No debate que reuniu os líderes dos partidos com assento parlamentar, o porta-voz do Livre, Rui Tavares enunciou uma evidência: que o panorama político-partidário está hoje dividido em 3 blocos, isto é, o da extrema-direita, o da direita democrática e o da esquerda. Não está enganado. A propósito dessa intervenção, lembrei-me de um desabafo que fiz a 11 de Novembro de 2015, quando arrisquei que com a geringonça tinha nascido um Novo Partido Socialista. Este NPS não era já o PS ambíguo de Mário Soares, nem o PS da frouxa terceira via de António Guterres. Era um novo partido que herdava alguma da bebedeira juvenil de extrema-esquerda de alguns aderentes tardios ao socialismo democrático e que se formara quase exclusivamente no socratismo em todo o seu esplendor. A mistura era explosiva. Faria o PS abandonar o papel de charneira do regime, o que talvez se venha mesmo a concretizar, e algo só disfarçado pela forma cínica e desprovida de substância como António Costa geriu o poder durante oito anos. Mas que lá chegaríamos, isso parecia-me certo. E mais certo me parecia que o novo centro político do país estaria, mais cedo ou mais tarde, no espaço da Aliança Democrática. Rui Tavares, oito anos depois, confirmou a minha tese, na altura ainda mal-alinhavada, e esse pode perfeitamente ser o ponto essencial da eleição de 10 de Março – o que, no 50.º aniversário do regime, pode vir a ser simbólico e representar, ele mesmo, uma nova revolução. Com efeito, o carácter inédito da geringonça e do “quebrar de muros” à esquerda não foi o momento definidor da transfiguração do regime tal qual o conhecíamos até então. Esse momento é pré-revolucionário; a revolução só se concretizará caso o espaço da AD forme Governo depois de 10 de Março.
A direita democrática teve, compreensivelmente, dificuldades na adaptação a esta nova realidade, mas o surgimento do Chega, que podia ter acelerado este processo de tripartidarização do regime, veio confundir ainda mais as hostes. As eleições dos Açores de 2020 eram o momento ideal para definir as novas regras do regime, mas não foi esse o entendimento seguido na altura. Muitos à direita entenderam seguir pela via da bipolarização do regime, com dois blocos muito definidos à esquerda (PS, PCP, BE, Livre) e à direita (PSD, CDS, Chega – alguns incluíam a IL na equação, outros não, o que também explica muitas das clivagens vividas no seio dos liberais nos últimos anos), competindo entre si por uma maioria absoluta. Outros, onde me incluo, subscreveram, à época, um manifesto que, não sendo sobre as eleições açorianas, encaixava naquele contexto na defesa de uma solução diferente, isto é, que pugnava por uma direita que rejeitava populismos e iliberalismos à esquerda e à direita – no fundo, que se colocava como centro político da democracia.
Nos últimos anos, fomos assistindo a discussões intermináveis sobre a questão das “linhas vermelhas” da direita democrática em relação ao Chega. Sempre julguei, e fui escrevendo sobre isso nesta coluna, que o espaço da velhinha Aliança Democrática precisava de ser recuperado, e que ele ia da esquerda liberal à fronteira da direita conservadora e democrática, passando pelos liberais, social-democratas não colectivistas ou democratas-cristãos. Essa defesa tinha uma vertente política, e se quiserem moral: porque o espaço onde sempre estive, da direita democrática, liberal-conservadora, é suficientemente amplo, mas não o suficiente para ser consumido por forças anti-sistema e populistas; e tinha uma vertente pragmática: a esquerda estava, e está, em campanha permanente de forma a colocar no mesmo saco político todos os partidos à direita do PS, jogando com o fantasma do fascismo e lucrando sempre com isso. O Chega crescia, é certo, mas enquanto o espaço da AD não se definia absolutamente em relação a André Ventura, o PS conquistava terreno. Pelo caminho, ganhou uma maioria absoluta com base exclusiva nesta estratégia. Se a AD não se demarcasse, ficaria sempre encostada ao poderio de Ventura e o PS eternamente no poder, com ou sem a extrema-esquerda. Costa tentou manter a charneira do regime no Largo do Rato; mas era tempo de deslocar o centro partidário do regime para a direita e, sobretudo, para a sociedade, ela mesma o verdadeiro centro político de uma democracia liberal.
