1. Foi ao raiar da manhã, como da outra vez, ainda que fosse verão e não outono. Era um dia limpo, o céu despido de nuvens, a temperatura rondava os 33 graus, sem vento.
Na véspera, pelas nove da noite, quando a claridade já cedia à escuridão nocturna e a lua se revelava, grande, gloriosa, avermelhada, diriam as crónicas mais tarde que se verificou um estranho fenómeno: cães, animais de companhia, vadios, esqueléticos, nutridos, de dentro das suas habitações humanas, das varandas espalhadas pela cidade, dos becos e vielas da Lisboa antiga (que ainda resistia) uivaram à uma ao disco redondo, grande, glorioso, avermelhado. Como uma sinfonia de morte, escreveu alguém anos depois, de despedida, diriam outros.
Foi quase à mesma hora, mais minuto menos minuto, três séculos não eram volvidos do grande desastre da cidade do Tejo, que da distância, a ressoar como um tambor ribombante na pele das gentes, um grande barulho, vinha do chão, vinha do céu, precedeu de poucos segundos um primeiro abalo suave e curto, que depressa cessou; depois a cidade dançou, e na dança a perder o par caíram os primeiros prédios, foi na zona das avenidas novas, nessa altura já muita gente descia às ruas, outros abandonavam os carros, nas longas filas – na marginal, IC19, Duarte Pacheco – sucediam-se os embates, alguns saíam das viaturas e corriam pelas bermas, sendo atropelados no processo; o terceiro abalo, depois de uma acalmia de um curto instante, durou seis minutos.
A cidade desabou. Da baixa à alta da cidade, desabou.
2. O tempo é de rescaldo – ou de interlúdio -, com cambiantes políticos, passa-culpas, desculpas e outras formas de alijar responsabilidades em duas tragédias portuguesas recentes, Pedrógão e Tancos. Ainda não se sabe o que sucedeu exactamente, ainda não se sabe quem foram os responsáveis, políticos ou materiais, por acção ou omissão, ainda não se sabe se alguma coisa vai mudar. Ainda só se sabe que não se sabe quase nada.
E afinal trata-se mais ou menos do mesmo de sempre. Acontecimentos previsíveis, aliás quase sempre previstos, redundam em tragédias reais, 64 mortos num incêndio florestal, ou reputacionais, com o país exposto ao ridículo – e ao descrédito – do desaparecimento de armas de um paiol militar praticamente deixado ao abandono; tragédia, aliás, que bem pode tornar-se fatal, se alguma dessas armas for usada em crimes de guerra, sangue ou terrorismo.
Há incêndios todos os anos. Não costuma morrer (tanta) gente, desta vez morreu. Há roubos de armas ocasionalmente. Não costumam ser tantas (de uma vez só), desta vez foram. E na agitação deste verão quente de 2017, sucedem-se as recriminações, as acusações, as desculpas, as comissões; em breve haverá leis e relatórios, provavelmente inconclusivos ou inócuos, e tudo voltará a ser esquecido, num lamentável ciclo inevitável.
Os portugueses não se preocupam muito com a eventualidade de um sismo. São raros, acontecem espaçadamente e, com a eventual excepção de 1755, não parecem ameaçadores. E contudo, vai acontecer. Se tiverem a dimensão de outros que ocorrem pelo mundo fora, morrerá gente. Vai acontecer, só não se sabe quando. E quando cair o Carmo e a Trindade e o resto da cidade, de cabo a cabo, com milhares de vítimas, que diremos? Provavelmente recriminações, acusações, desculpas, comissões, leis e relatórios. Como sempre.
3. Do chão subiram vapores, cheiro a enxofre, mil fendas no asfalto tragaram homens e mulheres, e por todo o lado cabos dançavam, decepados, fagulhas de electricidade como chicotes implacáveis a fustigar os habitantes da cidade.
