Já cá faltava a cena do “parecer vinculativo” do Conselho Nacional de Jurisdição para a golpada ficar mais composta. Foi a reprise de uma cena estreada há uns anos.
A peça do dito Conselho, junto com os Estatutos e Regulamentos, merece ser lida na íntegra e estudada nas faculdades de Direito: tem aptidão para ser um caso de escola de manipulação da Jurisdição para fins políticos, assim como de decisão irregular, ilegal e inconstitucional, cujo exame muito beneficiará os alunos a aprender o que não se deve fazer.
O “parecer” começa por se engalanar com a citação – e bem – do artigo 51.º, nº 5 da Constituição: «Os partidos políticos devem reger-se pelos princípios da transparência, da organização e da gestão democráticas e da participação de todos os seus membros.» É assim mesmo.
Dir-se-ia que seria para aplicar a norma. Nada disso. É efeito de ilusionista: enganas com uma mão para distraíres o que fazes com a outra. Metendo-se em atalhos e ruelas, curvas e contracurvas, o “parecer” conclui em negação da exigência constitucional que citou de princípio. Querer impor, como faz, o voto secreto na votação de uma moção de confiança é decretar e pretender forçar uma evidente lesão do “princípio da transparência” – repito, da transparência – e, por via desta, uma lesão também do “princípio da organização e da gestão democráticas”.
Os Estatutos do CDS-PP contêm a norma habilitante em que o Conselho se montou. É o n.º 5 do art. 40.º: «Compete ainda ao Conselho Nacional de Jurisdição emitir, a solicitação de qualquer órgão do Partido, pareceres, de carácter genérico, permanente e vinculativo, sobre a interpretação de normas estatutárias ou regulamentares e sobre integração de lacunas.»
O Regulamento de Disciplina repete-o ipsis verbis no art. 8.º. Diz o n.º 3: «Compete ainda ao Conselho Nacional de Jurisdição emitir, a solicitação de qualquer órgão do Partido, parecer sobre a interpretação de normas estatutárias ou regulamentares ou sobre a integração de lacunas.» E remata o n.º 4: «Os pareceres do Conselho Nacional de Jurisdição têm sempre carácter genérico, permanente e vinculativo.» Este regime foi introduzido, salvo erro, no período do portismo, que foi o seu primeiro utente e creio que único.
O Conselho pode, por conseguinte, interpretar normas – sobre que se suscitem dúvidas – e integrar lacunas. Porém, não fez nada disso. Inventou. Para avançar para a decisão pedida, teve de dar um garboso salto à frente em ousado mortal empranchado, invocando apenas “eu posso” e “o que eu digo vincula”. Não é assim. Só é em regimes de ditadura ou democracia iliberal.
Lacuna, não há nenhuma. O Regimento do Conselho Nacional regula directament a matéria. E norma duvidosa, também não é indicada. Espanta, na verdade, como, ao longo de oito prolixas páginas, o “parecer” não se digna referir qual é a norma estatutária ou regulamentar que está a interpretar. Lê-se da frente para trás e relê-se de trás para a frente as oito copiosas páginas e não conseguimos ver onde está a norma interpretada, qual a dúvida suscitada e porquê e, assim, a solução sabiamente descoberta para o angustiante enigma. Nada.
O pedido, ele próprio, não indica qualquer norma duvidosa. Limita-se a passar um atestado de menoridade aos conselheiros nacionais do CDS, condoendo-se por, votando de cara aberta, terem medo de expressar a sua vontade ou deixarem-se influenciar pelo curso da votação nominal. Diz o peticionante, citado no “parecer”: «Na votação nominal “cada Conselheiro Nacional é chamado, um a um, a indicar o seu sentido de voto, diante de todas as restantes. As restantes, à medida que vão sendo chamadas, não só exibem individualmente e solitariamente o seu sentido de voto, como sabem, nesse momento, qual o resultado provisório da votação.”» Não é a mui glosada angústia do guarda-rede antes do penálti, mas a inovadora angústia do conselheiro antes do voto.
