“Estou a escrever este texto em russo e a cada frase é mais difícil. (…) É como um antigo campo minado, e as minas antigas começam a explodir à medida que atravessamos. Estão todas ‘vivas’ agora, essas minas. A língua não tem culpa, assim como a terra também não. Mas mudou, está esburacada e cheia de crateras. E as crateras só vão crescer em número.”

Maria Stepanova, in Finantial Times

1 A citação que abre este artigo é de um texto da poetisa russa Maria Stepanova. Foi publicado na edição deste fim-de-semana do jornal inglês “Finantial Times”, é uma corajosa denúncia da destruição monstruosa em curso da Ucrânia e uma descrição fiel do que é o autoritarismo de Vladimir Putin. Stepanova escreveu o texto em Moscovo e ali quer continuar a viver.

Até ao momento, ainda não foi noticiada a prisão da escritora, como aconteceu com o mediático caso da jornalista Marina Ovsyannikova. Apesar de Putin continuar a ter o apoio da maioria da população, há muitos outros exemplos de coragem de russos que não ficam calados. Alexandra Sukhareva e Kirill Savchenkov recusaram-se a representar a representar a Rússia na Bienal de Veneza e Elena Kovalskaya demitiu-se da liderança de um teatro estatal.

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Lev Dodin (prestigiado diretor do Teatro Maly de São Petersburgo) e Vladimir Urin (diretor do Teatro Bolshi) escreveram textos contra a guerra. Os críticos Marina Davydova e Anton Dolin também publicaram logo no início de março cartas abertas nas suas redes sociais contra a invasão e as absurdas justificações de Putin para a invasão. A resposta foi simples: emails anónimos com insultos (em que o mais brando foi: “NÃO SUJEM A RÚSSIA COM A VOSSA PRESENÇA!!!”, assim mesmo em caps lock), e a nova suástica chamada “Z” pintada na porta da casa de cada um deles. Davydova e Dolin decidiram sair da Rússia com a família.

O mesmo já terão feito mais de 200 mil russos, muitos deles jovens que não querem viver numa sociedade fechada sobre si mesma e altamente vigiada em que, por exemplo, uma siberiana 63 anos com pouco mais de 170 seguidores na rede social Telegram (que em abril de 2018 foi suspensa por não dar as chaves de encriptação ao Estado) foi a primeira russa a ser detida ao abrigo da nova lei que pune com 15 anos de prisão quem divulgue ‘falsas informações’. Maria Stepanova arrisca-se a ter a mesma sorte em nome da “auto-purificação” da “escumalha” exigida por Putin — num exercício retórico claramente fascista.

2 Das raras entrevistas que deu a órgãos de comunicação social ocidentais, há uma que ficou para a história. A 28 junho de 2019, na véspera de uma reunião do G20, Putin fez a manchete do Finantial Times com a ideia de que o “liberalismo tornou-se obsoleto” porque “entrou em conflito com os interesses da maioria população” quando protege os interesses dos imigrantes e do “cosmopolitismo” (leia-se direitos das comunidades gays e LGTB), em vez de assegurar uma “vida segura, normal e previsível para o cidadão comum” — uma trágica ironia vinda de um ditador que não consegue melhor resultado, ao fim de 20 anos de poder, do que um PIB per capita de 10.126 dólares (2020), menos de metade do PIB per capita de Portugal.

O contexto da entrevista estava ligado ao momento alto então vivido por populistas (apoiantes e alguns deles financiados por Putin) como Trump, Bolsonaro, Salvini, Le Pen e outros mas muitas das suas afirmações ganham um novo contexto com a guerra da Ucrânia.

Por exemplo, Lionel Barber (então diretor do FT) perguntou-lhe se, ao fim de 20 anos no poder, o apetite pelo risco aumentou — numa alusão à intervenção militar na Síria. Putin responde: “O risco tem de ser sempre bem justificado. (…) [Mas] como diz um popular ditado russo: ‘quem não arrisca, nunca bebe o champagne'”. O ditador está a arriscar muito com a invasão da Ucrânia — até mesmo o seu próprio poder.

