Há um debate que se tornou recorrente nos meios académicos. Estamos ou não perante uma nova Guerra Fria, agora que o mundo está a bipolarizar-se com os Estados Unidos a tentarem capitalizar as democracias e a Rússia a chegar mais perto da China?
É cedo para perceber qual o rumo das relações internacionais nesta guerra de transição de poder que está a opor os EUA à China. Mas há uma pergunta a montante que tem sido posta com menos regularidade e que parece mais importante para o futuro que se aproxima: a China é uma potência com um modelo que atrai outros Estados do mundo? Ou, por outras palavras, uma autocracia nacionalista é, em si, um projeto ideológico expansionista e replicável?
Xi Jinping tem vindo a dizer que sim. Num discurso de 2017 argumentou que “o caminho, a teoria, o sistema e a cultura do socialismo com características chinesas tem-se desenvolvido continuamente, abrindo um novo caminho para outros países em vias de desenvolvimento atingirem a modernidade. [O modelo Chinês] oferece uma nova opção para outros países e nações que querem acelerar o seu desenvolvimento enquanto preservam a sua independência”. Os números parecem confirmá-lo. Há cada vez mais Estados, especialmente em África, mas também na América Latina, que veem no exemplo chinês uma alternativa viável para replicar nos seus próprios países.
Até há relativamente pouco tempo, o Ocidente prestou pouca atenção a esta questão. Até que a administração Biden colocou a China na categoria “autocracias” e a declarou rival do mundo livre. Esta carga ideológica que sobressai dos discursos e documentos proferidos e publicados pelo novo presidente dos Estados Unidos pede uma reconsideração deste tema. Há cinco elementos que merecem análise.
Em primeiro lugar, o nacionalismo, em si, é uma ideologia muito poderosa, mas particularista. Não é motivo de expansionismo. Mas pode ser motivo de ressentimento. Muitos nacionalismos construíram-se em oposição a outros. É o caso chinês: tem um alvo imediato – o Japão e os horrores perpetrados na II Guerra Mundial –, mas a narrativa chinesa não poupa o Ocidente, responsável pelo “século de humilhação” a que expôs o gigante asiático (referente ao declínio chinês devido às Guerras do Ópio). Esta narrativa vem dos tempos de Mao Tsé-Tung, mas arrasta-se até aos dias de hoje.
Segundo, a clivagem que renasceu na presidência Biden – democracias vs. autocracias – não nasceu da sua imaginação, mas sim dos debates do século XIX entre progressistas na Europa e nos Estados Unidos. Foi nesse momento que se identificou uma diferença fundamental entre estes dois regimes, sendo atribuídas características benignas aos primeiros (capacidade de cooperação e resolução de conflitos de forma pacífica, transparência nas relações internacionais, cumprimento das regras do Direito Internacional e a necessidade de responder à opinião pública, o que travaria ímpetos expansionistas) e características menos benignas aos segundos (desrespeito pela integridade das nações, política externa agressiva e hubrística e desrespeito pelos direitos humanos dentro e fora das suas fronteiras). Pode argumentar-se que já nada sobra deste debate. Que os anos de liderança internacional das democracias demonstram o contrário. Mas a verdade é que, como se tem visto pelas declarações vindas dos EUA, a clivagem está bem e recomenda-se.
O que nos leva ao terceiro ponto: estando a democracia em declínio, com a cedência de vários líderes a tentações iliberais, entende o presidente americano que esta clivagem tem mais sentido que nunca. Por um lado, obriga alguns líderes a definirem-se; por outro, as definições de democracia não são tão rígidas que não possam abarcar alguma iliberalidade na tentativa de moldar, com incentivos, o caminho de um conjunto de países.
Em quarto lugar, a China tem um modelo económico próprio, o chamado “Capitalismo de Estado” que é, efetivamente, exportável. As empresas chinesas e fluxos comerciais são completamente controlados pelo regime, que beneficia de um estatuto especial concedido pelo Ocidente quando ainda se acreditava que o “engagement” económico de Pequim nas instituições internacionais faria deste gigante um ator político responsável, que eventualmente se democratizaria à força do crescimento da classe média, que exigiria maior liberdade.
Esta ingenuidade levou a que Pequim tivesse tempo para dar passos seguros rumo a uma legitimidade relacionada com o bem-estar económico da população, ao mesmo tempo que investia no controlo dos cidadãos. Xi Jinping introduziu, ainda, o slogan “sonho chinês” (como um contraponto ao “sonho americano”), que consiste numa coletivização, isto é, a inclusão de todos os chineses no esforço conjunto do rejuvenescimento e do triunfo da nação. Entretanto, Pequim transformou-se na primeira autocracia tecnológica do mundo. E este modelo – menos sangrento e altamente eficiente – pode, na verdade, tornar-se popular entre aqueles que não gostam da liberdade. A China tem, aliás, tentado mostrar ao mundo o seu sucesso no controlo da pandemia, ainda que seja difícil saber da autenticidade dos números.
Finalmente, a China já não esconde o seu desígnio de grandeza. Tem um projeto expansionista – as Rotas da Seda, terrestre e marítima – que visa o controlo de praticamente todas as rotas comerciais. Caso atinja o seu objetivo, mergulharia o mundo numa dependência que o transformaria da forma que Pequim bem entendesse. E fechamos um ciclo: se o nacionalismo chinês é antiocidental, quem seriam os primeiros prejudicados?
A China não coloca aos Estados Unidos o mesmo tipo de disputa ideológica que a União Soviética. Não há duas ideologias do progresso a combaterem pelos corações e mentes do mundo. Mas os cinco elementos que referimos, o nacionalismo antiocidental, a clivagem entre democracias e autocracias, o declínio da democracia, a criação de um modelo social alternativo ao Ocidente e o desejo chinês de expansão ameaçam a permanência da ordem internacional liberal (que se procura agora que seja mais restrita e defensiva) e a própria democracia como regime viável e legítimo. As ameaças ideológicas, como a História, não se repetem. Mas reaparecem com desafios diferentes, mais subtis, mas não necessariamente menos perigosos.