A República Popular da China (RPC) tem sido nos últimos meses motivo de polémica mundial, por ser, indiscutivelmente, a origem da pandemia da Covid-19, proveniente de um mercado de animais vivos em Wuhan, de acordo com as autoridades oficiais chinesas, ou de um lapso num laboratório militar secreto, na opinião de alguns especialistas em teorias da conspiração.
Facto menos analisado é a interrupção do fornecimento por muitas empresas chinesas de componentes, essenciais para manter em funcionamento as principais cadeias de abastecimento de produtos de forte componente tecnológica na Europa, Japão, Coreia do Sul e nos Estados Unidos, na sequência do confinamento forçado na China. A pandemia veio comprovar a integração das economias mundiais e relembrar que a globalização, defendida por todos, apresenta vantagens, mas também desvantagens, como é o caso, e como em qualquer sistema aberto, o equilíbrio depende da dimensão e peso dos vetores intervenientes. Os incautos constataram agora o que muitos têm vindo a denunciar, que o vetor China tem uma dimensão e peso demasiado grandes e que vai ameaçar o equilíbrio estável do sistema.
Os sonhadores vêm a globalização como a possibilidade de, com um click, contactar pessoas e culturas em todo o mundo, aceder a informação, partilhar da aldeia global. As grandes empresas americanas e europeias encaram-na como uma porta que lhe proporciona a abertura a novos mercados e consequentemente maiores lucros. A China por sua vez manipula a globalização como o mecanismo perfeito para atingir a sua ambição global de liderança mundial económica, tecnológica e militar.
Quando em 1979, Deng Xiaoping e o Presidente Jimmy Carter assinaram, em Washington, vários acordos e restabeleceram relações diplomáticas entre os dois respectivos países, deu-se início a algo que ninguém poderia prever. Em poucos anos, Xiaoping procedeu a mudanças profundas no sistema económico, criou várias Zonas Económicas Especiais, instituiu o princípio “Um País Dois Sistemas” em Hong Kong e Macau, introduziu a propriedade privada e fomentou a industrialização e o empreendedorismo. A China, em poucos anos, transitou de um país fechado, agrícola e miserável para um país industrial de baixa tecnologia, virado para satisfazer as necessidades de baixo preço das grandes economias mundiais, inicialmente os Estados Unidos, mas que rapidamente se alastrou à Europa e Japão. Como denominador comum aos dois estados de evolução a omnipresente liderança política do Partido Comunista Chinês (PCC).
Os Estados Unidos, nos anos 80 e 90 do século passado, fomentaram a implementação por todo o mundo de regimes democráticos de economia capitalista de mercado, com o propósito de criar estabilidade regional e abrir portas a novos mercados às empresas americanas. Estas, porém, beneficiaram muito mais da possibilidade, em especial na Ásia, de deslocar para esses países a produção e manufactura de uma enorme lista de produtos pouco sofisticados, de baixo valor acrescentado, enriquecendo com os lucros fabulosos que os baixos custos da mão- de-obra local lhes proporcionava. Como num efeito de bola de neve assistiu-se a um aumento exponencial da relocalização industrial dos Estados Unidos e Europa para a China tendo esta se tornado rapidamente a fábrica do mundo.
O que inicialmente satisfazia o objectivo de modernizar o país, melhorar o nível de vida de milhões de chineses e assim viabilizar o regime, foi rapidamente percepcionado pela liderança comunista como a estratégia de médio e longo prazo que proporcionaria a ascensão da China a um papel de relevo na cena internacional.
O PIB chinês, de acordo com o World Bank, passou de 191,149 biliões de dólares americanos em 1980 para 13,608 triliões de dólares americanos em 2018, ou seja, 70 vezes mais no espaço temporal de 38 anos. Este crescimento económico, sempre liderado nas suas opções estratégicas pelo PCC, permitiu o aparecimento de empresas chinesas de dimensão mundial, alavancadas por um mercado interno pujante, que em pouco tempo passaram de copiar tecnologia estrangeira para serem elas próprias gigantes mundiais de diversas tecnologias, nomeadamente comunicações, software e electrónica, como por exemplo a Huawei.
Não deixa de ser irónico o facto de terem sido os capitalistas americanos e europeus a proporcionar a gigantesca concentração de riqueza nas empresas chinesas e por inerência no Estado chinês, o que tem vindo a possibilitar, para além da ascensão social de uma grande parte da população, do enriquecimento de uma nova classe média ligada ao Partido, o financiamento colossal em investigação e desenvolvimento e no aparelho industrial-militar.