Luís Montenegro percebeu o que estava em causa e fez algo que vai sendo cada vez mais raro em política: arriscou, contra muitas vozes no seio do PSD e outras tantas na comunicação social. Pode até perder 10 de Março. Mas ninguém lhe tira o mérito de ter corrido riscos. Montenegro arriscou recuperar o CDS, arriscou o “não é não” ao Chega, arriscou tudo isso e bipolarizar o debate entre a AD e o PS. E habilita-se agora a parar a sangria de eleitorado para o Chega (porque com o “não é não” se tornou óbvio que votar no Chega, para quem quer tirar o PS do poder, não serve para nada), se não mesmo recuperando-o, e a fazer o próprio Partido Socialista a provar do seu próprio veneno: André Ventura, tendo em conta as posições políticas que tem tomado ao longo da campanha, tem demonstrado que é já no campo da esquerda, PS incluído, que agora pesca e cresce.
Pelo caminho, fez algo mais que deveria ter feito: ficando a Iniciativa Liberal de fora da grande coligação, não a confrontou e trouxe-a para dentro do espaço político da AD. Os liberais fazem parte dessa grande coligação, que é uma força da sociedade portuguesa. Talvez já não como em 1979, mas continua a sê-lo. A AD enquanto igreja, isto é, quanto aos partidos que a compõem, pode ter mais ou menos sucesso, pode incluir ou excluir este ou aquele partido ou movimento. Mas a AD enquanto fé é mais que uma força partidária, é uma força social e de campo alargado. Sim, os liberais são elemento fundamental da grande Aliança Democrática, e um Governo AD que não os envolva será sempre incompleto, com danos, sobretudo, para o país.
2015 foi uma oportunidade perdida. O facto de a coligação não ter atingido a maioria absoluta impediu que chegássemos a 2024 com um país muito diferente: mais rico, com mais igualdade, com mais liberdade. A geringonça, que ainda hoje reúne tantas simpatias, não foi mais que uma farsa: quatro anos de fantasia de “devoluções de rendimentos” à conta de um ajustamento financeiro que produziu resultados, de um país que já estava a crescer e de uma conjuntura internacional altamente favorável, nomeadamente quanto à compra de dívida pública. Mas as coisas são o que são: a AD precisava mesmo de virar a sua própria página, reconfigurando-se, recuperando uma marca credível, colando-se mais a uma história de mudanças suaves do que a transições abruptas. Quando Rui Rocha ataca a AD por ficar aquém do que poderia defender, não lhe faltam razões. Como tem razão Montenegro quando lhe responde que o país ainda está longe de poder aceitar algumas das propostas da IL. Essa mudança suave da AD foi a que deu a vitória a Cavaco Silva em 1985, contra o PS do Bloco Central sem Soares, mas com Almeida Santos, e contra o CDS de Lucas Pires que, como sempre, estava política e intelectualmente a anos-luz de um país que gosta de andar devagar.
Não descuro a possibilidade de nos deitarmos dia 10 de Março com Pedro Nuno Santos primeiro-ministro, naturalmente. Não confio assim tão cegamente num país que, em 2011, com um país sem dinheiro para salários e pensões, ainda deu mais de um milhão e quinhentos mil votos ao PS de José Sócrates e mais de 730 mil votos ao PCP e Bloco de Esquerda. Mas a vitória da AD, com apoio parlamentar ou governativo da IL, não é só um desejo, é uma necessidade que apreciaria que o país sentisse. Trará novos riscos? Sim. Mas essa é outra conversa.