que começou no século XIX, com a noção de “alienados” em instituições onde os doentes mentais eram encarcerados e passou pela criação de hospitais psiquiátricos, já no século passado, e depois pelos serviços de psiquiatria nos hospitais centrais. |
Portugal chegou tarde a um patamar que boa parte da Europa ocidental já tinha atingido, levando para os cuidados de saúde primários os tratamentos a doentes mentais, mas o medo e o desconhecimento – que muitas vezes associam a violência à doença mental – continuam a deixar uma marca forte na forma como olhamos para o tema. |
No Mental, a secção do Observador dedicada à Saúde Mental, publicámos recentemente uma reportagem que espelha bem esta realidade. É a história da Equipa Comunitária de Saúde Mental do Centro Hospitalar do Médio Tejo, criada em 2021, uma das quarenta que, até 2025, irá preencher a malha do território nacional com grupos multidisciplinares de psiquiatras, psicólogos, enfermeiros, assistentes sociais e outros profissionais que, além de tratamento, levam a casa dos doentes e familiares uma “vacina” importante contra o preconceito. |
Ainda falta bastante, mas é muito por aqui que podemos combater o estigma contra as doenças mentais graves — e os doentes e familiares que lidam com elas. Com uma ajuda também da comunicação social. Nós estamos a fazer a nossa parte no Mental. |