É de conhecimento comum que tudo o que tem acontecido em Portugal desde junho de 2011 é culpa do Dr. Passos Coelho. Há uma ou outra coisa de que o culpado terá sido o Professor Cavaco Silva, mas isso foi antes. Percebe-se. As coisas têm tendência para correr mal quando o PSD ganha eleições. Se o PSD ganha, o País piora. É tão cristalino que nem merece discussão. Pelo menos nos meios da esquerda. A mesma esquerda que tem mantido o governo de Portugal com relevantes sucessos desde 2015. É a opinião deles e quem sou eu para discordar. Não há pira de Pedrogão nem SNS entupido que os faça mudar de opinião.

Foi o governo do Dr. Passos Coelho quem resolveu o imbróglio da Troika, cuja razão de ter acontecido estará mergulhada no facto de ter havido o PSD que não apoiou a esclarecida e patriótica governação do PS de antanho, o mesmo de hoje.

Ora, durante esse tenebroso período de governação cafajeste – andava há anos à procura de uma oportunidade para usar esta deliciosa e musical expressão –, a do Dr. Passos Coelho, aconteceram alguns episódios marcantes para a saúde pública em Portugal. Não vou discorrer sobre todos eles, até porque isso só serviria para levar a que se enchessem caixas de comentários sobre o mal que o Passos fez ao SNS e à saúde dos Portugueses. Não lhes interessará constatar que, mesmo sob o jugo dos pesados encargos que o Eng. José Sócrates nos tinha deixado… nada disso, que a estuporada governação do Dr. Sá Carneiro e seus sucessores nos tinha deixado, o cumprimento do investimento público previsto nos Orçamentos foi maior do que com a governação do Dr. António Costa, que as dívidas do SNS diminuíram como nunca antes tinha acontecido — graças a uma dotação orçamental para a saúde que nunca tinha sido tão alta como foi em 2012 — que o número de Unidades de Saúde Familiar foi crescendo, que houve sempre aumento de camas de cuidados continuados, o número de profissionais e de horas de serviço desses profissionais no SNS nunca deixou de aumentar e houve marcos significativos na política de saúde pública.

Desses, devo realçar a revisão da legislação sobre consumo de álcool que passou a proibir o consumo por menores de 18 anos, a efetiva eliminação das lojas que vendiam drogas não ilegais, as smart shops, a criação dos programas prioritários de saúde pública, a revisão do Plano Nacional de Saúde que ainda está em vigor e não foi renovado por incúria de quem agora nos governa e a introdução de medicamentos inovadores, de que devo destacar os fármacos para o tratamento da hepatite C, alvos de um acordo que ainda é considerado modelar para a negociação de preços pelo INFARMED e amplamente louvado em toda a Europa. Poderia continuar, mas a razão que aqui me traz hoje é assumir, com clareza, a culpa de Passos Coelho em dois eventos que deveriam ter merecido libelo acusatório maior do que a comunicação social entendeu proferir.

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O primeiro relaciona-se com a condenação em Portugal, uma estreia, pela prática de mutilação genital feminina. Graças à nefasta ação da Dr. Teresa Morais, com quem tive a enorme honra de colaborar, foi possível criar legislação penal e todo um sistema de identificação, alerta e prevenção da mutilação genital feminina nas instituições de saúde em Portugal. Graças a essa vil mestria de um governo do PSD foi possível intervir e proteger meninas a quem a tradição e a ignorância condenam a uma cruel prática que, claro está, alguma esquerda tribalista mais assanhada chamará de “resquícios do colonialismo inconsequente e malvado que mais não é do que uma manifestação de protesto contra a opressão dos Europeus, apenas comparável à queima de sutiãs. Acabe-se com a servidão sexual, corte-se o clítoris que as torna escravas do prazer”. Pois bem, o governo do Dr. Passos Coelho, ainda que obscurantista, pensou diferente e tomou um conjunto de medidas que conduziram à identificação e condenação de mãos criminosas, culpadas da execrável mutilação sexual de meninas africanas.