Já o fogo irrompia nas habitações remodeladas à beira rio, no casario antigo de Alfama, e até nos bairros distantes de Benfica ou Arroios; o Chiado pegou fogo outra vez; aos magotes, os turistas fugiram do ruir da cidade, refugiados à beira rio em zonas despojadas, no campo das cebolas, na ribeira das naus, nos terrenos largos de Algés, e foi quando, sem surpresa, as águas do Tejo desceram fazendo ioiôs de majestosos paquetes, e depois as vagas, paredes de dez metros, varreram como bonecos turistas e autóctones, cidade adentro, subiram a encosta do Restelo, a calçada da Ajuda, o morro da Estrela, desta vez nem Campo de Ourique escapou.
O fogo lavrou por sete dias, as águas fizeram-se rogadas, e pouco puderam os homens para as convencer, mesmo seguindo os seus bem elaborados planos.
4. Os sismos, pela sua raridade, mas também pelo potencial de destruição que acarretam, são um exemplo extremo; por isso também, um paradigma do que se faz como prevenção, da dificuldade em prever tudo o que a natureza é capaz de produzir (de belo e de terrível), mas também da incúria e distracção humanas, cadinho perfeito para a tragédia anunciada.
Podia nesta crónica evocar outros cenários, ameaças que, em Portugal, podem redundar em tragédias, quase sempre ignoradas ou preguiçosamente plasmadas em planos de crise ou contingência, de pelo menos duvidosa eficácia: o mar de novo a galgar os passeios de Miragaia, com a fúria que costuma ter; um grande avião a cair sobre uma cidade portuguesa, de aeroporto à vista; ataques terroristas; o fogo, sempre ele, a consumir prédios e património, alimentado por construções descuidadas, igníferas, como sucedeu em Londres, construir barato e vender caro, que o imobiliário está pela hora da morte (literalmente!?).
Mas fico-me pelos sismos e fico bem (ou muito mal); sobre eles se escreveu neste jornal, em 2016, que “Não se sabe quando nem com que força, mas é ideia consensual entre os cientistas de que a terra vai voltar a tremer em Portugal com intensidade. É tão certo como o interior da Terra estar sempre em atividade e as placas tectónicas em constante movimento”. E porque, entre outras coisas, “se o reforço antissísmico raramente ou nunca se verifica na reabilitação dos edifícios mais antigos – pombalinos ou não –, as obras realizadas contribuem ainda mais para a fragilidade dos mesmos, como as clandestinas ou o reforço, mal estudado, com estruturas metálicas ou de betão”. E quando a terra tremer, se o fizer como é possível com força semelhante à de 1755 (8,9 na escala de Richter), então, “o impacto humano (…) seria particularmente grave no centro da cidade”. As Avenidas Novas, Arroios, Anjos, Penha de França e São João de Deus seriam as zonas com mais vítimas mortais. Mas Belém, Ajuda, Alcântara, Benfica, São Mamede e Pena não escapariam a elevadas perdas humanas.
Explica noutro artigo a especialista Cristina Oliveira: “Podemos ter um sismo de magnitude muito elevada a qualquer momento. Sabemos que não o podemos evitar mas podemos evitar as consequências, reforçando as casas e tendo uma atitude adequada”; mas como nada é feito, “se acontecer (…) um igual aos que aconteceram em Itália, Lisboa vai ficar arrasada. Não estamos nada preparados”.
Existe, revisto recentemente, um “Plano de Emergência para o Risco Sísmico em Lisboa”, aliás único no país. Mas, dizem os especialistas, tem erros, não é uma verdadeira carta de riscos sísmicos e não resolve o risco do parque habitacional mais antigo e a degradação da construção em gaiola pombalina.
E depois de acontecer, quando acontecer, de quem serão as culpas?
5. Conclusão: há coisas verdadeiramente inevitáveis. Mas o rigor na prevenção, o realismo na planificação e a persistência na acção, são cruciais para minorar as consequências de todas as tragédias, mesmo as mais inevitáveis. E responsabilidade terá sempre quem não previu, não planificou, não agiu.