Desde que Ursula von der Leyen tomou posse, em dezembro de 2019, que ouvimos vezes sem conta que iria liderar uma Comissão geopolítica. Queria isto dizer, mais coisa menos coisa, que a Europa passava a ser uma entidade tendencialmente autónoma, sem aliados preferenciais e sem vontade política de se alinhar com nenhuma potência. A ideia era que a Europa passaria a andar no mundo pelo seu próprio pé, uma experiência que já não tinha desde os anos 1940 (à qual não é alheia a política externa de Trump). Até agora tem corrido mal.

A Europa libertada desenhou planos ambiciosos. Dois exemplos: regular e liderar o processo da transição energética a nível mundial, ser um contribuinte líquido na questão da distribuição internacional de vacinas. Mudou o estafado nome de “potência normativa” para o mais moderno “potência reguladora”, implicando que a força europeia seria legislar antes dos outros nos mais diversos temas para influenciar quem se seguisse. Outra forma de poder internacional, diziam os mais bem intencionados em Bruxelas.

Acontece que há pormenores que os líderes europeus optaram por ignorar. Já não estamos nos anormalmente pacíficos anos 1990, marcados pela unipolaridade norte-americana – espero agora que se perceba o quanto esta fase foi favorável à Europa. Estamos nos turbulentos anos 2020, com uma transição de poder em curso, onde, ou muito me engano, ou a competição vai ser a tónica dominante nas próximas décadas. Outra questão esquecida é que a política internacional acontece para além dos desejos europeus. E exige meios para resolver problemas político-diplomáticos que se cruzam no caminho.

Assim, a Comissão geopolítica, munida apenas do seu discurso moralmente ressonante (aos olhos de quem o construiu) e do seu prestígio (muitas vezes mais imaginário do que concreto) lá se lançou no mundo a solo. O resultado está à vista. Não tardaram humilhações diplomáticas – da Rússia, da Turquia e de Marrocos, para citar os casos mais recentes – e agora uma crise política muito mais grave. Para prender um passageiro ativista, entretanto alegadamente torturado e sujeito à pena de morte, o ditador bielorrusso, contestado nas ruas, desviou um avião violando o direito internacional e pondo em risco centenas de vidas, muitas delas de cidadãos europeus.

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A Europa protestou com toda a razão e veemência. Prometeu sanções. Mas o tom das ameaças e a inação que se lhe seguiu mostram apenas uma coisa: uma impotência confrangedora. E essa impotência vem com um problema político gravíssimo: daqui para a frente, nenhum Estado se vai coibir de fazer o que quiser, porque a Europa, geopolítica e tudo, não tem meios para o travar.

A Europa é refém das suas ilusões: ainda na década passada se ouvia gente com responsabilidades políticas e académicas a afirmar que a Europa não precisava de forças armadas porque ninguém a ia invadir. Agora já devem ter percebido que os exércitos não servem apenas para travar guerras convencionais; servem para dissuadir outros de nos impor a sua vontade. Sem hard power não há ameaça de represálias. Não há diplomacia eficaz sem “cenouras” e punições. O que deixa a Europa à mercê seja de quem for. Esta é uma das regras mais antigas da política internacional que nunca desapareceu, ainda que a o velho continente tenha estado isento de a pôr em prática durante décadas, devido ao chapéu-de-chuva da NATO.

A Europa também é vítima dos seus interesses económicos. As principais potências europeias, aliciadas por negócios com a China e a Rússia, têm vendido o seu mais precioso bem: a segurança. A Europa colocou-se de livre vontade numa situação de profunda fragilidade, fazendo com que a autocracias explorem esta insegurança e as democracias suspeitem da sua confiabilidade. Só isso, aliás, pode explicar porque é que também a NATO se ficou pela retórica no episódio de Minsk. Um episódio que mostra que qualquer ditadura pode cometer crimes contra a Europa e safar-se com um cartão amarelo.

Este artigo não é só, nem principalmente, um lamento. É a tentativa de ver o mundo como ele é, de apreciar o resultado de sucessivas políticas erradas. Resta alguma coisa? Não tem ciência nenhuma. Nas relações internacionais sabemos há milénios como fazer para recuperar o estatuto internacional. Criar alianças firmes com Estados poderosos e reconstruir as forças armadas de forma a que elas sejam credíveis outra vez.

A Europa, a União Europeia, os Estados europeus individualmente dificilmente voltarão a ser potências. Mas podem ter um papel a desempenhar no sistema internacional. Veja-se o “convite” de Joe Biden na Conferência de Munique. Veja-se o poder económico que o bloco europeu ainda tem e as relações transatlânticas que lhe permitem desenvolver meios militares num enquadramento muito favorável. Agora o que a Europa não pode é hipotecar a segurança dos seus cidadãos. Os Estados europeus não podem permitir que a Europa faça isso. Sob pena de pagarmos um preço muito alto – talvez irreversível – nas décadas que estão para vir.