Há tempos, ao ler os resultados de um inquérito anual feito na África do Sul (promovido pelo Institute for Justice and Reconciliation), fiquei particularmente surpreendido com um dos resultados. À pergunta sobre o que mais dividia o país, a resposta mais comum não era a raça, mas sim a desigualdade económica. Estes resultados são consistentes ano após ano. A divisão racial vinha num lugar mais abaixo — entre o segundo e o quarto, dependendo do ano.

É evidente que a sobreposição entre a divisão racial e a económica é tão grande que pode ser difícil distinguir uma da outra, podendo isso reflectir-se nas respostas ao inquérito. Mas, mesmo assim, os resultados são significativos, em especial se tivermos em conta que até há tão pouco tempo o apartheid fez da África de Sul um dos países onde a divisão racial era das mais gritantes do mundo. Mais significativo ainda se tivermos em conta que todos os grupos étnicos deram respostas semelhantes. Ou seja, na África do Sul, quer brancos quer negros consideram, maioritariamente, que não é a cor da pele que os divide.

Serve este preâmbulo para voltar à cena que Serena Williams fez com Carlos Ramos há semana e meia. A leitura imediata, a que mais incendiou a generalidade dos media, foi a de que se tratava de uma luta entre uma mulher negra e um homem branco. Mas há outras leituras possíveis. É possível ver ali um confronto entre uma estrela mediática, com um enorme poder de marcar a agenda, e um anónimo de que nunca tínhamos ouvido falar. Também é possível ver ali a luta de classes em acção. Perdendo a final, Serena Williams ganhou, naquela noite, um milhão e 800 mil dólares. Qualquer coisa como quatro mil vezes mais do que Carlos Ramos, que recebeu 450 dólares. Se tivesse ganhado, a diferença seria bastante maior, obviamente. Ou seja, foi uma discussão entre uma milionária e uma pessoa que, tanto quanto sabemos, é da classe média (ou média alta).

Pudemos ver, pelo coro indignado do New York Times, da New Yorker e da Newsweek, entre outros, que a generalidade da esquerda americana se identificou com a primeira causa. A acreditar no inquérito que refiro no primeiro parágrafo, se o mesmo se tivesse passado na África do Sul, a maioria negra ter-se-ia identificado com Carlos Ramos. Mas, pelos vistos, nos Estados Unidos, a ideologia que domina o Partido Democrata está bem representada pela assistência da final do U.S. Open.

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Este é um facto político da maior relevância. Numa época em que tanto se debate a desigualdade económica, em que tanto se clama por políticas de redistribuição que aproximem a classe média dos 1% de cima, pudemos ver no courtuma milionária a fazer bullying e a ameaçar um honesto trabalhador e a esquerda norte-americana, em peso, tomar partido pela representante dos 1%. Ou, na verdade, pela representante dos 0,1%, que é mulher e negra. Com este tipo de atitudes esperam que o trabalhador de colarinho azul do Minnesota vote em quem? Confundem o povo com quem tem dinheiro para pagar entre centenas a milhares de dólares para ir assistir à final do U.S. Open. Não irão longe assim.

Não quero levar o argumento longe demais. Afinal de contas, é evidente que ser-se negro é um handicapnas sociedades ocidentais e que ser-se mulher é saber-se com o terreno inclinado contra si. Lutar para nivelar o campo é uma coisa que deve ocupar todas as pessoas decentes.

Mas, enquanto o faz, é importante que as políticas identitárias não apaguem a identidade da esquerda. E essa passa pela luta de classes. A esquerda não pode esquecer que um estivador negro tem muito mais em comum com um estivador branco do que com um milionário negro.