Quem está a par dos velhos debates das relações internacionais está familiarizado com o conceito de universalismo. É belíssimo na teoria: veio do Iluminismo e da ideia de que todos os seres humanos são dotados de um conjunto de características, que os fazem desejar as mesmas coisas e usar os mesmos meios para as alcançar. Ora, isto tem um conjunto de implicações político-filosóficas. Mas vamos apenas considerar as suas consequências internacionais.

Implica que, sob este princípio, os estados mais poderosos tem legitimidade de ditar o que é melhor para todos os outros, ainda que nada do que consideram “universal” seja do agrado dos povos por razões históricas ou culturais. Não quer isto dizer que não haja universalismos mais benignos que outros. Quer dizer que as imposições têm sempre curta vida. Porque são isso mesmo: imposições.

A verdade é que cada vez que o “universalismo” na política internacional deu um ar da sua graça, o mundo pagou um preço elevado. Talvez uma das pouquíssimas vantagens da ordem que aí vem seja esta: interiorizarmos que existem várias formas de ver o mundo e esperar que, enquanto as grandes potências se entendem, possa haver ordens regionais, ou mesmo ideológicas, que tenham como principal missão a sua proteção territorial e a da sua forma de vida.

Um pouco como aconteceu durante a Guerra Fria. Mas desta vez com consciência de que a proteção de determinado regime não tem de ser necessariamente à custa do desaparecimento do outro. Até porque o colapso de uma potência por desgaste prolongado é uma coisa que não se pode prever nem contar nos cálculos políticos. Voltaremos a um mundo de grandes potências onde a força militar e as afinidades (que vão um bocadinho além do tipo de regime) ditarão as alianças. Ou, como se diz à maneira da Ásia, as parcerias estratégicas.

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Para a Europa esta transformação, em que os EUA, o seu aliado preferencial, deixou de lado o universalismo democrático e passou a optar pelas alianças had hoc e pelas alianças por afinidades, que nascem do nativismo desta administração (veja-se o Quad que reúne países anglo-saxónicos e os seus aliados asiáticos), é profundamente prejudicial. A Europa sabe cooperar, mas tem muita dificuldade em competir. Há uma ventagem, pequena: a da clarificação. Casa os Estados Unidos não voltem atrás – e nunca será como no passado porque Europa já não é nem palco da Guerra Fria nem existe uma aliança de democracias – teremos que nos organizar com o que temos, ou seja, encontrar novos aliados e repensar a nossa política de segurança.

Como? Começando por apoiar outras democracias. A Austrália viu-se a braços com uma China zangada pelo pedido de investigação da origem e disseminação do novo coronavírus. A Europa olhou para o lado. A Índia procura aliados com os quais se sinta “confortável”. Que a Europa lhe abra as portas. Não tenhamos ilusões: o sistema internacional que aí vem não interessa à Europa. Mas é nele que a Europa tem de sobreviver depois do fim da ilusão da do “universalismo democrático”.

Se a União Europeia tem dificuldades de ter uma política externa comum (e mais ainda de criar poder militar devido à sua originalidade como ator internacional) que saiba construir alianças nas suas especificidades. Caso contrário, o futuro não sorrirá ao nosso continente, mesmo que se mantenha uma potência económica, que se transforme numa potência científica e tecnológica (e vai ter que correr para apanhar os Estados Unidos e a China). Sem poder militar e sem aliados poderosos é muito difícil ter uma política internacional estruturada. E se a Europa já reconheceu esta realidade, continua a ter uma grande dificuldade de deixar o seu papel e a sua ambição de ser uma espécie de democracia exemplar. E se se mantiver assim vai continuar refém da ilusão de que há universalismos que lhe possam assentar, perdendo-se num mundo cada vez mais competitivo.