“No dia 4 de Julho de 2024, reuniu-se o plenário do Dicastério para a Doutrina da Fé, para concluir o processo penal extrajudicial (…) contra Carlo Maria Viganò, arcebispo titular de Ulpiana, ‘acusado do delito reservado de cisma’”. A notícia da Vatican News é certamente chocante, mas não inesperada, pois já se sabia que o Dicastério para a Doutrina da Fé tinha aberto um processo canónico contra Viganò.

Embora arcebispo titular de Ulpiana, Viganò nunca esteve à frente de uma diocese, pois era apenas, como todos os núncios, arcebispo titular, ou seja, não efectivo.

O agora excomungado arcebispo destacou-se sobretudo como Núncio Apostólico nos Estados Unidos da América, precisamente por ocasião do escândalo dos abusos de menores por membros do clero norte-americano. São de então as suas primeiras divergências com o Papa Francisco, a quem publicamente acusou de não ter feito caso das suas chamadas de atenção sobre a conduta escandalosa do ex-cardeal de Washington, Theodore McCarrick, entretanto reduzido ao estado laical, mas não excomungado. Infelizmente, desde então, Viganò tem protagonizado uma atitude de contestação do Santo Padre e do seu pontificado, bem como do Concílio Vaticano II.

Segundo o comunicado do Dicastério para a Doutrina da Fé, “são bem conhecidas as suas declarações públicas em que se nega a reconhecer e a submeter-se ao Sumo Pontífice, bem como a aceitar a comunhão com os membros da Igreja submetidos ao Papa e a legitimidade e autoridade magisterial do Concílio Ecuménico Vaticano II.”

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Como consequência desta sua atitude, Carlo Maria Viganò foi declarado, pelo Dicastério para a Doutrina da Fé, “culpado do delito reservado de cisma. O dicastério declarou a excomunhão latae sententiae”. A remissão da censura, nestes casos, está reservada à Sé Apostólica.

A heresia, a apostasia e o cisma são, na Igreja, crimes que, segundo o Código de Direito Canónico, implicam a pena automática de excomunhão (cân. 1364), que é a máxima prevista no ordenamento jurídico da Igreja. Enquanto a heresia e a apostasia são delitos contra a fé, o cisma atenta contra a comunhão eclesial.

É herege o fiel que nega, consciente e voluntariamente, uma verdade de fé definida pela Igreja como, por exemplo, a virgindade perpétua de Maria, ou a presença real de Jesus Cristo na Eucaristia: “diz-se heresia a negação pertinaz, depois de recebido o baptismo, de alguma verdade que se deve crer com fé divina e católica, ou ainda a dúvida pertinaz acerca da mesma.” (cân. 751).

O fiel que nega uma verdade de fé, ou dela duvida, consciente e voluntariamente, de forma pertinaz, ou seja, reiteradamente, é herético. Nem todos os ensinamentos da Igreja são verdades de fé: as revelações privadas, mesmo reconhecidas pela Igreja, como as aparições de Lourdes e de Fátima, não são objecto da fé católica e, portanto, quem as negar não incorre, por esse facto, em heresia.

O apóstata é o cristão que nega a fé na sua totalidade, ou seja, como expressamente diz o cân. 751, assume “o repúdio total da fé cristã”. É apóstata quem, através de um acto formal, adere a outra religião, ou assume uma ideologia política, ou filosófica, incompatível com a fé cristã. Se um católico se fizer testemunha de Jeová, ou comunista, sabendo e querendo negar a totalidade da fé, apostata.

O cisma, embora também punido com a pena de excomunhão (cân. 1364), não diz respeito à fé, mas à comunhão eclesial: é “a recusa da sujeição ao Sumo Pontífice, ou da comunhão com os membros da Igreja que lhe estão sujeitos” (cân. 751). Neste sentido, é cismático quem recusar a obediência devida ao Santo Padre, bem como a comunhão com os demais pastores e fiéis da Igreja católica. Na medida em que essa atitude o retira da comunidade dos crentes, implica a excomunhão, que não significa propriamente a exclusão da comunhão eucarística, embora também dela fique impedido, mas a expulsão da comunidade dos crentes, ou seja, da Igreja. Foi o que aconteceu, em 1988, ao Arcebispo Marcel Lefebvre e aos quatro bispos por ele consagrados, cuja excomunhão foi levantada por Bento XVI, a 10-3-2009.

As excomunhões podem ser automáticas, ditas latae sententiae, ou como uma sentença de um processo judicial. As primeiras só se aplicam em casos muito graves, como o aborto realizado, a profanação da Eucaristia, a violência física contra o Papa, a violação do sigilo sacramental e a ordenação episcopal sem mandato papal. Algumas destas excomunhões estão reservadas à Sé Apostólica, ou seja, só o Papa, geralmente através do Cardeal Penitenciário, as pode levantar, embora, em perigo de morte, qualquer sacerdote as possa absolver, mesmo que reservadas à Santa Sé.

Do ponto de vista canónico, a excomunhão de Viganò é adequada, mas, pastoralmente, é discutível. Não obstante os recorrentes apelos de Francisco à misericórdia, o Dicastério para a Doutrina da Fé, sem dó nem piedade, aplicou ao ex-Núncio a mais grave pena eclesiástica. Decerto, a gravíssima e reiterada contestação do Papa e do Concílio Vaticano II, por Viganò, não podiam ficar impunes, mas era necessário excomungá-lo?! É razoável castigar assim alguém com tantos anos de serviço à Igreja e de vida moral irrepreensível e que talvez já esteja senil, quando não foram excomungados padres e bispos hereges e pedófilos?! Porque se excomungou Viganò, mas não McCarrick, que continua católico, nem Rupnik, que nem sequer foi demitido do estado clerical?! Será que, para o actual Santo Ofício, é mais grave discordar do Santo Padre do que negar uma verdade de fé, ou abusar de religiosas e de crianças inocentes?!

Salvo melhor opinião, Viganò poderia ter sido suspenso a divinis, proibido de pregar, ou até destituído do estado clerical, mas a sua expulsão da Igreja parece contradizer a consigna papal do “todos, todos, todos”. A lei canónica tem, como principal finalidade, a salvação das almas: as penas eclesiásticas devem promover a conversão e a inserção eclesial dos prevaricadores, não a sua exclusão.

Este impiedoso Dicastério, que sucedeu à antiga Inquisição, parece ter esquecido que, sendo todos, sem excepção, pecadores, só sendo misericordiosos com os outros poderemos também alcançar a misericórdia de que tanto carecemos.