Seria hipocrisia da minha parte referir que a escassez de noções de prioridades da fase que atravessamos atualmente em Portugal é singular, historicamente falando. Há cerca de 10 anos, um grande pensador dos nossos tempos – Frei Fernando Ventura –, numa das melhores e mais marcantes entrevistas que já assisti, metaforizava que íamos vivendo “numa barraca com um submarino [estacionado] à porta”. E o mais normal é que a “barraca” se vá perpetuando, e o submarino, porventura, seja vendido a preço de saldo, num destes dias.
Se a Memória e a História efetivamente se cruzassem, saberíamos que inúmeras missivas e crónicas, relevantes na análise social dos séculos XIV-XX, se têm vindo a manter, desde há largos séculos, tão acertadas quanto atuais na crítica à falta de prioridades nacionais apropriadas. Na verdade, tem sido simples ser analista em Portugal: é tudo relativamente intemporal.
E a semana transata foi mais uma semana normal, neste percurso pouco digno de estratégia que decorre, praticamente, desde 1143: quando se analisam e lamentam incertezas e debilidades sociais gritantes trazidas pela epidemia que vivemos (a acumular a tantas outras “epidemias” que já vivíamos), não suspendemos a discussão do novo Aeroporto do Montijo. O mais grave, a meu ver, não é o facto – também ele grave – de se discutir um novo investimento aeroportuário numa fase em que o Aeroporto Humberto Delgado se encontra, por tempo indefinido, às moscas. O mais grave é, realmente, se constatar a matéria com que iniciei esta crónica, a falta de prioridades e a falta de caminho estratégico.
Não descuro o facto que, caso tudo estivesse “normal”, estaríamos por esta data a recusar variados voos que poderiam entrar em solo nacional e, consequentemente, a perder verbas que concederíamos a outros países. Posto isto, acredito então que, em fase pré-pandemia, fosse relevante a construção de um novo aeroporto na periferia da nossa capital. Mas a questão é que nada se mantém igual: só alguém ingénuo ou perfeitamente desinformado ainda não deu pelo facto de todo o mundo ter estado num período brutal de confinamento, sem viagens internacionais. E, se não é de todo descabido que volte a suceder uma nova fase de confinamento, menos descabido se revela o facto das pessoas, um pouco por todo o mundo, estarem com medo de sair de casa – quanto mais do seu país.
Se os factos detalhados até agora, por si só, me parecem trazer força suficiente para concertar estratégias de investimento e colocar alguma água na fervura, não me parece lógico – e muito menos urgente – que se convoquem sessões para discussão de verbas para um novo aeroporto quando, nesse mesmo país, os hospitais públicos não têm recebido verbas e produtos médicos essenciais a tempo e horas de salvar vidas. Mas a falta de prioridades e a penúria de bom-senso não se esgotam por aqui.
O Presidente Executivo da Media Capital, há uns meses, dizia-nos que o apoio governamental com a compra de publicidade institucional no valor de 15 milhões de euros era “bem-vindo”, mas sobretudo “insuficiente”. Se analisarmos os valores que vieram a público, só o grupo privado – repito, privado – da Media Capital terá direito a receber 3,34 milhões de euros via campanhas do Estado. Ora, afinal este apoio “insuficiente” de milhões veio revelar-se equiparável face àquilo que uma nova colaboradora poderá ganhar por ano, se considerado o somatório entre o seu vencimento anual e as suas receitas oriundas via resultados financeiros da TVI (para quem não sabe, pertencente ao grupo privado Media Capital). Em suma, andamos todos a financiar, com os nossos impostos, apoios estatais de 3,34 milhões que são vistos como “insuficientes” pela Media Capital, a mesma instituição que, afinal, concede esses mesmos milhões “insuficientes” (à sobrevivência) para contratar, a meu ver, uma colaboradora cuja principal qualidade é gritar.
Poderia terminar a presente crónica pelo parágrafo anterior; acredito que já teria “sumo” suficiente. Ainda assim, prefiro lançar mais umas notas breves.
Nos dias que correm, estamos sem poder viajar para lado algum, as pessoas sem poder socializar em festas, muitas famílias – por cautela – ainda sem ver os seus elementos com mais idade, inúmeros atletas a não poder praticar os seus desportos, os cafés obrigatoriamente fechados a partir das 23 horas, os hospitais sem materiais essenciais desde o começo desta pandemia, entre tantos outros impedimentos penosos. Contudo, não tem faltado tempo – e falta de critério – para se falar de novos aeroportos, para se viabilizar a Liga dos Campeões (o maior prémio que se poderia conceder aos nossos profissionais de saúde) e para, ainda, se conseguir falar na possibilidade de vir a suceder a Festa do Avante.
Em suma, caro leitor, estamos numa fase em que, apesar de escassearem muitíssimos fatores fulcrais ao bom desenvolvimento de uma sociedade que se diz plenamente democrática, falta sobretudo bom-senso por parte de tantos que governam e lideram com dois pesos para a mesma balança, num mundo onde se grita por igualdade. Contudo, tenhamos esperança que venha a TVI, agora, pôr alguém a gritar mais alto, para o bem de todos nós… Se gritos nos salvassem, Portugal já havia pago a dívida pública!