Amanhã muitos portadores do vírus e sujeitos em mera quarentena irão votar. Muitos “covidófilos”, aqueles que resolveram dedicar a vida à preocupação irracional com a morte, não votarão. Deve haver aqui uma espécie de ironia: umas eleições cuja campanha não discutiu as políticas “contra” a Covid, o tema dominante nos dois anos anteriores e com impacto devastador nos próximos, podem ser decididas pela consequência imediata dessas políticas, que é o medo. Além de irónico, era bom que fosse justo. Porém, o conceito de justiça não se aplica: desde Março de 2020 que quase todos os partidos alinham com a subjugação do bom povo e todos, mesmo todos, decidiram que essa subjugação não cabia na elevadíssima discussão das últimas semanas.

Por falar em tratar pessoas feito gado, o exacto gado que um candidato promete acarinhar, alimentar e engordar, não me convém insistir nas “legislativas”, já que hoje é dia de “reflexão” e há entidades criadas para punir perturbações. Ao longo de 24 horas, aliás à semelhança das restantes 8736 horas do ano, é comer e calar. Não admira que o gado engorde. Nem admira que o gado cale.

Noutros lugares, o gado não cala. Talvez porque nesses lugares haja gente suficiente fora do rebanho. Existem países, por exemplo a Suécia, onde o Estado nunca rebaixou os cidadãos ao estatuto de retardados. Outros lugares, por exemplo certos estados dos EUA, regressaram à civilização e à decência logo após o susto inicial. Outros, por exemplo a Dinamarca e a Inglaterra, cederam à avalanche de “infectados” e decretaram agora o fim da histeria. E temos os governos que não cedem a bem mas que, à conta da impaciência de boa parte das populações, arriscam ceder a mal, por exemplo o Canadá e a França. E temos por exemplo Portugal, que à cautela (risos) deixa-se ficar para trás e mantém em vigor as regras discriminatórias ditadas pela ciência, se por ciência entendermos a geleia que sai das cabecinhas de uns ministros “informados” por “especialistas” em gerir as próprias carreiras.

É verdade que, em todo o lado, sopra um agradável arzinho de mudança. Nisso, importa agradecer ao mais extraordinário e fulgurante avanço técnico dos tempos recentes. As vacinas? Não exageremos. Embora úteis para adultos e doentes prévios, as vacinas têm eficácia moderada e duração pífia. Refiro-me à Ómicron, a “variante” que, nas suas diversas mutações, rebentou com a engraçada “matriz de risco” e retirou o simulacro de controlo das mãos dos políticos e das autoridades [sic] de saúde. Do lado sanitário, a Ómicron transformou a Covid numa inevitabilidade sem baixas comparáveis à prevalência. Do lado simbólico, agitou o risco da impopularidade aos senhores que mandam e forçou-os à desvalorização de um fenómeno que são incapazes de influenciar – ou de fingir influenciar, para ser preciso. “Casos” e mortes, “medidas” e “efeitos”: a Ómicron cortou os fios, reais ou imaginários, que desenhavam a teia da opressão. Com isso, libertou-nos. Ou criou as condições para nos libertarmos.

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A liberdade é um caminho, que por cá se adivinha particularmente torto. Jamais houve tanta aflição com a “desinformação” quanto em 2020 e 2021. É natural: jamais se desinformou tanto. Menos natural é o facto de os maiores mentirosos serem os principais aflitos. Mentiu-se imenso. Mentiram-nos imenso, governantes e “peritos”. Com excessiva frequência, os “media” serviram de simples megafone da mentira. Os interesses seriam diferentes, mas nenhum invalida a trafulhice e o pânico que a trafulhice espalhou e utilizou para se perpetuar sem esforço. Denunciar a mentira, quando óbvia, ou suspeitar dela, quando difusa, significava descer perto da clandestinidade social: um “negacionista”. O termo confundia, deliberadamente, os que juravam que as vacinas obedeciam a um plano de extermínio com os que mostravam que a exigência do certificado de vacinação não salva uma única alminha. Ou com os que alertavam para os profundos rombos na economia, na saúde em geral, na democracia. Mentiu-se imenso, destruiu-se imenso.

Hoje, as circunstâncias empurram a ortodoxia da Covid para terrenos outrora (há 15 dias) reservados ao “negacionismo”. Devagarinho, os “casos” deixaram de valer, as hospitalizações depende e os óbitos tem dias. Diversos perpetradores do medo começam a reparar nos factos que os fintaram durante 23 meses. Não sei de um que reconheça o erro, os sucessivos erros. Tudo normal: reconhecer erros seria admitir incompetência, reconhecer a intenção de errar seria reconhecer desonestidade. Dos males, o menor. O fundamental, numa perspectiva optimista, é que a situação deu uma reviravolta.

A perspectiva realista avisa que a volta ainda vai a meio. Se, nos governos e na “ciência”, alguns hipócritas se esquecem do que disseram, fizeram e causaram, não se pode desprezar os fanáticos irredutíveis, que continuam agarrados a delírios com a convicção da primeira hora e o empenho de uma lapa. Os fanáticos advertem para cataclismos hipotéticos. Exigem restrições intermináveis. Proclamam intenso amor ao bem-estar alheio sem esconder a aversão que a progressiva inocuidade do vírus lhes suscita. Para os fanáticos, “endemia” é palavra medonha. São eles que, atropelados diariamente pela realidade, tencionam resistir-lhe até ao fim. Ou, e aqui está a ameaça, até arranjarem maneira de o fim não chegar. Os motivos de cada um são sortidos, o vício de todos é evidente. Por dinheiro, fama, estatuto, poder ou pura demência, a Covid vicia os que decidem como o medo vicia os que obedecem. Essa gente é perigosa. Desmascarada, essa gente é perigosíssima.

Antes de se “dissolverem”, as duas grandes epidemias precedentes passaram em dois ou três anos. A “espanhola”, antepassada da maioria das gripes dos 100 anos seguintes, passou em dois. É tempo de a Covid passar dos noticiários para um cantinho vergonhoso da memória. Eu quero, você quer, suponho que a vasta maioria dos habitantes da Terra quer. Há quem não queira. Há que estar atento.