Dê-me a liberdade, ou dê-me a morte! disse Patrick Henry, um dos founding fathers dos Estados Unidos, num momento que precedeu a Revolução Americana, uma das poucas revoluções boas que se conhece.
E se de repente acontecesse algo no mundo directamente responsável pela morte de meio milhão de pessoas? Não, não estou a falar do Covid19 e também não estou a falar de cenários futuristas. Estou a falar da crise financeira de 2008 e das mortes por ela causadas. Um estudo já não muito recente da Lancet mostrou três coisas: que o aumento do desemprego está associado ao aumento de mortalidade relacionada com o cancro; que esta relação pode ser mitigada com mais investimento nos sistemas de saúde; e que, só nos países da OCDE, resultado dessa crise, morreram adicionalmente 260.000 pessoas, das quais 160.000 na União Europeia. Por mortes adicionais entenda-se mortes que de outra forma não teriam ocorrido. O meio milhão é uma respeitável extrapolação feita pelo Imperial College para países cujos dados não foram considerados no estudo da Lancet.
Em Portugal morrem por ano cerca de 110.000 pessoas, das quais 13.000 por doenças respiratórias. Por Covid19, desde o primeiro óbito há cerca de um mês, morreram 345 pessoas, de entre os 12.442 casos detectados. Dito assim parece estatisticamente pouco relevante. Porém, este problema está longe de estar resolvido, uma vez que as contas estão longe de estar fechadas. E ninguém arrisca um prognóstico.
Admitindo o worst case scenario que a Direcção-Geral de Saúde anunciou no final de Fevereiro com um milhão de infectados, mantendo-se esta letalidade (2,8%), teríamos 28.000 óbitos. Seriam mais 11.500 pessoas que os cerca de 16.500 que já morreram até hoje em Itália, um país que com uma população 6 vezes superior à portuguesa já desceu, do que nos é possível vislumbrar daqui, aos mais profundos níveis do Inferno de Dante. Parece, portanto, um cenário pouco verosímil (aqui mistura-se, reconheço, muito de whishful thinking). Não obstante, admitindo o cenário como válido, e admitindo a baixa probabilidade destes óbitos somarem sem coincidirem aos 13.000 óbitos que habitualmente temos por doenças respiratórias, teríamos, nesta causa de morte, um aumento de mais de 200%; e um aumento trágico da mortalidade geral em Portugal de 25%.
Já se considerarmos o facto de termos desencadeado medidas de confinamento social mais cedo que Espanha e Itália, termos respectivamente 1/4 e 1/6 da população desses países, termos tido o surgimento do primeiro caso mais tarde que esses países, e que no dia de hoje a curva parece estar a fletir ligeiramente e as piores previsões não parecem confirmar-se, podemos esperar um cenário (pelo menos estatisticamente) menos dramático (whishful thinking outra vez).
Deixem-me aqui sublinhar, antes do que vou dizer a seguir, para que não subsistam dúvidas depois, o seguinte: as medidas de confinamento levadas a cabo em Portugal foram boas, tanto quanto as reservas do Primeiro-Ministro em impor o Estado de Emergência foram prudentes.
Dito isto, à escala global, com o mundo paralisado, em choque e num pandemónio sem memória, temos nesta altura – admitindo ingenuamente que os números da China são fiáveis – contabilizados 76.500 mortes, 7 vezes menos que os 500.000 que resultaram da crise de 2008.
Agora, quem por estes dias insiste na defesa do Estado de Emergência, em medidas mais e mais musculadas de confinamento, e na consequente paralisação, por decisão central, da Economia com argumentos simplistas de que entre a vida e a liberdade/economia (riscar o que quiser, ou manter as duas opções) eu escolho a vida, está-se a esquecer que a vida sem liberdade não é vida e que o mundo sem economia empobrece primeiro e implode depois; e a pobreza mata, mais e mais silenciosamente que o Covid19.
Todas as previsões de recessão e os números de desempregados e de empresas em layoff que já se conhecem fazem crer que a crise de 2008, comparada com o que aí vem, foi um passeio no parque.
O que fazer então? Primeiro perceber mesmo (!) que há um dia seguinte, e que o Estado de Emergência é mesmo (!) uma excepção que não pode durar sine die, sem um horizonte razoável à vista. Depois, não tratar como segunda prioridade – como se a escolha entre vida e a liberdade e a economia fosse uma escolha real – o que não pode ser tratado como secundário ou sequer alternativo: as liberdades e a economia. E já agora o Estado de Direito. É urgente reabrir o mercado e é urgente recuperar as liberdades, desde logo a de circulação. Não porque o problema sanitário esteja já sanado, mas porque os efeitos directos e indirectos desta suspensão dos direitos e liberdades indefinidamente prolongados adivinham uma crise incomensuravelmente maior que os provocados directamente pelo Covid19. Reabrir e recuperar. Seguramente com cautela, com o estabelecimento de cordões sanitários, com regras de controlo mais apertadas, porventura – ainda que a ideia do ponto de vista teórico me repugne – com a emissão de certificados de imunidade, como a Alemanha se prepara para fazer. Mas reabrir e recuperar. Caso contrário, os efeitos directos e os indirectos, com as pulsões totalitárias que a pretexto do estado de excepção já se vão manifestando (nacionalizações, incumprimento de contratos, restrições à liberdade económica, estatização da economia, etc.), não deixarão pedra sobre pedra na mais próspera e justa sociedade que conhecemos na História.
Há uma coisa que vale a pena não esquecer, porque as mitologias e a religião nos ensinam mais que aquilo que a luzes gostam de reconhecer: os “quatro cavaleiros do Apocalipse” (a morte, a peste, a fome e a guerra) raramente andam sozinhos. É bom estarmos preparados para os que ainda não apareceram. É por isso que, não a despropósito, abri este artigo com a citação de Patrick Henry. Porque quer os que estão confortavelmente confinados em casa, quer sobretudo os que já começaram a perder rendimentos e a sentir a sua estrutura familiar em risco, uns por melancolia outros por violenta e urgente pulsão, se encarregarão de, mais cedo que tarde, dar sinal de si.
Escrito com dados de 07.04.2020