Amanhã faço 55 anos e até tenho vergonha de o dizer. Não é tristeza, é mesmo vergonha. São muitos anos. Oficial, oficiosa e civilmente, sou um velhote, a quem falta só um pedacinho de permanência para começar a beneficiar de descontos nos transportes públicos que não uso. Uso, ocasionalmente, o avião, e na hora de comprar o bilhete na internet abrem-se aquelas caixas em que se tem de indicar a data de nascimento numas tabelas que deslizam para baixo. O dia e o mês, que nunca mudam e são limitados, não custam. Já procurar o ano obriga a uma descida vertiginosa na tabela, que parece infinita: 1990, 1985, 1980, 1975, 1972, 1971, 1970, 1969, enfim. O cliché da vida que passa diante dos nossos olhos começou talvez aqui, nesta queda instigada pelo “rato” do computador rumo às origens remotas da minha existência. A título de consolo, consolo escasso, verifico sempre se há anos anteriores a 1969. E há. Mas são poucos, bem menos que os posteriores.

Juram por aí, não sei quais cavalgaduras, que os 55 são os novos 40. Não são. São os velhos 55. Acontece nas ideologias e no que calha: podemos tentar torcer, empurrar, esganar a realidade que esta não se move um milímetro. Apetece-me imitar o treinador da bola que, ao descrever a sua função, explicava que consistia em “treinar” a “dor”. Ora, “real” e “idade” dá o quê? Pois é. Aposto que ninguém pensara nisto. E com razão, dado que as origens das palavras são distintas e o exercício não faz sentido. Porém, se desprezarmos a etimologia, faz algum sentido notar que a real idade, ou a idade real, não se perturba pelas nossas considerações sobre ela. A idade é o que é e acabou-se. Quer dizer, não acabou: prossegue, serena e teimosa e enervante, e acaba quando nós acabarmos. A idade acaba connosco, nas duas interpretações da expressão.

Sinto-me então acabado? Ou, dito de maneira diferente, os muitos anos que os 55 anos são serão demasiados? Tem dias, principalmente os dias em que olho o espelho e reparo no pescoço enrugado. De resto, a coisa vai indo, e de qualquer modo não me resta alternativa senão deixar a coisa ir. Há semanas, um pequeno susto (na minha cabeça de hipocondríaco o equivalente ao Armagedão) levou-me a uma consulta médica, que me levou a exames, que me levaram a outra consulta, que me levou a um “check-up” vasto e, em mim, inédito. Conclusões? Pelos vistos, estou saudável dos pés à cabeça, sem esquecer os órgãos intermédios. Soube da novidade e, após sair do consultório, desatei aos saltos, sessão que terminei uma fracção de segundo antes de começar a embaraçar a Leonor e uma fracção de segundo depois de me ocorrer que a saúde é o estado precário que precede a doença. Como os saltos resultaram de alegria e não de um chilique, sou rapaz – perdão, homem – perdão, velhote – para deduzir que continuo interessado em andar por cá. Se 55 são muitos anos, por enquanto não acho que sejam demasiados.

O que acho hoje achava aos 45, aos 35, aos 25 e, não me obriguem a falar, aos 15: a existência é geralmente aborrecida, entrecortada por intervalos compensadores. O pior nem é isso. E o pior nem é que, com o tempo, o mundo inevitavelmente se afaste do mundo que conhecemos a ponto de quase não o reconhecermos. O pior é que ao longo das últimas duas ou três décadas, logo as que me tocaram em cheio e em azar, o mundo ficou feio. As canções são feias. A linguagem é feia. Os filmes são feios. As roupas são feias. Os carros são feios. Os edifícios são feios. As cidades são medonhas. Pratica-se, com excepções que não incomodam a regra, um culto obsessivo da fancaria e do grotesco. E o culto estende-se às ideias, que abandonaram à mera retórica o falecido conceito de liberdade para atafulhar o “espaço público” com superstições, histeria, manipulações, dogmas, mentiras, milenarismo, boçalidade e, claro, subjugação voluntária. Tudo, no que é palpável e no que não é, é feio.

Tudo? Não. Embora a idade não nos conceda a proverbial sabedoria, a verdade é que ensina uns truques. O segundo maior truque é descobrir que não precisamos do mundo. Ou melhor, que, salvo em momentos infelizes, não somos obrigados a habitar o mundo em que o mundo se tornou. E que sobram imensos mundos além do que agora se consagra com a elegância de um zombie engripado. Séculos e séculos de civilização legaram-nos música e livros e filmes e pessoas e lugares suficientes para preencher cem vidas, cada uma com cem anos. Cinquenta e cinco é para meninos, ainda que entradotes.

Por fim, convém não esquecer a lição de Montaigne, que se consumia sem parança com a mortalidade da espécie e, em particular, a dele. Um dia, ao convalescer de uma queda de cavalo, viu-se abençoado por uma epifania e compreendeu que é absurdo desperdiçar a vida a recear a morte. Daí em diante, viveu despreocupado e com cólicas renais por 23 anos, até morrer de amigdalite aos 59. Eis o maior truque que a idade nos ensina: não andar a cavalo.

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