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Quando, em meados de dezembro do ano passado, Lisboa acordou debaixo de água como resultado de fortes chuvas que provocaram graves inundações em grande parte da zona ribeirinha da cidade e levaram à morte de uma pessoa, o presidente da câmara da capital, Carlos Moedas, apressou-se a apontar o dedo às alterações climáticas. “São as mudanças climáticas, temos de lutar todos juntos. Não podemos politizar esta matéria”, disse Moedas. No mesmo sentido, o Presidente da República classificou como “uma realidade nova” as condições meteorológicas que motivaram as chuvas. |
Contudo, já nessa altura, alguns especialistas torciam o nariz a esta atribuição imediata da culpa da tragédia, por parte de decisores políticos, às alterações climáticas. |
Ao Observador, logo na semana das cheias, o climatologista Mário Marques apontava um conjunto de razões muito mais fortes: a “grande ocupação do território de edificado habitacional e industrial”, a entubação de linhas de águas, uma “falta de ordenamento do território e uma falta de respeito da rede hidrográfica que existia”, uma “ocupação desmesurada” do território e “uma impermeabilização dos solos”. Tudo isto “aumentou de forma drástica a vulnerabilidade das pessoas”. São, sobretudo, razões que resultam de decisões políticas — e não das alterações climáticas. |
O próprio presidente do IPMA, Miguel Miranda, deixou críticas a Carlos Moedas por apontar imediatamente o dedo às alterações climáticas, antes de pensar nas decisões políticas associadas aos impactos dos fenómenos meteorológicos: “Se nós dizemos que é um problema da mudança climática para justificarmos a nós próprios, não fazemos algumas intervenções que são necessárias, então não me parece muito boa estratégia.” |
Porém, é certo que o clima está a mudar por ação do homem. A comunidade científica é praticamente unânime em considerar que, atualmente, o planeta Terra já se encontra cerca de 1,1ºC mais quente do que estava no final do século XIX, período usado como referência para a era pré-industrial. Por essa razão, os países do mundo, reunidos em Paris em 2015 sob os auspícios da ONU, acordaram procurar limitar o aquecimento global até ao final deste século em 1,5ºC em relação aos níveis pré-industriais, assumindo que, no pior dos cenários, este aquecimento não pode superar os 2ºC. |
É importante limitar o aquecimento global porque — e isto também é unânime entre a comunidade científica — as alterações climáticas têm consequências trágicas para o planeta. O aquecimento global está diretamente associado à subida do nível das águas do mar, ao aumento da frequência de determinados fenómenos meteorológicos extremos e poderá até deixar várias partes do mundo simplesmente inabitáveis para os humanos, criando milhões de potenciais refugiados climáticos. Mas há uma pergunta que subsiste: como podemos calcular este impacto? |
Nos últimos anos, perante tragédias e desastres naturais, surge a questão inevitável: até que ponto este acontecimento concreto pode ser atribuído às alterações climáticas? Que papel teve o aquecimento global na facilitação deste fenómeno? E que outros fatores podem ter contribuído? |
Para muitos decisores políticos, as alterações climáticas são frequentemente o “bode expiatório” preferido, diz ao Observador o climatologista Carlos da Câmara, professor da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. Mas é preciso fazer contas difíceis para poder chegar a conclusões sérias sobre o impacto das alterações climáticas nos fenómenos meteorológicos concretos. |
E como se fazem essas contas? Ao longo das últimas duas décadas, tem vindo a desenvolver-se um novo campo de estudos científicos dedicado justamente a esse processo: a ciência da atribuição, que é o tema principal do artigo em destaque nesta newsletter. |
Para os cientistas que se dedicam a este campo de investigação, que são poucos (e em grande medida ainda voluntários), o grande desafio passa pela simulação de vários mundos diferentes através de modelos computacionais físico-matemáticos alimentados com os dados do mundo em que vivemos. É através da comparação destas simulações, feitas com e sem a emissão de gases com efeito de estufa, com e sem os aumentos de temperatura associados às alterações climáticas, e por aí fora, que os investigadores conseguem chegar a conclusões como a que foi feita em relação ao incêndio devastador de Pedrógão Grande, em 2017: sabemos hoje que o aquecimento global tornou uma onda de calor como a que se registou naquele ano em Portugal dez vezes mais provável do que seria num mundo sem alterações climáticas provocadas pelo ser humano. |
Aos decisores políticos cabe usar esta informação para determinar os investimentos adequados no que toca à adaptação dos territórios aos efeitos inevitáveis das alterações climáticas — e não, defendem os cientistas, usar as alterações climáticas como “bode expiatório” para os impactos dos desastres naturais. |
Mundo longe de estar preparado para o impacto das alterações climáticas |
Se é verdade que o aumento da probabilidade e da frequência de determinados fenómenos meteorológicos pode ser atribuído diretamente às alterações climáticas, os impactos mais ou menos devastadores desses fenómenos meteorológicos dependem exclusivamente do modo como as comunidades humanas estiverem, ou não, preparadas para lidar com esses fenómenos — e o exemplo das recentes inundações em Lisboa ajuda a compreender como a gravidade das cheias se deveu mais à falta de preparação da cidade para lidar com fenómenos extremos do que propriamente à chuva. |
Esta semana, porém, a comunidade científica internacional deixou um aviso: uma grande parte do planeta não está preparada para enfrentar desastres naturais. |
Um relatório publicado esta terça-feira pelo Conselho Científico Internacional — organização que reúne academias e investigadores de todo o mundo — conclui que é “muito improvável” que os vários países do planeta sejam capazes de cumprir os objetivos que foram traçados em 2015 com o objetivo de reduzir o número de vítimas e a dimensão dos danos dos desastres climáticos, como terramotos, cheias ou tempestades, que são intensificados pelo aquecimento global. |
Um dos aspetos centrais do relatório prende-se com o modo como estão a ser alocados os recursos enviados pelos países mais desenvolvidos para os países mais pobres: apenas 5,2% da ajuda dada aos países em desenvolvimento entre 2011 e 2022 no âmbito dos desastres naturais foi alocada à redução de riscos, tendo o restante valor sido alocado a operações de socorro e de reconstrução pós-desastre. |