Houve uma altura em que tive a ideia de aprender russo. Apesar da azáfama do quotidiano e da crónica falta de tempo no admirável mundo novo em que vivemos, a circunstância de dar aulas na Faculdade de Letras de Coimbra parecia tornar a extravagância viável. Afinal, as aulas de Cultura e Língua Russa decorriam na mesma Faculdade e o colega que as leccionava, com quem falara algumas vezes, tinha pela língua um entusiasmo transbordante. É claro que, mea culpa, tudo ficou rapidamente pelas intenções. Como era previsível, impôs-se a dispersão voraz dos dias que impiedosamente passam por nós. Eram as aulas e sua preparação. Eram as publicações e compromissos. Eram as conferências, júris, avaliações e demais actividades académicas. Era a omnipresente e sempre odiada burocracia. Eram as reuniões, por vezes intermináveis, em que consumimos tempo e paciência. Enfim, as aulas de russo foram rareando para desaparecerem pouco depois.
Vem isso a propósito do mais recente caso ocorrido na Universidade de Coimbra. O colega que então leccionava russo era Vladimir Pliassov, professor que chegara à Faculdade de Letras no já longínquo ano de 1988. Bem humorado, empenhado no ensino, afável nas relações e solícito com os alunos, Pliassov era também visivelmente apaixonado pela Rússia, pela sua língua, civilização e escritores, de quem falava com orgulho e admiração. Foi este colega que, há poucos dias, dois «activistas» ucranianos, pouco interessa se bem ou mal intencionados, resolveram denunciar como um perigoso agente da «propaganda imperial russa». Aparentemente tinham descoberto, mediante arguta investigação e segundo o que declararam depois, que se tratava de um «ex-agente do KGB». Só que as rigorosas provas apresentadas resumiram-se, para desconcerto dos curiosos, à afirmação de que «toda a gente sabia», assim subtilmente apresentadas por parte de um pertinaz comentador que, com a autoridade moral inconteste do púlpito televisivo, também assumiu o libelo. Quem sabe confundindo-se na geografia, acusavam-no também de ter mostrado em Portugal símbolos ligados à história e cultura russas, agora proibidos na Ucrânia. Recriminavam-no por falar de escritores favoráveis à Guerra e a Putin. Repudiavam as suas naturais referências a Kiev, e ao que é hoje território ucraniano, num artigo filológico que escrevera sobre história da língua russa. Por fim, publicavam, como prova de crime, uma fotografia já publicada há uns anos, supostamente comprometedora, em que o imprevidente agente secreto, por momentos esquecido das suas tenebrosas actividades subversivas, se mostrava numa sala cheia de gente, num almoço onde eram recebidos pelo Governo russo vários intelectuais, artistas e professores. No entanto, e por ridículo que possa parecer se não fosse triste, foi quanto bastou para, de um dia para o outro, provocar a sua demissão. Vladimir Pliassov foi escorraçado da Universidade de Coimbra ao fim de 35 anos de trabalho, no ano em que, depois de fazer 70 e já aposentado, se tinha disponibilizado para continuar a leccionar graciosamente.
Convém reparar neste lamentável episódio não apenas pela dimensão humana do sucedido – o Prof. Pliassov tem família, amigos e reputação – mas também porque nas acusações dos «activistas» se reúnem, em síntese perfeita, todos os efeitos do clima de caça às bruxas que marca a época em que parece estarmos a entrar. Tais efeitos resumem-se em duas palavras singelas: medo e estupidez. O incremento da estupidez é mesmo o efeito imediato da caça às bruxas. É esta que desponta crescentemente na cultura de denúncia, puritanismo e cancelamento que hoje começa a assolar a universidade. Alguns escritores russos contemporâneos que, entre muitos outros, Pliassov terá mencionado, Limonov e Prilepin, foram ou são, de facto, nacionalistas, apoiantes da guerra e da política expansionista de Putin (na verdade, Limonov foi crítico de Putin e chegou a estar preso, mas por defender políticas mais radicais que as dele). Contudo, são também escritores consagrados, premiados e reconhecidos, cuja obra é tida como fundamental para a compreensão da Rússia pós-soviética. Ao contrário do que acontece em línguas como inglês, francês, italiano ou espanhol, e como infelizmente é costume, nada ou quase nada deles está traduzido em português. Perante isto, que querem afinal os «activistas»? Que se proíba mencionar tais escritores na universidade portuguesa? Que se marque as suas obras com um carimbo a dizer «perigo» ou «cuidado»? Que esses livros sejam queimados em penitência, como ainda há pouco tempo aconteceu ao Tintim no Canadá? Que sejam corrigidos e anotados por uma qualquer comissão censória, constituída certamente pelos zelosos «activistas»? Seja qual for a hipótese, nenhuma delas augura nada de bom. Em qualquer dos casos, o conselho que se dá aos estudantes universitários é claro: que vivam na sua pequena redoma e não leiam nem queiram saber do que lhes pode soar estranho, perturbador ou ofensivo. E dá-se também um correlativo conselho aos professores: que, para não terem chatices, prefiram ignorar e silenciar tudo o que possa suscitar o melindre de «activistas» indignados.