O “parecer”, por seu turno, na sua farta, pronta e solícita resposta, também se esquece de indicar a norma que interpreta. Em verdade, não se esquece; omite-a propositadamente, porque não existe. Não existe norma a esclarecer, nem dúvida atendível. O Regimento do Conselho Nacional é claríssimo no art. 34.º, n.º 1: «Compete ao presidente do Conselho Nacional fixar a forma e o processo das votações, sempre que não haja disposição especial que os defina.»
Esta falta do CNJ é gravíssima. Primeiro, porque andou por lá. O “parecer” cita o n.º 2 do mesmo art. 34.º: «As deliberações que respeitem a matéria disciplinar, recursos, eleições ou nomeações serão tomadas através de votação por escrutínio secreto.» Mas, tendo lido o n.º 2, finge que não leu o n.º 1. Finge este esquecimento porquê? Para esconder que aquilo que queria fazer era usurpar os poderes do presidente do Conselho Nacional.
A matéria sobre que o Conselho quis decidir é uma matéria que, nos termos dos Estatutos e Regulamentos do CDS, compete exclusivamente ao presidente do Conselho Nacional. Dizendo de outro modo: o CNJ cometeu flagrante usurpação de poderes; violou a separação de poderes; e abusou, quando, sob o pretexto de interpretar normas duvidosas, não interpretou coisa nenhuma, mas pretendeu emitir um decreto autocrático, isto é, “legislou”. Ninguém lhe deve obediência. Pelo contrário.
Perante isto e nas circunstâncias difíceis de um incidente processual, os dirigentes podiam conceder a votação secreta. O presidente do Conselho Nacional tem esse poder e, se necessário, o próprio Conselho o podia confirmar. Assim fizeram, na pressão do calor da reunião e ponderando certamente, no plano político, o menos mau para o partido naquelas circunstâncias. Não tenho nada a contestar, pois só estando lá se pode ajuizar. Porém, tenho a opinião, que é discutível, de que, em bom rigor, não se deve determinar, mesmo querendo, o voto secreto fora das matérias expressamente previstas no Regimento: matéria disciplinar, recursos, eleições ou nomeações.
O voto secreto nos Parlamentos – os conselhos nacionais são os parlamentos dos partidos – é a excepção. E a excepção deve ser rara. A regra democrática é a votação aberta, que toda a gente pode seguir e ver. Não há democracia sem isso.
Não há democracia, se as eleições não forem por voto secreto; e não há democracia se o funcionamento dos órgãos eleitos não for de cara aberta. No fundo, é aquilo que, com fonte na Constituição, o “parecer” citou de início e não segue: os partidos «devem reger-se pelos princípios da transparência, da organização e da gestão democráticas e da participação de todos os membros.»
Os órgãos eleitos são constituídos por pessoas eleitas directa ou indirectamente, que estão sujeitas a escrutínio. Ora, o escrutínio só pode ser feito, se o sentido em que votam é visto e conhecido. São representantes que têm de prestar contas aos representados. Esconder é batota – é violação da democracia.
As moções de censura e de confiança são actos políticos da prática parlamentar e momentos da maior intensidade política. Não conheço nenhum Parlamento em que a votação dessas moções, essenciais na vitalidade da democracia política e parlamentar, seja feita por voto secreto. São sempre de cara aberta. Normalmente, por levantados e sentados ou por braço no ar; às vezes, por votação nominal. Seria grave lesão da democracia se o sentido em que os deputados votam fosse escondido; e que o resultado publicado não se soubesse como tinha sido gerado. Práticas escandalosas deste tipo talvez sejam consagradas na Venezuela ou na Bielorrússia, ou regimes similares. Não sei. Mas, se existem, não são exemplos para seguir.
