No último Macroscópio, José Manuel Fernandes recorda a eleição de Donald Trump, em 2016, e a incapacidade que os jornalistas então tiveram para prever aquele resultado eleitoral, e faz um balanço do percurso que o jornalismo ocidental fez desde então. O texto relembrou-me, entre outras coisas, uma série de vídeos a que assisti na altura e que retratavam imensos negros norte-americanos a justificar o seu voto em Trump, pondo em causa as narrativas mediáticas acerca do racismo e do fascismo do então eleito presidente e dos cidadãos que nele tinham votado.

De facto, na imprensa escrita, nas rádios, nas televisões, o jornalismo vive cada vez mais entrincheirado numa espécie de privilégio cultural auto-reconhecido, ao lado das restantes elites políticas, intelectuais, académicas ou desportivas, afastado, cultural e fisicamente, de milhões de outras pessoas. Nos Estados Unidos, em França, no Reino Unido, em Portugal, é profunda a cisão entre as elites e aquilo a que irritantemente se chama «povo», um tipo de névoa humana a que só por pudor não chamam «rebanho».

Não é coisa de agora, é certo, mesmo num país como o nosso, pequeno e onde até as elites são relativamente grosseiras. Essa distância entre os de cima e os de baixo sempre existiu e ficava despudoradamente exposta sempre que alguém arriscava canções, sketchs de humor ou crónicas de jornal que versavam sobre aquilo que se julgava ser a vida das pessoas fora da bolha do privilégio cultural e social (ambos mais relevantes, a este propósito, que o económico). Entre nós, Miguel Sousa Tavares, Clara Ferreira Alves, Pacheco Pereira ou Vasco Pulido Valente, por exemplo, ensaiaram, em momentos diferentes, colocar-se na pele de desempregados, suburbanos, homens da classe média, tal como a então Telecel colocou um pastor com um ar atoleimado a gritar «’tou xim, é p’ra mim» para representar a ideia da generalização das comunicações móveis. Enfim, a lista é extensíssima, mas os exercícios de aproximação ao povo pelas elites foram sempre de um esforço enternecedor, mas absurdamente patéticos pela simples razão de serem, com inesquecível descaro, imaginados e paternalistas.

Mas o percurso que as sociedades ocidentais tomaram nas últimas três décadas foi feito no sentido de uma nova proletarização e da sua própria dualização, em que de um lado vivem as elites que, do alto do seu privilégio, pretendem impor comportamentos e linguagens a uma grande massa que ela própria julga uniforme, ignorante e necessitada de esclarecimentos providenciais, e do outro lado vivem milhões de pessoas alheadas dos temas que encantam as elites. E isso cavou um fosso colossal que, sempre tendo existido, já foi mais preenchido por grupos sociais diversos a que por facilidade de linguagem se chamavam «classes médias», não só em termos económicos, mas também sociais e culturais.

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Tim Newark escreveu, antes da vitória de Trump mas já em 2016, um artigo no Telegraph que me ficou mais ou menos na memória. Dizia que o então candidato dos republicanos estava a dar um banho de realidade à elite geek, cativando politicamente aqueles a quem Hillary Clinton depois trataria como «deploráveis». A maioria da elite continua sem ver esse banho de realidade, talvez enganada pela posterior vitória de Joe Biden sobre o próprio Trump, pela derrota de Marine Le Pen, em França, frente a Macron, ou, agora, pela vitória de Lula contra Bolsonaro.

Sucede que estes resultados eleitorais que as elites tomam como «vitórias da democracia contra a barbárie», não significam grande coisa. O retrato da sociedade mantém-se e não tardará a dar novas bofetadas eleitorais a quem não a compreende. Estes novos movimentos não são (só) racismo, machismo ou pouca cultura democrática. São reproduções políticas do cansaço do politicamente correcto, do cancelamento e da cultura woke, da sensação de abandono provocado pelo advento da nova e assim chamada revolução digital. E que reflectem uma desilusão profunda para com o desenho de um futuro sonhado e imaginado pelas elites, em que os restantes não entram de outra forma que não seja o papel de consumidor inorgânico ou proletário socialmente irrelevante.

As elites prosseguirão este caminho, não haja dúvidas, erguendo barreiras contra as ameaças dos fascismos, dos racismos, dos machismos, da transfobia, dos comedores de carne, dos condutores de automóvel. E dificilmente compreenderão que se há muro a quebrar, esse muro é aquele que as separa do resto das pessoas, e o que é representado por uma cada vez mais difícil mobilidade social e acentuada desigualdade.

A grande cisão política do nosso tempo não é entre esquerda e direita, entre democratas e não democratas. É entre uma elite que paradoxalmente junta altos burocratas, novos capitalistas em t-shirt, activistas neo-marxistas, alarmistas climáticos ou de qualquer outra espécie, e muita gente desiludida, que precisa de bater no sistema, e que por isso se mostrará disponível para procurar uma resposta violenta a uma agenda mediática que boa parte das sociedades não sentem como sua – outro paradoxo é o facto de esta resposta ser depois corporizada por outros membros das elites, que acabam por se convencer ungidos de uma certa capacidade de compreender os anseios «do povo».

Nesta disputa, ainda acredito que haja oportunidade para representar o lado B das sociedades com soluções e ideias fortes, radicais até, mas de forma enquadrada no sistema, em democracia, com capacidade de não olhar para os adversários políticos como inimigos éticos e morais, mas como parte de um processo evolutivo da sociedade, e com a noção clara de que a luta política não é maniqueísta e de que o lado oposto ao nosso não deve ser silenciado ou esmagado, mas combatido com urbanidade, com justiça e elevação.

Mas duvido que haja quem tenha capacidade para o fazer. Eu, que cresci geograficamente entalado entre os bairros da Jamaica e da Quinta da Princesa, no Seixal, que me senti ali, económica e socialmente, um privilegiado e depois, chegado à universidade, em Lisboa, me senti um mero suburbano sem pedigree, sem berço, sem colégio, sem nome e sem dinheiro, começo a estar habituado a este permanente estado de quem vive a meio da ponte e sem terra própria. Do que se trata, afinal, é de uma enorme falta de representação política, jornalística, artística e intelectual. Talvez esteja enganado, embora suponha que estejamos ainda muitos nesse vazio; mesmo que suspeite que exista cada vez menos gente disponível para continuar nesta terra de ninguém a evitar optar por uma das trincheiras.