Bem sei que, nos dias que correm, nos autodenominados oásis de liberdade que são as democracias liberais ocidentais em que vivemos, a denúncia e o banimento de escritores malditos já nada é de novo. Temos vindo gradualmente a habituar-nos ao insólito. Há poucos anos, por exemplo, um colega francês conseguiu escrever um livro argumentando que a obra de Heidegger, em virtude das suas posições políticas, não deveria ter lugar numa biblioteca filosófica. Tal como hoje não está fora de cogitação que almas sensíveis de jovens universitários se recusem a ler Pound ou Hamsun, D’Annunzio ou Jünger, Drieu la Rochelle ou Céline, sem saberem o que perdem. No entanto, que o clima instalado leve a decisões sumárias e drásticas desta natureza é já um passo em frente. É um precedente insólito e inquietante. É-o, desde logo, porque, num natural efeito de bola de neve, as acusações a Pliassov não se ficam por aqui. Os «activistas» não o acusam apenas de falar de livros malditos. Acusam-no também abertamente de «achar», de «pensar que», de ter opiniões próprias. Acusam-no de as ter, pasme-se, sobre o significado político da invasão russa da Ucrânia, sobre o regime russo (ou sobre o regime ucraniano, que também existe) e sobre a história do seu país. Portanto, para além do clima de vigilância e do receio de ler e comentar livros, surge agora, na universidade, o condicionamento, a proscrição de opiniões e a promoção do receio de exprimi-las. Por muito que tal seja a conclusão lógica do ambiente de caça às bruxas para onde alegremente caminhamos, uma universidade não pode incorporar estes passos.
Hannah Arendt chamou em tempos a atenção para a distinção existente entre factos e opiniões. Parece hoje urgente recordá-la. Sobre as causas e origens da Primeira Guerra Mundial, dizia ela citando Clemenceau, poderíamos ter várias opiniões. Mas era um facto que tinha sido a Alemanha a invadir a Bélgica, em 1914, e não o contrário. O mesmo vale para o momento presente. A Rússia invadiu a Ucrânia e é ela a agressora. Tal não é matéria de opinião mas de facto, por mais que à guerra se possa chamar «intervenção militar especial» ou «operação de paz». Contudo, as razões de uma invasão podem e devem ser discutidas, sem que isso torne aceitável a violência, fora da lógica simplista dos maniqueísmos para onde nos empurram televisões e comentadores. Nos países beligerantes, naturalmente, o esforço de guerra levará sempre ao condicionamento das opiniões expressas publicamente. Foi assim no passado, em Portugal; será assim na Rússia e na Ucrânia, no presente. É uma simples questão de realismo reconhecê-lo. Mas acontece que Portugal não está em guerra. E, por maior que seja a solidariedade para com os refugiados ou até o apoio do Governo português à Ucrânia, tal não pode justificar que entre nós se torne admissível demitir alguém sumariamente por suposto delito de opinião.
No fundo, infelizmente, tudo se resume a isto. Se houver suspeitas, indícios ou notícias de que algo anormal se passa numa universidade, nas suas aulas ou nos seus centros de investigação, não se pode prescindir de um processo de averiguações em que se ouçam queixosos e visados. É a mais elementar exigência da justiça e da decência. Decisões sumárias tomadas no seguimento de boatos ou comentários televisivos – comentários onde são fáceis ataques ad hominem e assassínios de carácter a adversários sem defesa – nada mais representam que uma espécie de oficialização da época de caça às bruxas que parece avizinhar-se. Na universidade, transigir com tudo isto em silêncio tem um preço demasiado alto. É o preço da liberdade.