3 E nós, o que estamos a arriscar? Não há dúvida de que a união dos europeus e do restante mundo ocidental contra a Rússia nasce do choque unânime que as respetivas opiniões públicas nacionais sentiram ao verem na televisão a invasão imoral e a grotesca tentativa de Putin de destruir o Estado, a nação e a cultura ucraniana.

Logo, a reação que temos vistos nos últimos 20 dias comporta a perceção de que a nossa cultura democrática, liberal e tolerante — a tal que o ditador dizia que estava “obsoleta” — está em risco. Por isso, temos de enfrentar Putin, apoiando a Ucrânia do ponto de vista militar e humanitário.

E quando censuramos os canais de televisão russos, com o estatal “Russia Today”? Ou quando o Facebook, o Instagram e o YouTube bloqueaim o site Sputnik? Ou quando a Universidade de Valência (Espanha) convida todos os estudantes russos a voltarem para casa (“todos os que ficarem, ficam à sua responsabilidade”), aludindo a uma alegada medida de segurança? Ou quando a Universidade de Milão cancela um curso sobre Dostoiévski (recuando de seguida) e em Florença há pedidos para retirar a estátua do grande escritor russo? Ou quando cancelamos um pouco por toda a Europa concertos de música clássica, bailados e teatro de companhias russas? Ou quando expulsamos criadores dos desfiles de moda e despedimos maestros simplesmente por terem passaporte russo? Não estamos a arriscar a hipotecar o nosso modo de vida?

4 Não tenho uma resposta fechada porque o tema é complexo. Mas sei que temos de refletir bem se a censura e a política de cancelamento geral da cultura russa é o melhor caminho — e, acima de tudo, é o caminho que melhor reflete os valores democráticos e liberais das sociedades ocidentais.

Para começar, é pacífico que, tal como acontece com os oligarcas russos do ponto de vista económico, existam sanções para os apoiantes explícitos de Putin, como parece acontecer com o maestro Valery Gergiev, para as companhias estatais apoiadas e financiadas pelo regime russo ou até mesmo a representação da Rússia em eventos como a Eurovisão. Porque aí, tal como acontece com as organizações políticas e comerciais internacionais, estamos a falar de um isolamento político.

O grande problema é que uma parte dos artistas russos acima referidos não entram na categoria de apoiantes de Putin. E para sociedades, como as nossas, que professam a liberdade de expressão em contraste com a lei da rolha e da força dos autoritarismos (como o de Putin), não é muito coerente exigir a emissão de declarações de censura da guerra e do autoritarismo russo e, ao mesmo tempo, brandir a carta de despedimento na cara de alguém. A isso chama-se coação — e é usada pelas ditaduras (como Putin está a usar nas universidades, nos teatros e museus) e não pelas democracias.

Uma coisa é banir instituições dirigidas por Putin ou pessoas a si ligadas, outra é entrar numa escalada de perseguição a ‘pessoas da cultura russa’, simplesmente porque têm o passaporte errado.

A censura seguida para os canais russos estatais, como “Russia Today” (RT) ou “Sputnik”, já pode ser encarada noutra perspetiva — deixando dúvidas mesmo assim. A RT, por exemplo, foi banida pela União Europeia e pelo regulador britânico (Ofcom) por propagar informação falsa, sendo que a Ofcom lançou 29 investigações por ter violado as regras de imparcialidade. Ou seja, limita-se a ser um veículo de propaganda de Putin.

Como se costuma dizer, a primeira baixa de uma guerra é sempre a verdade. E a história militar demonstra que existe sempre censura em tempo de guerra. Basta verificar na I e II Guerra Mundial ou até em guerras mais recentes, como as duas guerras do Golfo ou a intervenção militar no Afeganistão. O controle da informação é encarado como crucial, seja para esconder algo que não se quer que o inimigo saiba, seja para disseminar contra-propaganda para confundir o inimigo.

Há uma questão, contudo, que fica: as opiniões públicas maduras europeias não conseguiriam aguentar o bombardeamento de informação parcial, preconceituosa em forma de propaganda da RT? Mesmo que o contributo para o pluralismo seja nulo, parece-me que a resposta seria positiva.

