A tão aguardada Cimeira União Europeia-Índia vai realizar-se este sábado, ainda que virtualmente. Mas do que vai sendo publicado nos jornais, ficámos a saber que não é bem uma cimeira, daquelas em que líderes de grandes potências debatem questões de segurança e política internacional. Afinal, parece que se trata de se ter chegado a uma fase importante de um acordo comercial que parece satisfazer as duas partes. Apesar de correr na imprensa que o melhor é não ter expectativas muito altas, porque muita coisa ainda parece estar por fazer, é um passo importante. Nova Deli nunca foi muito amiga de acordos desta natureza – o que significa que alguma coisa está a mudar. Mas ainda assim, depois do anúncio com tanta pompa e circunstância, esta cimeira sabe a pouco. Parece que nenhum dos lados tem ambição internacional para a tornar num marco histórico ou afirmar a sua presença no palco internacional.

Foco-me nas razões da Índia. Nova Deli foi, durante uma parte muito importante da sua história, um ator internacional defensivo, dotado de uma narrativa de quase pacifismo e tentando ocupar, no sistema internacional, um lugar de defensora dos mais oprimidos por um sistema político imoral que a Índia queria concertar. Ainda hoje se debate se essa política externa se deveu a uma estratégia pragmática que procurou encontrar especificidades políticas onde não havia força, ou se se tratava de um ímpeto “romântico” relacionado com uma história complexa de descolonização e de união de um território que nunca tinha sido um Estado e que estava ferido de desigualdades sociais instituídas. Seja qual for a explicação, Nova Deli tem, ainda hoje, dificuldades em libertar-se desta herança.

As mudanças graduais começaram nos anos 1980 e sofreram uma aceleração abrupta nos anos 1990 devido ao colapso da União Soviética – da qual a Índia era dependente. Mas o “momento indiano” chega, verdadeiramente, no final dos anos 2000, quando outros Estados reconhecem o seu potencial para se vir a tornar numa grande potência no sistema internacional. Nova Deli, que até aí olhava para si própria como um ator internacional relativamente deprimido, acredita que poderá ter a influência e o prestígio (valores muito importantes nas chancelarias indianas) que sempre desejou ter. Esta autoconfiança começa a sentir-se nas ações políticas, especialmente na sua vizinhança, mas também em interações internacionais, nomeadamente com os Estados Unidos. A administração de George W. Bush está entre os decisores que viram na Índia – e no seu regime democrático – uma potencial aliança que pode muito bem desequilibrar o poder na Ásia a favor das democracias. A atenção norte-americana relativamente à Índia teve um grande impulso na presidência Trump, que reaviva o Quad (Diálogo Quadrilateral de Segurança), no qual Nova Deli tem um papel fundamental. Já Joe Biden vai elevar esta parceria estratégica ao nível dos chefes de Estado, arrancando aos parceiros – Índia, Japão e Austrália – uma declaração comum de apoio a uma visão de um Indo-Pacífico livre de coerção (leia-se, sem interferência da China) e dotado de valores normativos democráticos. A Índia parecia, finalmente, disposta a aliar-se ao Ocidente e a ter uma política externa assertiva, pelo menos do ponto de vista regional.

A lógica ditaria que esta nova política faz sentido: o grande rival regional da Índia é a China, que, como a própria elite indiana reconhece, está alguns passos à frente, quer na dimensão regional, quer global. Tendo começado a sua reforma económica – e a sua industrialização – cerca de uma década mais cedo, deixa a Índia sempre refém dos “restos” comerciais e políticos. Seria do interesse indiano querer prender os Estados Unidos ao Pacífico – como fazem a Austrália e o Japão – para que o equilíbrio de poderes seja mais eficaz e a China não se torne numa hegemonia regional.

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Mas há entraves que vêm da própria Índia. Narendra Modi e a sua administração não são muito originais no papel que veem o seu Estado desempenhar no futuro: o de grande potência num mundo multipolar. Para isso continuam a política externa de Manmohan Singh e dos seus antecessores do Congresso: estabelecer um conjunto de relações privilegiadas com Estados que não se entendem entre si. Como referiu o ministro dos Negócios Estrangeiros indiano, S. Jaishankar, num livro publicado no ano passado, a política externa indiana passa por “empenhar-se na relação com os Estados Unidos, gerir a relação com a China, cultivar uma relação com a Europa, garantir a relação com a Rússia e trazer o Japão para mais perto da Índia”.

Se esta estratégia multivetorial, de ter boas relações com todos e não depender de ninguém, está em perfeita sintonia com a cultura estratégica da Índia, pode não estar de acordo com a evolução do sistema internacional, cada vez mais bipolarizado pela relação de rivalidade dos Estados Unidos e da China. Neste cenário, a projeção indiana não sobrevive se a Índia não fizer escolhas. E a história diz-nos que Nova Deli pode ser muito pouco flexível relativamente aos seus planos e princípios. Num cenário bipolar, a Índia poderia ter um papel crucial. As parcerias que quisesse fazer teriam um impacto profundo na distribuição de poder. Caso Nova Deli rejeite esta realidade, poderá acabar como durante a Guerra Fria: líder de um movimento cujo princípio central é a neutralidade (e o não-alinhamento), num sistema em que a neutralidade não tem valor político.     

É neste cenário que a Índia se encontra com a União Europeia. Na bagagem traz vontade de impor as suas condições, mas a timidez de quem não quer tomar posições definitivas. Daí que a cimeira se tenha tornado uma forma de criar laços comerciais (se tudo correr bem). Aquém da ambição inicial. A Europa parece agradecer. O seu comportamento enquanto ator internacional parece estar a aproximar-se do da Índia, com menor ambição. Parece-me uma oportunidade perdida. Em sistema de transição de poder como o que estamos a viver, os alinhamentos e reforços mútuos são dos mais importantes elementos políticos. E para a Europa e para a Índia parece que a política pode esperar até que o mundo se configure segundo os seus desejos.