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Não foi fácil acordar na última quinta-feira, ler os jornais e perceber que a Rússia tinha passado das palavras aos atos e invadido a Ucrânia. Não pode dizer-se que tenha sido uma surpresa. A tensão entre os dois países arrasta-se há três décadas, o conflito agudizou-se em 2014 com a anexação da Crimeia pela Rússia, não serenou verdadeiramente apesar dos acordos de paz assinados desde então e voltou a intensificar-se com as múltiplas operações militares conduzidas por Moscovo junto da fronteira com a Ucrânia ao longo de 2021. O mundo entrou em 2022 com a ameaça de uma invasão efetiva e, com o reconhecimento formal da independência das regiões separatistas de Donetsk e Lugansk, no leste da Ucrânia, Vladimir Putin abriu a porta a uma guerra que ganhou contornos bem reais na semana passada. |
Ao fim de várias décadas de paz, a guerra voltou à Europa. O Observador está a seguir o desenrolar do conflito ao minuto — e a trazer aos leitores as reportagens no terreno captadas pelo olhar atento dos enviados especiais à Ucrânia, Cátia Bruno e João Porfírio. |
Num contexto como este, pode parecer despropositado falar do ambiente e das alterações climáticas. Será, certamente, a menor das preocupações atuais das centenas de milhares de ucranianos que fogem do seu país para salvar a vida, ou dos muitos milhares que, por serem homens entre os 18 e os 60 anos, se vêem obrigados a ficar e a lutar pela defesa do território ucraniano. Será também a última das preocupações do regime russo na ofensiva militar contra a Ucrânia. |
No que toca à discussão pública em torno das alterações climáticas, a guerra na Ucrânia terá, em 2022, o mesmo efeito que a pandemia da Covid-19 teve: novamente, este debate será relegado para um plano secundário. O secretário-geral da ONU já classificou o combate às alterações climáticas como “a luta das nossas vidas”. Em Portugal, António Costa já afirmou que “as alterações climáticas constituem o mais importante desafio político, social e económico do século XXI”. Contudo, esta suposta prioridade número um do planeta empalidece — naturalmente — sempre que confrontada com qualquer situação de urgência. Uma guerra, uma pandemia ou uma crise económica. |
Há vários modos de olhar para esta aparente contradição entre as declarações políticas sobre a urgência do combate às alterações climáticas e o grau de urgência que lhes é realmente atribuído. |
Há uma primeira explicação, óbvia: a de que existem, de facto, prioridades mais urgentes do que as alterações climáticas. Urgente não significa, necessariamente, mais importante — apenas que os seus impactos se vão sentir no imediato, o que obriga os governos a agir sem contemplações. O caso da pandemia é paradigmático: embora saibamos que as alterações climáticas vão matar mais pessoas que a Covid-19, também sabemos que esses impactos se vão fazer sentir a longo prazo, nas gerações futuras, e não dentro de horas, dias ou semanas. O mesmo podemos dizer sobre uma guerra como a que por estes dias eclodiu entre a Rússia e a Ucrânia. Isto significa que é importante agir para combater as alterações climáticas, mas é mais urgente lidar com uma série de problemas do imediato. |
A esta explicação primordial é necessário acrescentar outros fatores. Um deles prende-se com o grau de identificação dos cidadãos com o problema das alterações climáticas — e com o modo como vários fatores influenciam essa perceção. Para muitas pessoas, as alterações climáticas não são propriamente uma preocupação a que os decisores políticos devam atribuir a maior das prioridades. O principal fator a influenciar essa preocupação é o estado da economia, de acordo com o investigador norte-americano Lyle Scruggs, que estudou estas relações e que falou ao Observador sobre o tema. “A preocupação ambiental está inversamente relacionada com a saúde da economia”, disse. “À medida que o desemprego aumenta, as pessoas dão menos prioridade à proteção ambiental.” |
Isto explica que a preocupação dos cidadãos com as alterações climáticas tenha caído a pique nos anos da grande crise económica, após 2008, e que agora, durante a pandemia da Covid-19, tenha voltado a registar uma redução, de acordo com os inquéritos de opinião estudados pela equipa de Scruggs. |
A perceção pública sobre a real urgência do combate às alterações climáticas leva-nos a um outro fator crucial para entender o fenómeno: a pouca duração dos ciclos eleitorais. Numa democracia organizada em ciclos eleitorais de quatro ou cinco anos, os decisores políticos que buscam a reeleição necessitam de tomar medidas populares entre os eleitores que vão votar nas eleições seguintes — e este contexto é muito pouco amigo de decisões políticas com impacto positivo de longo prazo, mas impopulares no imediato. |
Todos estes fatores ajudam a ler um exemplo recente em Portugal: a descida do Imposto sobre os Produtos Petrolíferos, decretada pelo Governo de modo excecional para reduzir a fatura dos portugueses na bomba de gasolina. Trata-se de um imposto de índole ambiental, com os objetivos simultâneos de reduzir o incentivo ao consumo de combustíveis fósseis e de financiar parte da ação climática em Portugal. Todavia, perante uma situação de urgência económica, o Governo não hesitou em avançar com uma medida menos amiga do ambiente, mas mais útil para combater a situação no imediato. |
Para já, apesar de a ONU insistir que a luta contra as alterações climáticas é um desígnio primordial para a humanidade, é certo que a trágica guerra da Rússia contra a Ucrânia assumirá o protagonismo do debate público global nos próximos meses ou anos. Além dos elevados custos humanos que a guerra já começou a ter, o conflito armado deixará o planeta também com uma pesada fatura ambiental por pagar. Como disse ao Observador o tenente-general Richard Nugee, autor das bases da política ambiental do Ministério da Defesa do Reino Unido: “Há todo o tipo de motivos para evitar conflitos armados. Os efeitos da guerra no clima são mais um desses motivos.” |
Quase metade da humanidade “muito vulnerável” |
A notícia passou praticamente despercebida devido à guerra na Ucrânia, mas o IPCC (Painel Intergovernamental sobre as Alterações Climáticas, organismo científico da ONU) divulgou na segunda-feira a segunda parte do seu mais recente relatório global sobre o estado do clima terrestre, o mais importante documento orientador da política climática global. A primeira parte, divulgada em agosto do ano passado, já tinha representado um último aviso da comunidade científica aos decisores políticos, que se preparavam para a decisiva COP 26, em Glasgow. Agora, a segunda parte do documento revela que quase metade dos habitantes da Terra estão numa situação “muito vulnerável” devido às alterações climáticas. |
São entre 3,3 e 3,6 mil milhões de pessoas nesta situação. Além disso, os cientistas deste organismo estimam que entre 3% e 14% das espécies terrestres estejam ameaçadas de extinção, mesmo que o aquecimento global do planeta até ao final deste século se limite aos 1,5ºC declarados no Acordo de Paris. |
O novo relatório tem outros dados preocupantes. Até 2050, cerca de mil milhões de humanos poderão estar a viver em zonas costeiras ameaçadas pela subida do nível médio das águas do mar. Já na região mediterrânica, a produção agrícola poderá cair em cerca de 17% até 2050 se o caminho atual se mantiver. Ainda assim, apesar de vários dos impactos das alterações climáticas já serem classificados como “irreversíveis”, os cientistas que aconselham a ONU garantem que ainda é possível evitar alguns dos piores cenários se as emissões de gases com efeito de estufa forem significativamente reduzidas o mais rapidamente possível. |