5 No espaço público português têm sido muito criticados os comentadores que as televisões e os jornais convidaram para contextualizar a Guerra na Ucrânia. Começando pelo jurista Alexandre Guerreiro e acabando nos generais Agostinho Costa e Raul Cunha, entre outros, todos têm em comum uma de várias situações:

  •  ou tentam justificar e fundamentar as razões legais para a guerra promovida por Putin, como faz Alexandre Guerreiro;
  • ou manipulam (consciente ou inconscientemente) a informação, criando a ideia de que a NATO e o Ocidente são os principais responsáveis pelo conflito, ao mesmo tempo que vão dando algum lastro à política de esferas de influência geo-política;
  • ou concentram-se tão despudoradamente nos jogos de guerra reais, desvalorizando completamente o lado humano da perda de vidas e destruição de um país.

Vamos por partes. O trabalho de investigação que o jornalista Vítor Matos publicou no Expresso é bastante elucidativo sobre Alexandre Guerreiro, comentador e ex-espião do SIED: participou em conferências de uma universidade russa ligada ao Ministério dos Negócios Estrangeiros da Rússia e, segundo o próprio, terá estado em contacto regular com as autoridades russas a quem cedeu informação jurídica para justificar a anexação da Crimeia. Nem vale a pena referir o oportunismo puro de alguém que já tentou entrar para vários partidos (diferentes uns dos outros) em busca de protagonismo.

Guerreiro considera mesmo “Putin” como a “personalidade política mundial do século XXI, até ao momento, na medida em que a sua atuação pôs fim à unipolaridade dos EUA e criou opções não alinhadas com a hegemonia ocidental, recuperando o respeito pela Rússia no quadro global.“

Por muito que discorde de praticamente todas as opiniões de Alexandre Guerreiro, não vejo como possa ser possível censurá-lo. As direções de informação têm de ter a liberdade de construírem a sua linha editorial, se entenderem que assim estão a promover o pluralismo. E depois respondem pela credibilidade da mesma.

O mesmo se aplica por maioria de razão aos generais e restantes comentadores militares. Por mais estaparfúrdias que sejam as opiniões dos generais Agostinho Costa e Raul Cunha (e muitas são), a única coisa que me surpreende mesmo é tão simples como esta: como foi possível que estes homens tenham subido na hierarquia militar e tenham, inclusive, trabalhado na NATO com responsabilidades relevantes? E será que, apesar de já estarem na reforma, refletem um pensamento orgânico de uma parte das altas patentes militares portuguesas?

6 É absolutamente devastador para qualquer ocidental assistir à destruição da cultura ucraniana que está a ser levada a cabo pelos russos. Putin ordenou bombardeamentos indiscriminados de museus, teatros, igrejas, catedrais, está a matar milhares de civis ucranianos e a subjugar um Estado soberano e reconhecido internacionalmente.

E é tão devastador que Putin conseguiu alcançar um dos seus objetivos: recuperar a ideia da guerra civilizacional entre o Ocidente e a Rússia, a guerra entre duas visões da sociedade e do Mundo — como acontecia no tempo da Guerra Fria entre os Estados Unidos e a União Soviética. A grande diferença é que, não estando sobre a ameaça das armas do Exército Vermelho ou coagidas a pertencerem ao Pacto de Varsóvia, a esmagadora maioria dos países de leste estão do lado ocidental contra os russos.

Por isso mesmo, é crucial que o ditador russo não consiga alcançar outro objetivo: dividir o Ocidente e destruir o nosso modo de vida, o nosso Estado de Direito, a nossa imprensa livre e a nossa liberdade de expressão, de reunião e política.

A liberdade de expressão é um direito de todos os portugueses e estrangeiros que vivam em Portugal e, numa visão lata (que é a minha), inclui o disparate, o absurdo e até, em certa medida, a mentira. O ponto central é que exista sempre o contraditório dessas opiniões. Só assim é que se cumprirá o pluralismo obrigatório numa democracia como a nossa.

Texto alterado às 10h56m