O “parecer” enveredou ainda por excursões ao interior de dois partidos, para ludibriar os leitores. Primeiro, ao PCP, gastando tinta inútil com larga lengalenga a respeito de práticas deste e da aprovação da lei dos partidos políticos. O que diz está certo, mas não tem nada a ver com o assunto. O PCP opôs-se, porque era contra uma lei que ingerisse na liberdade de definição estatutária e queria manter a possibilidade de fazer eleições por braço no ar, se quisesse. Foi esta a questão sobre a obrigatoriedade do voto secreto – e bem. Mas isso é pacífico e não está em causa. Segundo, outra excursão ao PSD, dizendo que, num caso semelhante, “o Conselho Nacional do PSD e o seu Presidente decidiram e optaram pelo escrutínio secreto em vez de braço no ar, por se afigurar que só esta forma de votação assegurava a transparência necessária e a total liberdade”. Isto não é verdade; ou seja, é mentira, por sinal, grosseira. O que se passou é que, na altura, o Regimento do PSD atribuía, sem qualquer restrição, a 10% dos conselheiros o direito potestativo de provocarem a votação secreta. Accionado este direito no caso de uma moção de confiança, gerou-se acesa controvérsia entre a literalidade da norma (defendida pelos proponentes) e princípios gerais (invocados pela Mesa). A Jurisdição foi chamada a pronunciar-se e apoiou a literalidade da norma – no calor da disputa e em cima dos factos, nem podia decidir de outro modo. Havia norma expressa, sem qualquer ressalva. O votação secreta acabou por acontecer, por proposta da direcção. Mais tarde, o PSD reviu a norma estatutária e esclareceu o regime que, a meu ver, está correcto. O art.º 13.º do Regimento do Conselho Nacional fixa, hoje: «O disposto na alínea c) do número anterior [votação secreta requerida por 1/5 dos conselheiros presentes] não se aplica à votação de moções de confiança ou de censura.» Onde há Estado de direito e democracia, é assim.
No caso da reunião do Conselho Nacional do CDS, o caso era ainda pior. Por causa da pandemia, era uma reunião à distância, com recurso a meios telemáticos, o que coloca problemas especiais não só para assegurar transparência, democracia e participação, mas também a pessoalidade e liberdade do voto. O voto electrónico, à distância, sendo secreto, perturba a garantia de quem vota ser o titular efectivo do direito de voto estar a votar em plena liberdade. No voto electrónico, é um problema clássico, bem conhecido e muito debatido. Por isso, nos países onde se aplica em eleições (sempre secreto), o voto electrónico é exercido em locais públicos (secções de voto), onde pode ser devidamente garantida a pessoalidade e a liberdade de cada voto.
Esta circunstância torna ainda mais grave a decisão ilegal e inconstitucional do CNJ: abusou dos seus poderes, quis usurpar poderes atribuídos a outra instância e quis impor ao Conselho Nacional um sistema de voto frágil e vulnerável, na forma e na circunstância. Essa imposição – legislação em ditadura, pelo CNJ – ficou a pairar como uma assombração sobre o futuro do CDS.
A deliberação de favor, tomada na véspera à noite de um Conselho Nacional já com carga muito elevada, prestou mais maus serviços ao CDS – que bem os dispensa – e criou mais atritos, de que ninguém precisava. O partido precisa de união – que não é unanimidade –, a qual só pode existir na paz das regras. Isto é, quando todos conhecem, aceitam e respeitam regras de convivência, de debate e de decisão. A Jurisdição deve, aliás, ser o mais alto exemplo disto, para poder ser o seu mais fiel e respeitado zelador – em vez de principal ofensor. Quando se abre e reabre consecutivas zaragatas sobre as regras, cava-se o caminho para o desastre.
Pena ainda que muitos conselheiros, agitados defensores de um “parecer” ilegal, não tivessem considerado também os deveres que constam do art. 5.º do Regimento: «Observar a ordem e disciplina referidas neste Regimento e respeitar a autoridade do Presidente do Conselho Nacional ou dos Vice-Presidentes em exercício de funções; Contribuir pela sua diligência para a eficácia e prestígio dos trabalhos do órgão a que pertencem.»
Por isso, na linha do que já acontecera no Conselho Nacional de 12 de Janeiro, a reunião amolgou muito a imagem pública e o prestígio do CDS, com a única excepção do muito bom discurso do Presidente do partido, que salvou o dia e ganhou a moção de confiança.