O segundo momento que passou despercebido foi o da entrada em vigor das disposições sobre consumo de tabaco que agora é proibido em locais de uso público partilhado, tais como bares e restaurantes. Noto que nem os sindicatos saudaram a entrada em vigor de uma lei que tudo fez para responder aos desejos das centrais sindicais e contribuir para a proteção da saúde dos trabalhadores. E nas principais causas de perda de anos de vida saudáveis, apesar da COVID-19, ainda continuamos a ter as doenças cardio-cerebrovasculares e o cancro. Por sinal, com a COVID-19, a mortalidade e morbilidade por estas doenças está a aumentar, devotadas ao desprezo das autoridades de saúde. Seja como for, o evitamento e abandono do consumo de tabaco contribui para diminuir o risco de COVID-19, assim parece, efeito conseguido por via direta (proteção dos epitélios respiratórios e manutenção da integridade do filme mucoso) e indireta (diminuição de risco cardíaco e de hipertensão arterial, além de prevenção de doenças respiratórias obstrutivas), e previne, não há dúvida, as doenças vasculares e o cancro.

Nestes exemplos de efeito legislativo social e sanitariamente benéfico, a culpa é mesmo do Passos. Uma “culpa” boa e verdadeira. Quanto à relação entre Passos Coelho e a importação de variantes de SARS-CoV-2 já tenho algumas dúvidas. Mas isso é um problema meu que não tenho a onisciência da esquerda.

Bem sei que a pandemia, com a inevitabilidade dos encerramentos e desemprego para que muitos foram empurrados, em parte pela clarividência do Dr. António Costa, não é momento para lembrar os horrores da mutilação de meninas, a quem não querem autorizar a ser mulheres completas, nem para louvar êxitos, politicamente bem difíceis, na luta contra o tabagismo. Infelizmente, a situação desesperada do setor hoteleiro e da restauração não se compadece com reflexões de como é possível encontrar consensos em política de saúde, sempre que a ciência prevalece.

Mas, sabendo nós que a pandemia passará e a mortalidade por outras causas continuará a crescer nos próximos anos, qualquer contributo, por menor que seja, para prevenir mortes será sempre bem-vindo e merecedor de referência. Quando os efeitos positivos das medidas de Passos se tornarem ainda mais evidentes, não faltará quem atribua os êxitos à esclarecida capitania de António Costa.

Ora, esta convicção de saber tudo e de superioridade moral que só poderá caber no campo do divino, a visão maniqueísta de bons e maus, culpados e inocentes, motores e obstaculizadores, sábios e ignorantes, tem sido um dos maiores entraves ao estabelecimento de políticas, normativos e ações, consequentes e perenes, em saúde pública. Em escritos anteriores já apelei por diversas vezes para que haja concessões da política à ciência, do facciosismo ao bom-senso, do intelectualmente possidónio ao bom gosto. Não quer isto dizer que se desarme a crítica, bem pelo contrário, porque ela faz muita falta. Basta que os atores que se comportam como cavalos de corrida, lançados em galope para uma meta que nem sabem bem onde é, tirem as palas.

Volto a um texto que escrevi logo no início da epidemia de COVID-19. Nele citei uma reflexão sobre a capacidade de resposta dos sistemas de saúde a grandes ameaças, como a do SARS-CoV2, que terminava com 3 pontos importantes.

  1. É preciso integrar todos os serviços, não só do sistema de saúde, para adaptar a sociedade e absorver o choque.
  2. É difícil, embora importante, combater a geração de propagação de notícias falsas
  3. Acima de tudo, para responder às crises, é extremamente importante a confiança dos doentes, dos profissionais de saúde e de toda a sociedade, para com o seu governo.

Será que tem sido assim, em Portugal? Estou em crer que não. Ainda não. Concordo com o Senhor Presidente da República que nos diz ser mais importante garantir que o governo ultrapasse a crise do que derrubá-lo. Mas só se pode ajudar quem se deixa ajudar.