Esta semana fica marcada por duas efemérides importantíssimas na história da Europa. No dia 9 passaram 32 anos da queda do Muro de Berlim. Dia 11 assinalaram-se os 103 anos do Armistício da I Guerra Mundial. Ao contrário do que acontece noutros países europeus, onde as datas são comemoradas com feriados e cerimónias públicas, em Portugal não houve grande alarido à volta destes dias. Ainda que se reconheça que se trata de momentos que mudaram profundamente o rumo da nossa história. E que por isso deviam fazer parte do nosso imaginário coletivo.
A I Guerra Mundial marcou um ponto de viragem profundo na Europa, aos mais diversos níveis. Centro-me num deles: basta ler o livro de memórias de Stefen Zweig, O Mundo de Ontem, para perceber como é que um continente a fervilhar de ideias e criatividade, onde os jovens sonhavam com um futuro próspero e feliz, se estilhaçou de um dia para o outro. Foi uma guerra para onde os europeus foram lutar cheios de ânimo e orgulho patriótico e voltaram quebrados pelo conflito mais sangrento da história. O sacrifício foi imenso e, em certa medida, em vão, uma vez que a paz que se seguiu foi muita curta. É difícil compreender como é que o evento em que a Europa perdeu a sua inocência e a sua posição central no mundo tenha tão pouca saliência no nosso país.
Já a queda do Muro de Berlim marcou o fim da Guerra Fria e a libertação da Europa de Leste do jugo comunista. Milhões de pessoas deixaram de viver em ditadura, e o longo conflito bipolar, que atrapalhava a vida das pessoas receosas que uma escalada levasse a uma guerra nuclear, caiu por terra. John Lewis Gaddis, um dos mais importantes historiadores norte-americanos, viu-se na contingência de publicar um livro acessível ao público em geral (Cold War, 2006) por sentir que os seus alunos já não tinham recordações nem relatos que lhes explicassem a zeitgeist daqueles tempos.
Em 32 anos, muitas das conquistas democráticas que daí advieram estão em crise profunda. A liberdade parece ter deixado de ser um valor em voga. A geração mais jovem, no Ocidente, voltou a usá-la para defender as suas causas. Mas parece não ter consciência de que os regimes que lhes permitem preocupar-se e protestar em matérias climáticas, ou contra a desigualdade de género e a discriminação das minorias, foram erguidos com muitos sacrifícios das gerações anteriores. Falta-lhes memória. Falta-lhes memória histórica.
O problema da falta de memória histórica agudizou-se por dois motivos: o primeiro é que as democracias ocidentais já foram muito mais sólidas. Questões relacionadas com a polarização, a fragmentação político-partidária e a emergência de populismos e extremismos fragilizaram a nossa forma de vida. Sem nos lembrarmos das razões pelas quais “a democracia é o pior de todos os regimes à exceção de todos os outros” (frase atribuída a Winston Churchill) será muito difícil fazermos frente a estas disrupções que ameaçam os fundamentos dos nossos Estados de direito.
Em segundo lugar, porque existe um movimento, cada vez mais internacionalizado, que pretende fazer novas leituras da história, que pretende alterar os factos. Este movimento tem penetrado as sociedades – especialmente as camadas mais jovens – e, aos poucos, conseguido alterar mentalidades.
Um exemplo, simples mas muito significativo: a vandalização e derrube de estatuária referente a determinados períodos históricos que se querem simplesmente fazer desaparecer: “em 2020, estátuas por todo o mundo foram derrubadas numa extraordinária onda de iconoclastia. Houve ondas destas no passado – durante a Reforma Inglesa, a Revolução Francesa, o fim da Guerra Fria e por aí fora – mas a iconoclastia de 2020 foi global” (Alex von Tunzelmann, Fallen Idols, 2021). Estes movimentos põem em perigo o nosso entendimento do passado. Branquear o que não é positivo ou ver o passado à luz dos valores do presente terá um custo muito elevado. E parte desse custo é, precisamente, a perda da memória histórica.
Não há pessoas, não há comunidades, não há países, não há regiões, não há internacionalismo sem memória. Experimentem ler a trilogia “Jesus”, de J. M Coetzee. Por isso, a dispensa da memória histórica ou a sua distorção têm preços muito altos. Ironicamente esta é mesmo uma das lições mais sólidas que a historiografia nos dá. Vamos continuar a correr esse risco?