Neste caso o caçador foi apanhado pela presa. As unhas do dragão comunista foram afiadas pela ganância dos capitalistas americanos e europeus.
A China tem uma cultura milenar e um extraordinário orgulho nacional decorrente de milénios de existência de poder imperial. Também é o país mais populoso do mundo. A RPC tem evidentes objectivos de expansionismo do ponto de vista geopolítico, com pretensões de soberania no mar do Sul da China, ainda que em conflito com os vários países limítrofes. Adicionalmente não devemos esquecer que de acordo com o “One-China Principle” Taiwan constitui uma parte inalienável do território chinês, e que é dever do povo chinês através do PCC, salvaguardar a soberania e a integridade territorial da China.
Na economia, depois de passar décadas a produzir o que é concebido no Ocidente, a China é agora a segunda maior economia do mundo e aspira de forma explícita a liderar vários sectores de tecnologia avançada. A manifestação política mais assertiva deste objectivo é o Plano “Made in China 2025”, do Presidente Xi Jinping’s, no qual são definidos vários programas patrocinados pelo Estado e metas específicas para a China liderar o mundo em dez setores estratégicos de tecnologia, nomeadamente inteligência artificial, semicondutores, aviação, agricultura, eletrônica, tecnologia verde e biomedicina.
Para atingir o objetivo acima descrito, a China adoptou comportamentos mais ou menos agressivos para adquirir tecnologias avançadas, que vão desde incentivar estudantes e investigadores chineses em universidades dos EUA a espiarem em favor da China, forçar as empresas ocidentais a transferir tecnologia como condição para fazer negócios no mercado chinês, investimentos e aquisições em empresas dos EUA e Europa possuidoras de tecnologias estratégicas, ao financiamento multimilionário em empresas chinesas as quais possuem escala, mercado externo e excelentes investigadores para poderem desenvolver novos produtos baseados em tecnologias inovadoras.
Na opinião de vários especialistas americanos o domínio pelos chineses dos sectores críticos de tecnologia, inteligência artificial, semicondutores e 5G, poderá ter um enorme impacto negativo na liderança tecnológica do Ocidente a favor da China. Como declarou o Presidente Xi no relatório ao décimo nono Congresso do PCC, a China aspira, até 2035, a ser líder global em inovação e que a tecnologia constitui a “principal capacidade de combate” da China.
A força motriz associada ao desenvolvimento das sociedades não é o Estado, mas as empresas e a sua busca incessante pela inovação tecnológica e a rentabilidade dos seus investimentos. Os Estados podem facilitar ou dificultar o comércio mundial, mas as grandes empresas de tecnologia americanas e europeias veem o mundo, essencialmente, como global, integrado e apátrida. Essas empresas inovam globalmente e cooperam além-fronteiras, inclusive com a China, e não compartilham necessariamente a perspectiva dos Estados sobre visões estratégicas ou segurança nacional, ou pelo menos quando não lhes interessa.
Assim, quando passar o efeito negativo da pandemia na economia e na reputação da China, mesmo com as insistências erráticas do Presidente Trump, o poder do comércio global alcançará como sempre uma nova vitória. A economia vai voltar ao mesmo, como as árvores que se dobram todas com a tempestade, mas depois recuperam a antiga forma, mais fortes e determinadas.
Uma nova Guerra Fria com a China não interessa a ninguém, pela instabilidade estratégica a nível global, pelos custos associados e pela dispersão de recursos, necessários para o desenvolvimento de novas tecnologias e produtos. A estratégia de cooperação manter-se-á, derrotando os que clamam por maior confrontação com a China, limitando a acção de empresas chinesas no estrangeiro, por exemplo.
Novamente a China se irá aproveitar das especificidades dos regimes democráticos capitalistas, cada vez mais dependentes da capacidade de manter empregos e da qualidade de vida dos seus cidadãos, balizados por princípios democráticos de Direitos, Liberdades e Garantias, enquanto a China se manterá um regime autocrático, ditatorial e comunista, com um Grande Objectivo, de ser a Grande Potência Global do Século 21, económica, tecnológica e militarmente e derrubar os Estados Unidos da sua actual posição.
A China tem o tempo, o regime político, a capacidade, a determinação e ambição que mais nenhum país possui. A China pensa a longo prazo, mas actua diariamente, no sector público e privado, de forma homogénea e pragmática, orientada por uma visão, liderada por um comando único, o Partido Comunista Chinês. Terá o Ocidente capacidade e vontade para resistir ao expansionismo chinês ou será já tarde demais para combater e vencer o Dragão comunista?