Que não haja dúvidas para ninguém. Estamos a trilhar o caminho da ingovernabilidade do país e ninguém deve ficar indiferente pois se ele não for travado as consequências serão dramáticas. As razões são diversas e manifestam-se em várias áreas da nossa vida colectiva. Começo pelo governo e por algumas decisões tomadas. A mais grave de todas, até agora, foi a de suspender  (esperemos que não destruir, ainda não sabemos), a maior reforma do SNS desde a sua fundação através do saneamento político do seu dirigente máximo Fernando Araújo, uma pessoa séria e competente, e com ele a sua equipa. Foi destratado e, como é óbvio, percebeu rapidamente que com o estilo desta ministra seria impossível trabalhar. O caso de Ana Jorge é diferente, mas semelhante nos efeitos. Foi nomeada, pois o próprio PS percebeu que era necessário empenho e seriedade numa auditoria à Santa Casa, nomeadamente nas suas muito duvidosas operações no Brasil, mesmo que isso pusesse em causa alguns dos seus militantes, nomeadamente o ex-provedor. Ana Jorge, pessoa séria e de provas dadas, foi também destratada, pedindo-se-lhe tarefas impossíveis para o prazo dado, como pretexto para mais uma nomeação política. A SCML é de facto muito atrativa politicamente, pelo património que tem e pelos empregos que fornece. Ficamos na dúvida se a auditoria chamusca, para além do PS (anterior mesa), militantes do PSD e do CDS. O que estes dois casos ilustram é que o governo tem tiques autoritários de exercício do poder e não se importa de desestabilizar e, porventura, abortar reformas essenciais para o país (SNS) para meter os seus homens ou mulheres de confiança. Primeiro sinal de ingovernabilidade, a desestabilização administrativa

Na frente parlamentar desenvolvo agora o que esbocei em artigo do Expresso. Parece que quase todos se esqueceram da Constituição da República Portuguesa (CRP) e da estrutura de separação e interdependência de poderes. Compete ao governo a iniciativa legislativa com a proposta de lei do Orçamento de Estado (OE) e a sua execução durante o ano económico, depois da fase parlamentar que incorpora, antes da aprovação final global,  as alterações aprovadas de iniciativa dos deputados, no período de discussão e votação do OE. A razão de ser da “norma travão”(1) na CRP, norma essa que tem uma longa história desde finais de oitocentos, é precisamente a de impedir iniciativas legislativas dos deputados, de aumento de despesa ou redução de receita prevista no OE fora desse período. Os deputados não podem, durante a execução orçamental, ter iniciativas que agravem o saldo orçamental previsto no  OE aprovado. Isto significa que hoje é completamente legítimo, embora muito extemporâneo, que o governo apresente uma proposta de lei de baixa de taxas de IRS (modesta como sabemos) e que os deputados, na especialidade, apresentem propostas de alteração a essa proposta de lei do governo. Porém, já não é aceitável que os deputados apresentem projetos de lei nesta matéria. Porque é que é tão grave a violação da norma travão? Pois abre-se, como abriu, a caixa de pandora dos leilões orçamentais durante todo o ano, a ver quem é o partido mais amigo de descer impostos e de subir a despesa pública. Conta-se com a miopia dos cidadãos que não antevejam os resultados desastrosos destas medidas. É neste leilão que já entrámos, e esta folia orçamental é o segundo sinal da ingovernabilidade.

Claro que a violação da norma travão ainda agrava mais o que já de si resulta de um parlamento fragmentado, com coligações de votos imprevisíveis em que a estratégia das oposições é de desgaste permanente do governo, pois nunca se sabe quando serão as próximas eleições. As esquerdas sempre que puderem (leia-se com a abstenção do Chega) farão aprovar as suas propostas. O Chega irá alternando o voto favorável com PSD/CDS, para viabilizar propostas, e o voto contra com o PS para rejeitar propostas, com o intuito de afirmar a sua centralidade e necessidade de PSD/CDS transformarem o não é não em não é sim.

No meio destes sinais preocupantes, surgiu o debate sobre o estado das nossas contas públicas. É óbvio que o ministro Miranda Sarmento e o governo estão a gerir as expectativas, baixando-as, pois foram subidas irrealisticamente em campanha eleitoral. Já o escrevi aqui que não há milagres em matéria orçamental. Aumentar despesa, reduzir as taxas de impostos e manter equilíbrio orçamental, com fraco crescimento económico é pura e simplesmente impossível. Finalizo com alguns esclarecimentos, com base em dados, sobre a polémica com Fernando Medina.

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O saldo orçamental trimestral nada diz sobre o estado das contas públicas, desde logo pela distinção entre contabilidade pública (CP) e nacional (CN) que é muito fácil de perceber. A primeira faz registos na óptica de caixa (entradas e saídas de dinheiro) a segunda compromissos. A decisão judicial (barragem do Fridão), sem recurso, de 2023, mas paga em 2024, ou a transferência do Fundo Ambiental para o Sistema Elétrico Nacional devida em 2023, mas paga em 2024, entram em contabilidade pública em 2024, mas em contabilidade nacional em 2023. Só estas duas medidas fazem com que o saldo em CP seja pior do que o saldo em CN em 428 milhões de euros, mais do que o total do défice do primeiro trimestre em CP (259,3 milhões).

Por outro lado, temos a questão das dívidas a fornecedores. A dívida comercial não é dívida pública de Maastricht. Importa obviamente olhar para ela, pois se ela crescer mais do que o normal, está a colocar-se  dívida “debaixo do tapete”. Mas para isso é preciso justificar. Por exemplo, a dívida vencida a fornecedores externos do SNS tem tendência a aumentar ao longo do ano e atingiu em Novembro de 2023 1,67 mil milhões de euros, sendo parcialmente paga em Dezembro.

Importa também referir que o Ministro das Finanças tem várias rubricas orçamentais que lhe permite fazer face a despesas extraordinárias (Reservas Orçamentais, Dotações provisionais, verbas cativas, etc.). Fui verificar a execução dos cativos (verbas que só podem ser gastas com autorização ministerial, dados disponíveis até Fevereiro 2024) e verifiquei algo interessante. Enquanto nos primeiros dois meses de 2023 libertaram-se apenas 5,6% dos cativos, em 2024 libertaram-se 25,5% (210 milhões euros). Pode haver duas explicações, sendo a primeira a mudança de regras: a autorização de descativação de verbas nos ministérios setoriais passou do Ministro das Finanças (2023) para os ministros setoriais, no OE 2024. A outra é as eleições antecipadas. Certamente ambas contribuíram.

Já tivemos um descalabro orçamental que acabou numa ditadura que durou 48 anos e outro que acabou em forte austeridade. Será que conseguimos aprender alguma coisa entretanto?

PS: A melhor análise histórica da “norma travão” aplicada ao caso português que conheço é de Maria d’Oliveira Martins e merece ser lida aqui. Em relação à proposta de baixa de IRS em 2023 proposta pelo PSD, na vigência do governo PS, quer Maria de Oliveira Martins quer Paulo Otero consideram, como considero, que violam a norma travão. Admito que haja opiniões diversas, mas estou convicto que seja isto suscitado no Tribunal Constitucional por quem de direito (e gostaria que fosse), a posição maioritária seria no sentido da inconstitucionalidade.