Primeiro, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social decidiu que fazia parte das suas digníssimas funções explicar a José Rodrigues dos Santos como se deve fazer uma entrevista a um candidato durante uma campanha eleitoral. Agora, tendo pelos vistos ganho hábito e gosto, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social determinou que faz parte das suas abençoadíssimas funções explicar aos jornalistas o bê-á-bá de como se deve noticiar um incêndio. O problema é que, como seria de esperar, o resultado é uma pequena desgraça. Por um lado, o que se intui da lição da ERC é que quanto menos se mostrar a realidade, melhor — o que é, para sermos sinceros, habitual naquela entidade. Por outro lado, na tentativa de teorizar sobre o papel do jornalismo em tragédias como estas, a ERC acaba por nos torpedear com evidências e com tautologias — o que é, ao mesmo tempo, inútil e dispensável.

Foi na terça-feira, quando uma parte substancial do país estava a arder, que a ERC emitiu um comunicado com o título “Cobertura informativa de incêndios florestais” que, segundo tem a gentileza de nos informar, pode ser lido em rápidos dois minutos. É, sem dúvida, um tempo bem gasto para quem quer perceber como pensa a ERC. No documento, escreve-se, por exemplo, isto: “As práticas jornalísticas adotadas neste tipo de circunstâncias dramáticas devem garantir um tratamento informativo rigoroso e isento, prosseguindo o escrupuloso cumprimento das normas ético-legais da atividade jornalística e o respeito pelos direitos fundamentais dos cidadãos afetados.” Como se perceberá depois de ler isto, um jornalista que esteja sedento de aprender quais são, afinal, “as práticas jornalísticas adotadas neste tipo de circunstâncias dramáticas” chega ao fim do parágrafo e fica com o coração trespassado por três dúvidas lancinantes. Primeira: será que os jornalistas devem “garantir um tratamento informativo rigoroso e isento” apenas quando tratam de “incêndios florestais”? Segunda: será que os jornalistas só devem “prosseguir o escrupuloso cumprimento das normas ético-legais” da sua atividade quando tratam de “incêndios florestais”? Terceira: será que os jornalistas só devem mostrar “respeito pelos direitos fundamentais dos cidadãos” quando tratam de “incêndios florestais”? Na minha inexperiência e ingenuidade, estava convencido de que estas três coisas deveriam ser feitas em todas as circunstâncias e não apenas em algumas que merecem a distinção de comunicados da ERC. Mas, humildemente, devemos estar sempre todos prontos para aprender com a Entidade Reguladora para a Comunicação Social.

No mesmo documento, a ERC acrescenta: “O tratamento jornalístico de catástrofes deve assegurar escrupulosamente o dever de rigor, abstendo-se da formulação de juízos especulativos e da divulgação de factos não confirmados.” Portanto: além de “garantir um tratamento informativo rigoroso”, coisa que era pedida no parágrafo anterior, os jornalistas devem também “assegurar escrupulosamente o dever de rigor”, coisa que é solicitada neste parágrafo. São duas exigências que, aparentemente, os reguladores entendem que são absolutamente distintas e que, portanto, merecem referências separadas. De forma similar, neste parágrafo a entidade reguladora avisa os jornalistas que não devem embarcar na “formulação de juízos especulativos” e, mais à frente, admoesta-os a evitarem “especulações” sobre o “acontecimento”, ficando o leitor do comunicado livre para decidir o que distingue a primeira recomendação da segunda.

A ERC está ainda muito preocupada com “o recurso a frases estereotipadas”, com “o uso excessivo de adjetivação” e com a utilização de “lugares comuns/generalizações”. Isto, se calhar, impediria os jornalistas de reproduzirem as declarações do primeiro-ministro no final do conselho de ministros extraordinário desta semana, nas quais Luís Montenegro dizia que estamos a viver “horas difíceis” (uso de adjetivação), afirmava que “não podemos perdoar a quem não tem perdão” (lugar comum/generalização) e alertava que “existem interesses que sobrevoam estas ocorrências” (recurso a frases estereotipadas).

A ERC avisa ainda, de forma solene, que “o recurso a fontes oficiais de informação deve ser privilegiado”. Achei especial graça a este mandamento porque, numa reportagem do Observador realizada no posto de comando da Proteção Civil e publicada esta semana, conta-se que “o trabalho dos jornalistas ajuda também a ter informações em tempo real sobre o terreno”. Um exemplo: “Foi através de um direto televisivo que o posto de comando teve confirmação que o grupo de bombeiros enviado para a região de Cumeada estava a ter sucesso no combate às chamas”. Mesmo durante “catástrofes”, os jornalistas continuam a ser jornalistas, não se transformam em assessores de imprensa, nem em pés de microfone, nem em gurus da propaganda.

E sobra, claro, a questão da culpa. Em Portugal, sabemos que podemos sempre contar com isto: quando o país arde, as autoridades (sejam elas políticas ou regulatórias) acabam sempre por insinuar que os jornalistas são responsáveis por eventuais comportamentos miméticos de aspirantes a pirómanos. É como se, em 1981, depois de John Hinckley Jr. ter tentado assassinar Ronald Reagan para chamar a atenção da atriz Jodie Foster por ter ficado impressionado com a prestação da atriz no filme Taxi Driver, alguém se lembrasse de culpar o realizador Martin Scorsese pelo tiro que atingiu o Presidente americano. Se criássemos uma Entidade Reguladora do Cinema, se calhar podia ser feito um comunicado sobre isso.

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