Não há outra forma de dizer: a Europa construiu a sua paz e prosperidade com base no fornecimento de segurança por parte dos Estados Unidos e da energia barata fornecida pela Rússia. Esta dupla dependência foi altamente favorável para todos nós. Permitiu-nos usufruir de décadas de paz e bem-estar inéditas na história. Foi tão favorável, que precisámos de uma guerra no nosso continente para questionarmos os fundamentos da nossa estabilidade confortável.
Avisos sobre o risco da dependência da Rússia não faltaram: a Guerra da Geórgia, a Guerra da Ucrânia de 2014 e a consequente anexação da Crimeia e o crescente desprezo de Moscovo pela Europa, que a diplomacia russa deixou de esconder há já vários anos.
O sentimento antieuropeu da Rússia deve ser lido no quadro da inimizade declarada aos Estados Unidos. Teve início unilateral em 2007 – sublinho unilateral – na Conferência de Segurança de Munique, onde Putin declarou a sua oposição hostil à unipolaridade norte-americana e à arquitetura de segurança europeia.
Mas é importante ter atenção a um pormenor: da perspetiva de Putin, a Europa não tem o mesmo estatuto que os Estados Unidos. Não é um estado soberano e por isso nunca poderá ser uma grande potência (como de resto a Rússia é, na perspetiva de Putin); não pode ameaçar a Rússia porque não tem estatuto militar autónomo; não pode ser um par da Rússia porque é uma civilização decadente nos seus valores pós-religiosos e pós-modernos.
Por isso – e porque o excecionalismo russo é messiânico-conservador – a Europa está condenada política, militar e moralmente, perante uma Rússia em plena ascensão política (soberana), cheia de capacidade militar e moralmente superior. Pior. A Europa é “um vassalo dos Estados Unidos”, de forma a que nem chega a ser um inimigo. Não merece muito mais que desrespeito diplomático e desestabilização permanente. Por ataques híbridos de vária índole, inclusive pelo apoio a “homens (e mulheres) fortes” europeus que partilham com o Kremlin a ideia de que as democracias liberais são regimes fracos e sem futuro.
Quanto à outra dependência, é preciso dizer que a relação transatlântica nem sempre foi um mar de rosas. Teve momentos bastante difíceis como as divisões em relação à Guerra do Iraque e a quase-rutura entre a Europa e a administração Trump. Mas ainda assim, comparar a relação transatlântica – assimétrica é certo – com a relação com a Rússia é não querer ver a realidade como ela é. Os Estados Unidos são nossos aliados. A Rússia é nossa inimiga.
Foi preciso a Guerra na Ucrânia para a Europa olhar para as suas fragilidades de sempre e começar a enfrentá-las. A nossa dupla dependência, que nos saiu barata durante décadas e o nosso sonho (irrealizável, de resto) de que podíamos nunca mais pegar em armas e, ainda assim, ditar regras de bom comportamento internacional, esfumaram-se, de um dia para o outro, porque a realidade que já era impôs-se definitivamente.
Regressar ao mundo real – o que, na minha opinião, só faz sentido no quadro transatlântico como bem têm entendido os líderes dos países europeus – está a ser difícil e vai ser ainda mais. Sem provocarmos, estamos indiretamente implicados numa guerra militar e diretamente implicados numa guerra comercial que não tem data para terminar. E dependemos do nosso inimigo.
Há muitas lições a tirar do nosso prolongado intervalo da história. Mas há duas imediatas. A primeira é que a Europa cometeu erros, mas não é “fantoche dos Estados Unidos”. É aliada dos Estados Unidos. Nem é uma entidade desprezível como Moscovo quer que pensemos. E repetir a propaganda russa, nas nossas línguas, nos meios de comunicação social europeus, não passa de antiamericano e antieuropeísmo que não nos faz falta nenhuma.
A segunda é que a Europa terá de fazer sacrifícios e terá de ser solidária entre si, não só porque subscrevemos e comprometemo-nos com esse valor (que não belisca o nosso interessa nacional), mas também porque os estados são senhores da sua soberania, mas a economia, a nossa maior frente de batalha, está indelevelmente interligada. Quer se goste quer não.
A guerra é um daqueles momentos na história onde não há duas oportunidades para tomar uma boa decisão. Não fizemos nada que evitasse este conflito, não fizemos nada que atenuasse as nossas dependências. Mas também não tomámos decisões, desde o colapso da União Soviética, que justifiquem o comportamento da Rússia. Agora temos de viver a nossa própria circunstância. Cabe-nos fazê-lo o melhor que pudermos. Cabe aos governos nacionais explicarem essa nova circunstância para que o apoio da opinião pública se mantenha firme. Joga-se aqui o futuro que, certamente, não voltará a ser o que o passado foi. Mas que se pode fazer de liberdade e democracia, que são bens em si só. Prefiro uma ordem transatlântica a uma ordem que até poderá ser próspera (caso a China entre na equação), mas onde os nossos direitos individuais não são reconhecidos.