O caso do acordo ibérico para o preço do gás é o mais recente episódio de crença em almoços grátis. Quem tentou perceber como funcionava o limite ao preço do gás pode não se ter apercebido da dimensão dos aumentos – referidos por Nuno Ribeiro da Silva na entrevista à Antena 1 e ao Negócios. Mas compreendeu que o que estava em causa era a redistribuição do custo e não a sua eliminação.

Ou seja, a diferença entre o limite de 40 euros por megawatt e o custo real vai ser distribuída por um universo maior, em vez de se concentrar nos consumidores daquele gás e electricidade. A vantagem do acordo está no que poderia acontecer sem ele: os preços subiriam mais e afectariam com mais violência as empresas, como se pode perceber no comunicado da ERSE. É um risco que o Governo corre, uma vez que ninguém agradece terem-nos salvo do que poderia ter acontecido e não aconteceu.

Outra questão completamente diferente é se este mecanismo favorece mais Espanha do que Portugal, como também afirma o presidente da Endesa Nuno Ribeiro da Silva. A explicação possível é que Portugal se teve de encostar a Espanha para conseguir este acordo. O cenário alternativo, mais uma vez, era não ter acordo nenhum e ver a Espanha a conseguir obtê-lo.

O Governo tem aliás feito os possíveis para nos poupar às más notícias do preço da energia, como se fossemos umas crianças. Vários países têm tomado decisões e feito campanhas de poupança de energia, incluindo a vizinha Espanha que também não depende de gás russo. Na Alemanha, os edifícios públicos em Berlim, por exemplo, estão sem iluminação. A França, que está ainda menos exposta, com 70% da sua electricidade produzida com energia nuclear, vai aplicar uma multa de 750 euros às lojas com ar condicionado que tenham as portas abertas e acabou o aquecimento ou arrefecimento das esplanadas.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Por aqui nem uma palavra, nem decisões nem campanha. Mesmo sabendo-se que por causa da seca e da decisão de encerrar as centrais a carvão, a produção de electricidade está mais dependente do gás, o Governo em geral e o ministro do Ambiente em particular parecem pouco preocupados em tomar medidas e apelar à poupança de energia. Sim, é verdade que não dependemos o gás russo e a União Europeia, graças também à agressividade dos espanhóis, criou excepções às poupanças que temos de fazer. Mas se pouparmos estaremos a contribuir também para aliviar a pressão da procura e, ainda que indiretamente, a ajudar os países europeus que estão em maiores dificuldades, como é o caso da Alemanha. Mas por aqui é como se nada se estivesse a passar.

Este caso do gás é apenas o mais visível da ilusão de que é possível ter tudo sem pagar o preço. Ao longo dos últimos seis anos do Governo de António Costa essa ilusão foi alimentada até ao limite, criando a ideia de que era possível reduzir o défice público, com aumentos de pensões e salários e redução de impostos, sem qualquer factura. A conta, como várias vezes se alertou nestas páginas, tinha de chegar e está agora a ser paga.

Todos os dias nos últimos tempos somos confrontados com notícias de um país de serviços públicos que parece estar em colapso. A Saúde que enfrenta dias aterradores para quem precisa dela, a Segurança com um retrato de falta de polícias e de polícias mal pagos, o combate aos fogos em que as mil e uma promessas de 2017 ficaram por cumprir – sim, alguns fogos continuariam a acontecer, mas o seu combate poderia hoje ser mais eficiente – e a Justiça onde nada acontece. O desprezo pelos que estão à margem identifica-se no quotidiano, quando os serviços públicos se recusam a ajudar quem ainda está excluído do mundo digital, por exemplo, o que contradiz o discurso.

A falta de investimento em médicos e enfermeiros, em equipamentos que tinham de ser mantidos ou recuperados, nos edifícios já construídos, sejam hospitais ou esquadras, ou ainda as alterações de processos para reduzir a burocracia e tornar a justiça mais rápida e eficaz, a falta de tudo isto, está agora a pagar-se com o triste espectáculo do colapso dos serviços públicos. É a factura que nos chega agora a todos por termos acreditado que havia almoços grátis.

Não, não há almoços grátis, como o Pai Natal também não existe. O custo pode ser financeiro – como se vê agora com o gás – e pode ser de oportunidade, daquilo que não se fez no passado para garantir dias melhores no futuro e que hoje é presente. No gás acabaremos todos por pagar o tecto ao preço, mas pelo menos esse é um mecanismo solidário. Tudo o resto é um preço que podíamos evitar ou mitigar se não sofrêssemos da ilusão de que há almoços grátis. Temos de nos habituar a perguntar quanto custa, no sentido do que se deixa de fazer para gastar aí o dinheiro, e quem paga. Porque mais cedo ou mais tarde a conta cai em cima de nós.